Este poema de José Régio alude ao
conhecido mito de Narciso, filho de Cefísio, rei da Fócida, e da ninfa Liríope,
que era filha de Oceano e de Tétis, sua esposa. Desde jovem, Narciso era tão
formoso que todas as ninfas o amavam e desejavam, mas ele não se prendia a
nenhuma. A ninfa Eco, filha do Ar e da Terra, que vivia nas margens do Rio
Cefísio, foi uma das que o não conseguiu seduzir, por isso morreu de amor.
Tirésias, o famoso adivinho, preveniu os familiares de Narciso de que este só
viveria enquanto não contemplasse a sua própria imagem. De facto, um dia,
quando regressava de uma caçada, sentou-se à beira de uma fonte para beber e se
refrescar e viu a sua imagem refletida na água cristalina. A contemplação do
próprio rosto fez com que se apaixonasse por si mesmo e acabou por morrer
extasiado. Após a sua morte, foi metamorfoseado em flor, à qual foi dado o seu
nome: narciso.
Assim, José Régio utiliza o mito de
Narciso para abordar a impossibilidade de possuir o seu alter ego, neste
caso não uma imagem física, mas o outro «eu» que deseja ser. O espelho em que o
sujeito poético se olha não é o espelho de água, mas o da sua interioridade,
proveniente de um ato de introspeção: “Dentro de mim me quis eu ver.” (v. 1); “o
meu próprio poço” (v. 2). A expressão “dobrado em dois” remete para o
desdobramento do «eu», que ocorre quando o sujeito lírico contempla o reflexo
da sua alma, que é descrita à semelhança do que sucede com um corpo (“terrível
face e arcabouço”), que, no entanto, contrasta com o corpo do «eu», qualificado
como «lânguido». Ou seja, um corpo aparentemente fraco e debilitado conserva em
si uma interioridade que o faz tremer: “Tremer” (v. 1).
Na segunda estrofe, o sujeito poético
faz contrastar o seu aspeto físico, a sua beleza extraordinária (“Ó lindos
olhos […] de moço” ‑ v. 7), com o seu retrato psicológico, associado ao
sofrimento, ao silêncio, à solidão, à ansiedade, à angústia e à melancolia. Ou
seja, estamos na presença da imagem do poeta maldito, caracterizado pelo génio
desprezado (“silêncio esfíngico”), possuidor de uma extrema beleza, aliada a
uma personalidade angustiada (“Numa fronte a suar melancolia”).
Na terceira estrofe, esta imagem de poeta
romântico é destacada pela força dos seus poemas, “requintados e selvagens”.
Por outro lado, afinal constata-se que a imagem de poeta maldito não é real,
antes produto da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens” (v. 9). Isto significa
que a descrição feita na segunda estrofe não corresponde ao real reflexo da
interioridade do sujeito poético, mas o que ele desejava ser.
No primeiro terceto, é enfatizada a
ideia do desejo (“desejei”, “Desejo”), ênfase essa que culmina com a referência
à cor vermelha, que representa a paixão e a carne. Contudo, o vermelho é,
igualmente, a cor do desejo não satisfeito, do corpo que não é possuído, ideia
que é associada à figura de Narciso e ao seu sofrimento por não se poder
possuir a si mesmo. Quer isto dizer que o sujeito poético sofre também por não
possuir a imagem a que aspirava, não uma imagem física, mas a de si
interiormente, da sua alma. Se Narciso sofre por não se poder dividir em dois,
o sujeito lírico sofre por não ser uno: “Que eu vivo à espera dessa noite
estranha, / Noite de amor em que me goze e tenha, / … Lá no fundo do poço em
que me espelho!”.
No segundo terceto, o sujeito lírico
afirma que espera a noite em que, finalmente, possa unir-se à imagem que
espelha no fundo do poço, recorrendo a uma linguagem claramente erótica: “Noite
de amor em que me goze e tenha”. O poema termina com uma exclamação prenhe de
esperança, mas ao mesmo tempo irónica, pois está consciente de que a realização
do seu desejo será impossível.
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