segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
O Acordo Ortográfico é uma mentira
Eis alguns exemplos colhidos aqui que mostram que o acordo ortográfico é uma mentira política, pois não unifica a ortografia, antes a desunifica:
Pré-AO90 | Pós-AO90 |
Portugal | Brasil | Portugal | Brasil |
Acepção | Acepção | Aceção | Acepção |
Concepção | Concepção | Conceção | Concepção |
Conector | Conector | Conetor | Conector |
Excepcional | Excepcional | Excecional | Excepcional |
Expectorar | Expectorar | Expetorar | Expectorar |
Infecção | Infecção | Infeção | Infecção |
Intercepção | Intercepção | Interceção | Intercepção |
Perceptível | Perceptível | Percetível | Perceptível |
Recepção | Recepção | Receção | Recepção |
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Análise do poema "O Infante"
Este é o primeiro poema da segunda
parte de Mensagem, o que faz todo o
sentido se tivermos em conta que o Infante D. Henrique foi o impulsionador dos
Descobrimentos, por exemplo ao fundar a Escola de Sagres. Daí o título do texto: embora nele se refira
a aventura marítima levada a cabo pelos portugueses, foi o Infante quem
desempenhou um papel crucial nessa aventura, o de protagonista, de
impulsionador, o de símbolo do início da construção do império. Daí que lhe
caiba o papel de protagonista da «Possessio
Maris» (Posse do Mar), dedicada à gesta dos Descobrimentos. Segundo António
Quadros, o Infante foi o “descobridor da ideia de descoberta”.
O Infante D. Henrique (1394 ‑ 1460) foi
o quinto filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre e é geralmente
considerado o homem que mais decisivamente contribuiu para o impulso que levou
à expansão ultramarina portuguesa. Por outro lado, ele é também,
frequentemente, apresentado como símbolo das vontades e dos esforços anónimos
de navegadores, cosmógrafos, mercadores e aventureiros que ajudaram o homem
moderno a construir novas dimensões para a perspetiva do mundo.
Estrutura interna
.
1.ª parte (1.º verso) ‑ As três etapas que presidem à
construção da obra humana, traduzidas pelo mote / aforismo «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».
.
Duas ações ‑‑‑ a vontade divina;
‑‑‑ o sonho do homem;
↓
efeito: o nascimento / a concretização
da obra.
.
Os três «sujeitos» dependem mutuamente, numa relação de causa efeito: sem a vontade
do primeiro, o segundo não sonharia e a obra não poderia nascer.
.
O verso, constituído por três orações assindéticas justapostas (assíndeto e
gradação), organiza-se em torno de formas verbais no presente do indicativo, de
aspeto durativo, exprimindo realidade, atualidade, valor de lei, uma verdade
universal.
. 2.ª parte
(versos 2 a 8) ‑ Desenvolvimento do primeiro verso:
1)
. Desejo de Deus (agente da
vontade):
.
a unidade da terra, através do mar, de forma a servir de elemento de união
entre os continentes e os povos, daí a existência de um conjunto de palavras e
expressões que sugerem a ideia de unidade: «uma», «unisse», «não separasse»,
«inteira»;
.
o caráter navegável do mar, para que o ser humano tivesse acesso ao
conhecimento da Terra.
.
A colocação das formas verbais predominantemente no pretérito perfeito do
indicativo sugere que o princípio em causa foi respeitado e se concretizou.
2)
.
A sagração do Infante: para o cumprimento dessa missão, Deus sagrou o Infante (a decisão de se
aventurar no mar tem origem divina e não num qualquer capricho humano)), isto
é, predestinou-o para os grandes feitos das descobertas («… em ti nos deu
sinal.» ‑ v. 10). Foi, portanto, Deus (cuja vontade é impreterível) quem quis
que o Infante (= os portugueses) sonhasse dominar os mares, desvendar o
desconhecido e estabelecer a comunicação entre os povos e os continentes, a
nível matéria e espiritual / cultural, isto é, que desse sonho nascesse a obra
dos Descobrimentos.
Assim, o Infante é o símbolo do
herói, o agente por vontade divina, destinado a criar uma obra superior.
.
A
forma verbal «Sagrou» encerra grande expressividade:
‑contém conotações
religiosas;
‑ evoca o nome
próprio «Sagres», a escola de navegação fundada pelo Infante, símbolo do início
da construção do império português;
‑ remete para o
caráter mítico e predestinado do Infante, o escolhido por Deus para a execução
da obra, daí que possamos também falar na sua divinização;
‑ traduz o caráter
providencial e iniciático das Descobertas.
.
O complexo verbal «foste desvendando» (v. 4) apresenta a ação como uma continuidade,
como algo que se concretizou de modo progressivo; a forma verbal «desvendando»
(desvendar = revelar, descobrir, mostrar), por outro lado, remete para a ideia
de revelação de algo desconhecido.
.
O sujeito poético dirige-se ao Infante na segunda pessoa do singular
(«Sagrou-te, e foste…» ‑ v. 4); «Quem te sagrou criou-te» ‑ v. 9; «Do mar e nós
em ti…» ‑ v. 10), o que traduz uma relação de proximidade e de cumplicidade.
3)
.
A realização da obra, a sagração:
→ o início da navegação: «foste desvendando»;
→ a descoberta das ilhas da
Madeira e dos Açores até à costa africana: «E a orla branca foi de ilha em
continente»;
→ a passagem do Cabo das Tormentas: «até ao
fim do mundo»;
→ o mar desconhecido a
partir da zona do Cabo das Tormentas: «do azul profundo»;
→ a concretização:
. a
união da terra: «E viu-se a terra inteira»;
.
o seu caráter súbito: «de repente»;
.
o aparecimento: «Surgir»;
.
a ideia de origem, de profundidade; «azul profundo»;
.
a presença do sinal (já na 3.ª estrofe).
.
O percurso da obra:
→ a unificação do mundo alicerçou-se no mar (na «orla
branca»);
→ por mar, atingiu-se uma ilha e depois um
continente;
→ da escuridão se fez luz («clareou»), ou seja, da
ignorância se passou ao conhecimento, a civilização ocidental encontrou-se com
a oriental;
→ e assim
se atingiu, «correndo», «o fim do mundo», assim se eliminaram as barreiras e os
limites;
→ deste modo, do mar (do «azul profundo»), «de
repente», irrompeu a unificação do mundo.
. A realização da obra é sugerida por Pessoa através do recurso a
diversos recursos poético estilísticos:
. a gradação: começou por desvendar «ilha(s)» e «continente(s)», chegando
ao «fim do mundo» e dando assim a conhecer «a terra inteira»;
. as metáforas e as
sinédoques: «desvendando a espuma», «orla branca», «clareou, correndo»;
. a perifrástica
«foste desvendando»;
. o gerúndio
«correndo»;
. a locução adverbial
«de repente»;
. as sugestões
cromáticas e luminosas;
. a aliteração do /r/;
. o verbo «desvendar»,
que remete para a ideia de revelação;
. os adjetivos
«inteira» e «redonda» aponta para a unificação da terra, concretizando-se assim
o desejo expresso no verso 2. Por outro lado, «redonda» aponta para a «esfera»,
o símbolo da unidade e da perfeição cósmica.
3.ª parte
(3.ª estrofe) – Conclusão:
.
a transposição da glória do Infante para o povo português:
‑ Deus sagrou o Infante e criou-o
português;
‑ enquanto tal, simboliza
o povo a que pertence, o que significa que também ele foi assinalado,
predestinado, escolhido por Deus para desvendar o mar desconhecido;
.
o sonho cumpriu-se: o desvendar e a unificação dos mares e a criação do império
(sonho simultaneamente nacionalista e universal);
.
o sonho desfez-se: o império (do Oriente) desfez-se, pertence a outro tempo;
.
a pátria, presentemente, não tem desígnio;
.
o apelo ao cumprimento do destino mítico de Portugal: uma nova e espiritual
missão («Senhor, falta cumprir-se Portugal!» ‑ v. 12). Trata-se do apelo a um
novo sonho, de cariz espiritual, visto que a dimensão material do império já
foi conseguida, ou seja, falta que Portugal se cumpra como pátria e entidade
nacional (notar o uso do presente do indicativo para exprimir urgência). De
notar que o sujeito poético se dirige agora diretamente a Deus, apontando para
o desencadear de um novo ciclo que, no fundo, constitui o regresso ao início do
poema: uma nova vontade divina, um novo sonho do homem e uma nova ação / obra.
Mas, afinal, o que
falhou em todo o processo? Porque se desfez o império? Deus quis, o homem
sonhou e a obra nasceu, mas uma obra efémera, perecível, como tudo o que é
material e humano. A culpa não é de Deus, já que ele sagrou e destinou o Infante e o povo português ao cometimento de
feitos muito acima da sua condição de mortais. Mas como ser humano limitado,
não houve continuidade para o império, que se desfez, daí que Pessoa aponte
para a necessidade de Portugal se cumprir integralmente, de complementar com a
dimensão espiritual a materialidade do império passado, novamente sob a
predestinação divina.
A ação do Infante:
‑ representa o povo
português («… e nós em ti nos deu sinal.» ‑ v. 10) e «foi desvendando
[descobrindo, revelando] o mar», ultrapassando dificuldades;
‑ os seus esforços
foram coroados de êxito («Cumpriu-se o Mar» ‑ v. 11); fisicamente, o mundo
tornou-se um, a terra tornou-se una, os povos e continentes unificaram-se;
‑ o Infante é o herói
que obtém a imortalidade através do cumprimento de um dever individual e
pátrio;
‑ é também o herói
que busca a universalidade, daí a utilização do artigo definido no título («O Infante») e em «o homem» (verso 1) com um valor universalizante;
‑ possui um caráter
divino, dado que foi o eleito, o predestinado por Deus para o cumprimento desta
missão; por extensão, como é português e representa o seu povo, a sua sagração
significa a divinização do homem português;
‑ a sua sagração, a
sua obra, tem como consequência o acesso ao conhecimento: dos limites
geográficos do planeta, do mar, de outros povos, de outras culturas.
. Tom dramático do
poema:
‑ a tensão emocional
resultante da visão da terra redonda surgindo magicamente das profundezas do mar;
‑ as três
personagens:
.
o sujeito poético, que se dirige ao Infante e interpela Deus, significando este
facto a existência de um diálogo (implícito), o que está de acordo com o
caráter misterioso e messiânico do poema;
.
Deus;
.
o Infante.
Recursos
poético-estilísticos
1. Nível fónico
.
Estrofes: três quadras.
.
Métrica: versos decassilábicos
heróicos, acentuados nas 6.ª e 10.ª sílabas.
.
Ritmo predominantemente ternário, alternando com o
ritmo binário.
.
Rima:
. esquema rimático: abab / cdcd / efef;
. cruzada;
. consoante;
. grave e aguda;
. pobre e rica.
A rima permite que certas
palavras-chave se encontrem em posições de destaque: «nasce», «uma», «mundo»,
«português», «sinal», «Portugal».
.
Transporte: vv. 7-8.
2. Nível morfossintático
.
Verbos:
‑ presente: discurso aforístico do
primeiro verso;
‑ pretérito perfeito: narração de
acontecimentos passados;
‑ regresso ao
presente («Falta cumprir-se Portugal») a sugerir urgência, necessidade.
Esta sucessão presente / passado /
presente sugere a dialética hegeliana tese, antítese, síntese e seu retorno.
.
Adjetivos: «redonda», «inteira» ‑ designam um mundo circular,
fechado, uno, todo.
.
Frases curtas, correspondendo seis a um verso.
.
Assíndeto: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».
3. Nível semântico
.
Vocabulário de conotações simbólicas:
‑ «sagrou-te»: talvez
ligada à palavra «Sagres», sugere a escolha do Infante para uma missão divina
(«Deus quer»);
‑ o uso de maiúsculas
(Mar, Império);
‑ «mar»: simboliza o
desconhecido, o mistério, daí as expressões «desvendar a espuma», isto é,
desfazer o mistério, descobrir, ultrapassando as dificuldades que se lhe
deparam; é, pois, o traço de união de ilhas e continentes (vv. 2-3); «nos deu
sinal», ou seja, dar a chave para decifrar o mistério;
‑ «espuma» (branca),
«orla branca» (é o sulco de espuma deixado pelos navios portugueses; simboliza
o longo percurso que tiveram de percorrer para que a empresa dos Descobrimentos
se concretizasse), «clareou», «surgir» (sair das sombras, revelar-se,
conhecer), «do azul profundo» (do mar imenso e profundo, é o símbolo do
desconhecido, em oposição ao «clarear», que é o revelado): estas expressões
sugerem a passagem do mistério para a descoberta, para o conhecimento, passagem
caracterizada como repentina, espetacular, miraculosa; assim o sugere a
expressão «E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir redonda…»;
‑ a visão da «terra
redonda», surgida repentinamente, sugere a ideia de que a obra dos portugueses
é a realização de um plano divino. O redondo, a esfera. É o símbolo da
perfeição cósmica, da unidade (do mundo), da obra completa e perfeita que Deus
quis: «Deus quer… / Deus quis que a terra fosse toda uma…»;
‑ as cores:
.
azul: ligada ao mistério, ao desconhecido (o mar);
.
branco da espuma vem clarear e revelar a «terra inteira, de repente»;
‑ o Infante:
representa o povo português, mas também surge como o símbolo do homem
universal, o herói que realizou um sonho que era vontade de Deus.
.
Imagem e personificação:
«E a orla branca (…) correndo, até ao fim do mundo», a sugerir a rapidez
imparável das Descobertas.
.
Gradação: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», para
explicar a lógica da relação Deus / Homem / obra. De acordo com as segunda e
terceira estrofes, a obra nasceu, o mar passou a unir em vez de separar, o
império cumpriu-se e desfez-se.
.
Apóstrofe: «Senhor».
Análise de "D. Sebastião"
1. A figura de D.
Sebastião
No século XVI, o príncipe D. João,
herdeiro do trono português, casou-se com D. Joana de Áustria, irmão de D.
Filipe II de Espanha. Deste matrimónio nasceu um único filho, D. Sebastião, que
nasceu a 2 de janeiro de 1554, dezoito dias após a morte de seu pai, o príncipe
D. João.
O rei D. João III, avô de D. Sebastião,
faleceu em 1557, quando o neto tinha três anos de idade. A criança recebeu de
imediato a coroa e a sua avó passou a regente do reino. Assim, D. Catarina
governou de 1557 a 1562, seguindo-se-lhe o seu tio-avô D. Henrique,
cardeal-arcebispo de Lisboa e inquisidor-mor, de 1562 a 1568.
Aos 14 anos de idade, D. Sebastião
tomou conta do governo. Enfermo no corpo e no espírito, importava-se pouco com a
governação, perdido antes em sonhos de conquista e de expansão da Fé.
Conquistar Marrocos era a sua ambição número um, mas outros projetos de imperialismo
em terras pagãs preenchiam-lhe a imaginação. Ousado até aos limites da loucura,
o novo rei não atribuía grande importância ao planeamento cuidadoso, à
estratégia ou à retirada, considerando essas preocupações medo ou cobardia.
Desprezava os velhos, os prudentes, os sábios e os experientes, preferindo
rodear-se de um grupo de jovens aristocratas, quase tão loucos e pouco maduros
como ele próprio. Além disso, não aceitava palavras de aviso nem encarava a
realidade e a verdade como eram.
Por outro lado, o jovem monarca dividia
o seu tempo por caçadas, exercícios religiosos e leitura de livros de História.
Adorava desafiar o perigo. Em dias de temporal, embarcava nas galés para fora
da barra e contemplar o mar enfurecido. De acordo com o escritor Fernando Dacosta,
«Era um pouco louco; tinha dificuldade em separar a ficção da realidade».
Porém, quando Lisboa foi assolada pela peste de 1569, abandonou a cidade, facto
que parece comprovar que a sua coragem era apenas temperamental e não um valor
consciente e assumido.
Relativamente à sua vida íntima, nunca
casou, não obstante a insistência da corte para que escolhesse uma noiva entre
as casas reais europeias e desse um sucessor à coroa. Em determinada altura,
negociou casamento com Margarida de Valois e com a arquiduquesa Isabel de
Áustria, que acabou por desposar Filipe II. O despeito pelo episódio,
provavelmente artificial, serviu de pretexto para que recusasse a encetar novas
negociações, o que lhe permitia estar completamente livre para se dedicar
àquilo que mais o fascinava: a guerra.
A pedido do cardeal Alexandrino,
enviado pelo Papa, esteve para participar numa cruzada contra os Turcos, mas,
na impossibilidade de levar avante a ideia, projetou uma incursão na Índia.
Dissuadido pelos conselheiros, decidiu, enfim, concentrar os seus esforços em
África, chegando a navegar em segredo até Tânger em 1574. Provavelmente, terá
sido por essa altura que começou a desenhar-se no seu espírito o desejo de
invadir Marrocos a fim de reconquistar as terras, outrora portuguesas,
devolvidas aos mouros por D. João III.
Segundo um dos seus mais recentes
biógrafos, o espanhol Baños-García, «D. Sebastião acreditava ser um capitão às
ordens de Deus e da Igreja, montando a invasão de Marrocos para se tornar numa
lenda vitoriosa.». Muitos tentaram demovê-lo, sobretudo os espanhóis D. Catarina
e Filipe II, mas o soberano português tinha vestido a pele da luta pela
independência nacional. Nada o faria mudar de ideias.
Em 25 de Junho de 1578, após ter
praticamente esvaziado os cofres do Estado, D. Sebastião partiu com uma armada
de 800 velas e 18 mil homens ‑ a maioria mercenários estrangeiros e camponeses
portugueses, incluindo um pequeno corpo de voluntários nobres bem treinados.
2. Análise do
poema
Num discurso de 1.ª pessoa, D.
Sebastião autocaracteriza-se como louco,
assumindo orgulhosamente essa loucura (atentar na reiteração do adjetivo
“louco”, enfatizada pela presença do advérbio de afirmação “sim”). Notar que,
no poema, «loucura» significa «sonho», «ideal», «utopia».
A causa
dessa loucura é o desejo de grandeza (o ideal, a utopia, o sonho), que o
sujeito poético assume, como acima referido, com orgulho, a qual não é trazida
pela «Sorte», mas conquistada com esforço, coragem e determinação. Porém, o
desejo de grandeza teve um preço: a morte do «louco», do sonhador, isto é, de
D. Sebastião (vv. 4 e 5), que se deixou morrer, portanto, pelo seu ideal no
areal de AlcácerQuibir, no norte de África. E a razão desse sacrifício reside
no facto de o rei não ter sido capaz de realizar essa tarefa, que era superior
às suas capacidades: «Não coube em mim minha certeza» (v. 3).
Porém, no areal, ficou apenas o que
nele havia de mortal, o ser físico, o corpo («Ficou meu ser que houve»), tendo
sobrevivido o ser que há, que permanece, que é imortal, isto é,a alma, o sonho,
o ideal («o que há») ‑ loucura ‑, de querer grandeza, de devolver a glória à Pátria,
que continua vivo e por concretizar, daí o apelo que faz na segunda estrofe.
Recorde-se que o sonho «original» do rei consistia no engrandecimento de
Portugal através da conquista de terras aos mouros no norte de África e da
expansão da fé de Cristo.
Além disso, nestes versos finais da
primeira estrofe, Pessoa faz conjugar, na figura de D. Sebastião, história e
mito. De facto, historicamente, o rei pereceu no areal de Alcácer Quibir (o
«ser que houve» ficou «onde o areal está»), mas o que tem primazia para Pessoa
é o mito («o que há»).
No início da segunda estrofe, o sujeito
poético apela a «outros» que tomem e prossigam a sua loucura, o seu sonho, isto
é, que concretizem, no presente / futuro, aquilo que ele sonhou e idealizou no
passado, o seu grande projeto nacional.
A interrogação retórica final é muito
significativa:
.
faz referência à loucura enquanto energia criativa que poderá ser canalizada
para a reconstrução nacional;
.
a loucura ‑ o sonho ‑ é essencial ao homem e é o que o distingue do animal:
Pessoa compara o homem que não sonha com um animal que se limita a procriar;
sem possuir a capacidade de sonhar, sem possuir um ideal a cumprir, o ser
humano fica reduzido à condição de animal irracional (nasce, procria e morre) e
está condenado à morte e ao esquecimento; assim, a existência humana não tem
sentido nem valor;
.
através da loucura, o ser humano projeta-se no futuro e, por isso, não morre
(com efeito, perante o sonho / a loucura, a morte não passa de contingência
física que não pode impedir que aquele(a) prossiga noutras mãos);
.
é a loucura que leva o homem a partir em busca de grandes realizações
(como fizeram os Argonautas e Vasco da
Gama, para quem «Navegar é preciso / Viver não é preciso») ‑ e, de facto, foi a
louca temeridade de D. Sebastião que esteve na origem do desastre de Alcácer
Quibir, mas também serviu de exemplo aos vindouros.
Nota-se, ao longo do poema, uma viva
admiração de Pessoa pela loucura de D. Sebastião e um claro desprezo pelo homem
«besta sadia», que vive sem ideais, sem grandes sonhos ou projetos,
contentando-se com a mediocridade e com o «gozo materialista».
Por outro lado, Pessoa associa a
loucura ao génio. Na verdade, o louco é também o símbolo da inspiração, do
poeta, de todo aquele que está para além do comum da sociedade.
3. Estrutura
interna
Relativamente à estrutura interna do poema, este pode dividir-se em dois momentos:
.
1.ºmomento (1.ª estrofe) ‑ O sujeito poético (o Rei):
- autocaracteriza-se como louco;
- explicita a razão da sua loucura: a
busca de grandeza / glória;
- e as consequências / o preço da
mesma: a morte.
.
2.º momento (2.ª estrofe) ‑ O sujeito poético:
- faz o elogio da loucura, traço que
distingue o homem do animal irracional;
- exorta a que outros deem
continuidade ao seu sonho.
O poema insere-se na 1.ª parte de Mensagem, «Brasão», uma vez que esta
compreende os antepassados fundadores da nacionalidade. Por outro lado, a
inserção nas Quinas prende-se com o facto de D. Sebastião ter perdido a vida no
contexto do cumprimento de uma tarefa para que foi escolhido por Deus.
4. Valor simbólico
de D. Sebastião
Atente-se nas palavras dos autores do
manual Expressões ‑ 12.º ano sobre o valor simbólico do rei D. Sebastião na
obra de Fernando Pessoa: “D. Sebastião adquire em Mensagem um valor simbólico que ultrapassa a sua figura histórica.
São os valores da determinação e da coragem que ele corporiza que funcionam
como mito inspirador e, nessa
aceção, «fecundam a realidade»: «É Esse que regressarei.» O Sebastianismo em Mensagem não se liga, pois, ao caso específico
e concreto de D. Sebastião, que não poderá, obviamente, voltar, mas à ideologia
que lhe está subjacente. Depois de «ser que houve» e que ficou no «areal» com a
«morte», regressará a força inspiradora de D. Sebastião necessária ao
ressurgimento anímico da nação. O próprio Pessoa refere: «No sentido simbólico
D. Sebastião é Portugal: Portugal que perdeu a sua grandeza com D. Sebastião e
que só voltará a tê-la com o regresso dele, regresso simbólico (…)».”
5. Intertextualidade
Comparemos, por último, a forma como a
figura de D. Sebastião é tratada em Os
Lusíadas e na Mensagem:
.
Os Lusíadas:
‑ Camões dedica-lhe o seu poema épico
(Canto I);
‑ Retrato: traça um
retrato histórico do soberano, com referências à situação de Portugal e à atuação
do rei;
‑ Valores: representa
a segurança, a liberdade e a esperança do povo português no sentido de fazer
ressurgir a Pátria da apatia e decadência do presente, continuando a tradição
dos antigos heróis nacionais, dilatando a fé e afirmando o império.
.
Mensagem:
‑ é o mito
organizador e articulador da obra, já que representa o sonho que presidirá ao
ressurgimento de Portugal da crise em que se encontra mergulhado;
‑ Retrato: o seu
retrato é mítico, assente sobretudo no seu traço de «loucura» criadora e
inspiradora;
‑ Valores: D.
Sebastião representa o mito regenerador e metáfora da «loucura», do sonho.
Análise de "Mar Português"
. Título: no título, constituído por duas palavras, há a destacar o adjetivo
«português», que remete para a conquista e o domínio dos mares pelos
Portugueses, que os ligaram e fizeram com que existisse apenas o «mar»
conhecido. Essa união foi o resultado do sofrimento e da coragem dos lusitanos;
daí o mar ser «português». Por outro lado, apesar de os Portugueses já não
cruzarem o mar no presente, o título deixa entender que ele será sempre
lusitano.
. Tema: o mar, glória e desgraça do povo português.
. Estrutura interna
. 1.ª parte (1.ª estrofe) – Interpelação do sujeito poético ao mar, a que, relembra
o preço (os sacrifícios) pago pelos Portugueses para conquistarem o mar.
Os
sacrifícios necessários para que os Portugueses conquistassem o mar traduzem-se
na morte de muitos dos que partiram e no sofrimento dos que ficaram em terra,
daí que o poeta dê realce, através do uso de uma linguagem emotiva (marcada
pelas exclamações e pelo uso da 2.ª pessoa, que estabelece uma relação afetiva
com o mar) e do campo lexical de sofrimento («lágrimas», «choraram»,
«rezaram»), ao amor familiar: o amor maternal («quantas mães choraram»), o amor
filial (as orações dos filhos) e o amor das noivas que ficaram por casar (notar
a construção em anáfora dos versos
3, 4 e 5 e o uso de quantificadores ‑ «quantas mães», «Quantos filhos»,
«Quantas noivas» ‑, que aumentam o dramatismo das situações evocadas, pondo em
desta que o número de vidas perdidas).
Deste modo, realça-se o facto de o sacrifício afetar as famílias já
constituídas e as que o seriam, mas não o serão mais, em razão da morte dos «noivos».
Observe-se, por outro lado, as potencialidades da forma verbal «cruzarmos»: (1)
sugere a causa da dor (a conquista do mar); (2) tem na sua composição a palavra
«cruz», símbolo do sacrifício e da morte.
Outra
ideia que ressalta da 1.ª estrofe é a de que o mar é português, tão alto foi o
custo que a sua conquista implicou. E notemos que é o mar, não os mares, o que traduz a ideia de unificação do mar, a qual se ficou
a dever ao empenhamento lusitano. Outra forma de mitificação de Portugal operada nesta estrofe consiste na
atribuição ao sal do mar de uma origem portuguesa, mitificando-se a dor lusa.
O
sofrimento pertence ao passado, daí as formas verbais no pretérito perfeito do
indicativo, mas também o infinitivo pessoal «cruzarmos» (v. 3), exprimindo
determinação continuada, persistência. Porém, o facto de isso se ter verificado
no passado e de os Portugueses já não cruzarem o mar não significa que ele
tenha deixado de ser português. De facto, os laços estabelecidos foram tão
fortes, revestiram de tanta dor e sofrimento, o sal que o mar comporta é em tal
quantidade, oriundo das lágrimas derramadas pelos Portugueses (v. 2), que ele
será sempre português.
Em
síntese, as consequências da saga das descobertas são a dor, o sofrimento (consequências
emocionais), o desamparo das famílias
(consequências sociais e económicas), o despovoamento
do reino (consequências políticas).
Por outro
lado, esta estrofe assume um claro cariz épico,
uma vez que nela predomina a valorização do sofrimento e do espírito de
sacrifício dos Portugueses, capazes de superar provações extremas e de, desse
modo, provar a sua grandeza espiritual. Tudo começa e acaba no mar.
. 2.ª parte (2.ª estrofe) ‑ Balanço / justificação dos sacrifícios: os grandes
feitos (a conquista e o domínio do mar) pressupõem sofrimento, mas todo o
esforço e dor arrastam consigo alguma compensação, daí que o esforço e o
sacrifício dos Portugueses não tenham sido em vão.
Esta
segunda estrofe assenta na apresentação da resposta, através de três frases
declarativas, à interrogação inicial que introduz a reflexão:
. «Valeu a pena?», isto é,
valeu a pena, justificou-se tanto sacrifício?
. «Tudo vale a pena / Se a alma não
é pequena»: todos os sacrifícios são justificáveis se o objetivo que
estiver na sua base for nobre e se se agir com ousadia, coragem, determinação e
abnegação; tudo vale e pena para atingir o ideal sonhado, a heroicidade.
. «Quem quer passar além do Bojador(1) / Tem que passar além da dor»: quem quer alcançar o objetivo desejado tem de
superar os obstáculos que se lhe depararem e a própria dor, indo além dela
(notar que o Bojador é, aqui, a metáfora dos objetivos a alcançar e simboliza o
ultrapassar do medo, do desconhecido, o primeiro passo para o conhecimento). É
necessário superar os limites da frágil condição humana.
. «Deus ao mar o perigo e o abismo
deu, / Mas nele é que espelhou o céu»: quem superar, sofrendo, os perigos
do mar, alcançará a glória suprema, que é o mesmo que dizer que tudo o que é
verdadeiramente custoso tem o seu preço (1.ª estrofe) e a sua compensação
(último verso). O «mar» é símbolo de
sofrimento e morte («perigo» e «abismo»), mas também símbolo de realização do
sonho, de glória e imortalidade, já que foi nele que deus fez «espelhar» o céu.
Quem conquistar o mar ascenderá ao plano divino. Se, na 1.ª estrofe, se
lamentou o preço pago pela conquista do mar, na segunda, anuncia-se o prémio.
Nestas três frases, estão compreendidos
os elementos atitéticos fundamentai
para a compreensão do poema: o negativo (pena, dor, perigo) e o positivo (céu).
Quer isto dizer que a dor é sempre o preço da glória.
Nesta segunda estrofe, o tempo verbal
predominante é o presente do indicativo, que está de acordo com a dimensão
axiomática das afirmações. Excetuam-se os dois últimos versos, que se encontram
no pretérito perfeito do indicativo, para recuperar a ideia de ultrapassagem
das adversidades como forma de alcançar a imortalidade.
. Tom dramático do
poema
.
As duas faces dos Descobrimentos: a tragédia ‑ os aspetos desastrosos (1.ª
estrofe) ‑ e a glória (2.ª estrofe, embora também haja nela uma referência ao
lado trágico).
.
A apóstrofe inicial e a do 6.º verso, que confere uma certa circularidade à
estrofe.
.
A interrogação retórica da segunda estrofe.
. Caráter
épico-lírico do poema
.
Vertente lírica: a expressão comovida dos sentimentos do sujeito poético (o
lamento do lado negativo das Descobertas) e a descrição da dor e do sofrimento
dos que viveram a saga das descobertas (vv. 2, 3, 4 e 5).
.
Vertente épica: a valorização e o entusiasmo que anima a alma humana para
concretizar os seus sonhos, ideais elevados e com isso ascender ao patamar da
divindade e da imortalidade.
A coexistência dos
dois planos justifica-se pelo misto de epopeia e de lirismo que se encontra no
poema. «Para realizar a glorificação da Pátria, os Portugueses tiveram de
sofrer a dor e as privações, o preço a pagar pelos feitos sublimes que
praticaram
. Intertextualidade
com
o episódio do Velho do Restelo
Velho
do Restelo
|
“Mar
Português”
|
|
. Referência à «dura inquietação d’alma».
|
. «Se a alma não é pequena».
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. O choro das mães, esposas e filhos.
|
. O choro das
mães, a reza dos filhos, as noivas que ficaram por casar.
|
|
. A
consciência do perigo: o ambiente de dor e pessimismo provocado pela antecipação
dos perigos que os que vão embarcar enfrentarão.
|
. A
consciência do perigo, causadora igualmente de dor e sofrimento, mas com
traços de otimismo: a dor é encarada como um meio necessário para alcançar o
sonho e a glória.
|
|
. O sofrimento
é necessário para a realização de grandes feitos.
|
. Idem.
|
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. Reflexo da
mentalidade renascentista, o episódio é crítico dos Descobrimentos.
|
. O poema é, essencialmente,
laudatório.
|
|
. O herói é mais humano e terreno.
|
. O herói é mítico e lendário.
|
. Linguagem e
recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
.
Estrofes: duas sextilhas, o que se adapta á contraposição
dos aspetos desagradáveis (1.ª estrofe) e agradáveis (2.ª estrofe).
.
Métrica: alternância de versos
decassílabos e octossílabos, com alguma irregularidade.
. Rima:
‑ esquema rimático: aabbcc;
‑ emparelhada;
‑ aguda e grave;
‑ consoante;
‑ pobre e rica;
‑ as palavras
rimantes são, na maior parte, palavras-chave do poema: sal, Portugal, choraram, rezaram, Bojador, dor, céu, realçando-se,
com a posição em final de verso, a sua expressividade.
.
Ritmo: binário, largo, típico da meditação lírica.
.
Assonância: predomínio da vogal áspera ou forte /a/ (1.ª estrofe).
.
Alternância de sons fechados (ê, ô) e sons abertos (á, é).
.
Transporte: vv. 1-2, 5-6, 7-8, 9-10.
2.
Nível morfossintático
.
Verbos:
‑ pretérito perfeito:
evoca os acontecimentos trágicos e os sofrimentos do passado;
‑ presente: remete
para os valores intemporais como a bravura, a tenacidade, a coragem o espírito
de luta, o desejo de vencer, isto é, os valores que fazem os heróis;
‑ infinitivo pessoal «cruzarmos» exprime determinação e
persistência.
.
Pobreza de adjetivos, apenas dois:
«salgado» e «pequena».
.
Predominância de verbos e substantivos, como convém às
características do tema desenvolvido:
‑ «mar», «Bojador»:
as dificuldades, os perigos enfrentados pelos Portugueses para alcançarem a
glória;
‑ «sal»: símbolo do
sofrimento, das tragédias provocadas pelo mar;
‑ «lágrimas»: vide
1.ª estrofe;
‑ « céu»: é o símbolo
do sonho realizado, da glória, da recompensa que espera o homem que supera os
maiores perigos e sofrimentos e conquista o seu sonho; é o símbolo do prémio
supremo do herói: a imortalidade.
.
Anáfora e quantificadores:
«Quantos filhos», «Quantas noivas» ‑ realçam o número de vidas afetas pelas
desgraças causadas pelo domínio do mar.
.
Função emotiva, traduzida pelas exclamações.
.
As
três frases declarativas.
3.
Nível semântico
.
Apóstrofe e personificação
do «mar», tratado na 2.ª pessoa e responsável por todo o drama e sofrimento,
mas também proporcionador da glória.
.
Metáfora e hipérbole:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal /
São lágrimas de Portugal», uma
síntese das desgraças que o mar causou.
.
Reiteração:
‑ dos quantificadores (vide);
‑ da forma verbal
«passar» (versos 9 e 10): realça a relação necessária entre a dor e o heroísmo.
.
Exclamações (1.ª estrofe): servem o tom épico-dramático
do poema e exprimem o que há de mais sagrado nas relações humanas: o amor
familiar, isto é, o sofrimento que custou a conquista do mar.
.
Interrogação «Valeu
a pena?»: chama a atenção para as contrapartidas que o destino reserva aos
navegadores e inicia o balanço ou a reflexão sobre a utilidade dos sacrifícios.
. Caráter aforístico dos versos 7-8,
9-10.
.
O sentido metafórico de alguns
vocábulos e expressões: «cruzarmos», «Bojador», «espelhou», «céu» (é o símbolo
do sonho realizado, da glória; se o mar é o local de todos os perigos e medos,
também é o espelho do céu, uma vez conquistado).
.
A antítese entre o lado trágico e o
glorioso dos Descobrimentos.
.
Os dois primeiros versos resumem a
história passada e presente do povo português e, consequentemente, exemplificam
a capacidade de síntese e aproveitamento das potencialidades expressivas das
palavras mais banais, processo característico de Fernando Pessoa.
(1) O Bojador,
cabo de difícil acesso situado na costa ocidental africana, terá sido dobrado
por Gil Eanes, em 1434, depois de numerosas (fala-se em cerca de 15) tentativas
anteriores. Tal dobragem significou um importante passo em frente nos
descobrimentos portugueses, já que esse cabo simbolizou, durante muito tempo, o
limite do conhecido, e a sul havia muitas riquezas à espera.
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