Este é o primeiro poema da segunda
parte de Mensagem, o que faz todo o
sentido se tivermos em conta que o Infante D. Henrique foi o impulsionador dos
Descobrimentos, por exemplo ao fundar a Escola de Sagres. Daí o título do texto: embora nele se refira
a aventura marítima levada a cabo pelos portugueses, foi o Infante quem
desempenhou um papel crucial nessa aventura, o de protagonista, de
impulsionador, o de símbolo do início da construção do império. Daí que lhe
caiba o papel de protagonista da «Possessio
Maris» (Posse do Mar), dedicada à gesta dos Descobrimentos. Segundo António
Quadros, o Infante foi o “descobridor da ideia de descoberta”.
O Infante D. Henrique (1394 ‑ 1460) foi
o quinto filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre e é geralmente
considerado o homem que mais decisivamente contribuiu para o impulso que levou
à expansão ultramarina portuguesa. Por outro lado, ele é também,
frequentemente, apresentado como símbolo das vontades e dos esforços anónimos
de navegadores, cosmógrafos, mercadores e aventureiros que ajudaram o homem
moderno a construir novas dimensões para a perspetiva do mundo.
Estrutura interna
.
1.ª parte (1.º verso) ‑ As três etapas que presidem à
construção da obra humana, traduzidas pelo mote / aforismo «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».
.
Duas ações ‑‑‑ a vontade divina;
‑‑‑ o sonho do homem;
↓
efeito: o nascimento / a concretização
da obra.
.
Os três «sujeitos» dependem mutuamente, numa relação de causa efeito: sem a vontade
do primeiro, o segundo não sonharia e a obra não poderia nascer.
.
O verso, constituído por três orações assindéticas justapostas (assíndeto e
gradação), organiza-se em torno de formas verbais no presente do indicativo, de
aspeto durativo, exprimindo realidade, atualidade, valor de lei, uma verdade
universal.
. 2.ª parte
(versos 2 a 8) ‑ Desenvolvimento do primeiro verso:
1)
. Desejo de Deus (agente da
vontade):
.
a unidade da terra, através do mar, de forma a servir de elemento de união
entre os continentes e os povos, daí a existência de um conjunto de palavras e
expressões que sugerem a ideia de unidade: «uma», «unisse», «não separasse»,
«inteira»;
.
o caráter navegável do mar, para que o ser humano tivesse acesso ao
conhecimento da Terra.
.
A colocação das formas verbais predominantemente no pretérito perfeito do
indicativo sugere que o princípio em causa foi respeitado e se concretizou.
2)
.
A sagração do Infante: para o cumprimento dessa missão, Deus sagrou o Infante (a decisão de se
aventurar no mar tem origem divina e não num qualquer capricho humano)), isto
é, predestinou-o para os grandes feitos das descobertas («… em ti nos deu
sinal.» ‑ v. 10). Foi, portanto, Deus (cuja vontade é impreterível) quem quis
que o Infante (= os portugueses) sonhasse dominar os mares, desvendar o
desconhecido e estabelecer a comunicação entre os povos e os continentes, a
nível matéria e espiritual / cultural, isto é, que desse sonho nascesse a obra
dos Descobrimentos.
Assim, o Infante é o símbolo do
herói, o agente por vontade divina, destinado a criar uma obra superior.
.
A
forma verbal «Sagrou» encerra grande expressividade:
‑contém conotações
religiosas;
‑ evoca o nome
próprio «Sagres», a escola de navegação fundada pelo Infante, símbolo do início
da construção do império português;
‑ remete para o
caráter mítico e predestinado do Infante, o escolhido por Deus para a execução
da obra, daí que possamos também falar na sua divinização;
‑ traduz o caráter
providencial e iniciático das Descobertas.
.
O complexo verbal «foste desvendando» (v. 4) apresenta a ação como uma continuidade,
como algo que se concretizou de modo progressivo; a forma verbal «desvendando»
(desvendar = revelar, descobrir, mostrar), por outro lado, remete para a ideia
de revelação de algo desconhecido.
.
O sujeito poético dirige-se ao Infante na segunda pessoa do singular
(«Sagrou-te, e foste…» ‑ v. 4); «Quem te sagrou criou-te» ‑ v. 9; «Do mar e nós
em ti…» ‑ v. 10), o que traduz uma relação de proximidade e de cumplicidade.
3)
.
A realização da obra, a sagração:
→ o início da navegação: «foste desvendando»;
→ a descoberta das ilhas da
Madeira e dos Açores até à costa africana: «E a orla branca foi de ilha em
continente»;
→ a passagem do Cabo das Tormentas: «até ao
fim do mundo»;
→ o mar desconhecido a
partir da zona do Cabo das Tormentas: «do azul profundo»;
→ a concretização:
. a
união da terra: «E viu-se a terra inteira»;
.
o seu caráter súbito: «de repente»;
.
o aparecimento: «Surgir»;
.
a ideia de origem, de profundidade; «azul profundo»;
.
a presença do sinal (já na 3.ª estrofe).
.
O percurso da obra:
→ a unificação do mundo alicerçou-se no mar (na «orla
branca»);
→ por mar, atingiu-se uma ilha e depois um
continente;
→ da escuridão se fez luz («clareou»), ou seja, da
ignorância se passou ao conhecimento, a civilização ocidental encontrou-se com
a oriental;
→ e assim
se atingiu, «correndo», «o fim do mundo», assim se eliminaram as barreiras e os
limites;
→ deste modo, do mar (do «azul profundo»), «de
repente», irrompeu a unificação do mundo.
. A realização da obra é sugerida por Pessoa através do recurso a
diversos recursos poético estilísticos:
. a gradação: começou por desvendar «ilha(s)» e «continente(s)», chegando
ao «fim do mundo» e dando assim a conhecer «a terra inteira»;
. as metáforas e as
sinédoques: «desvendando a espuma», «orla branca», «clareou, correndo»;
. a perifrástica
«foste desvendando»;
. o gerúndio
«correndo»;
. a locução adverbial
«de repente»;
. as sugestões
cromáticas e luminosas;
. a aliteração do /r/;
. o verbo «desvendar»,
que remete para a ideia de revelação;
. os adjetivos
«inteira» e «redonda» aponta para a unificação da terra, concretizando-se assim
o desejo expresso no verso 2. Por outro lado, «redonda» aponta para a «esfera»,
o símbolo da unidade e da perfeição cósmica.
3.ª parte
(3.ª estrofe) – Conclusão:
.
a transposição da glória do Infante para o povo português:
‑ Deus sagrou o Infante e criou-o
português;
‑ enquanto tal, simboliza
o povo a que pertence, o que significa que também ele foi assinalado,
predestinado, escolhido por Deus para desvendar o mar desconhecido;
.
o sonho cumpriu-se: o desvendar e a unificação dos mares e a criação do império
(sonho simultaneamente nacionalista e universal);
.
o sonho desfez-se: o império (do Oriente) desfez-se, pertence a outro tempo;
.
a pátria, presentemente, não tem desígnio;
.
o apelo ao cumprimento do destino mítico de Portugal: uma nova e espiritual
missão («Senhor, falta cumprir-se Portugal!» ‑ v. 12). Trata-se do apelo a um
novo sonho, de cariz espiritual, visto que a dimensão material do império já
foi conseguida, ou seja, falta que Portugal se cumpra como pátria e entidade
nacional (notar o uso do presente do indicativo para exprimir urgência). De
notar que o sujeito poético se dirige agora diretamente a Deus, apontando para
o desencadear de um novo ciclo que, no fundo, constitui o regresso ao início do
poema: uma nova vontade divina, um novo sonho do homem e uma nova ação / obra.
Mas, afinal, o que
falhou em todo o processo? Porque se desfez o império? Deus quis, o homem
sonhou e a obra nasceu, mas uma obra efémera, perecível, como tudo o que é
material e humano. A culpa não é de Deus, já que ele sagrou e destinou o Infante e o povo português ao cometimento de
feitos muito acima da sua condição de mortais. Mas como ser humano limitado,
não houve continuidade para o império, que se desfez, daí que Pessoa aponte
para a necessidade de Portugal se cumprir integralmente, de complementar com a
dimensão espiritual a materialidade do império passado, novamente sob a
predestinação divina.
A ação do Infante:
‑ representa o povo
português («… e nós em ti nos deu sinal.» ‑ v. 10) e «foi desvendando
[descobrindo, revelando] o mar», ultrapassando dificuldades;
‑ os seus esforços
foram coroados de êxito («Cumpriu-se o Mar» ‑ v. 11); fisicamente, o mundo
tornou-se um, a terra tornou-se una, os povos e continentes unificaram-se;
‑ o Infante é o herói
que obtém a imortalidade através do cumprimento de um dever individual e
pátrio;
‑ é também o herói
que busca a universalidade, daí a utilização do artigo definido no título («O Infante») e em «o homem» (verso 1) com um valor universalizante;
‑ possui um caráter
divino, dado que foi o eleito, o predestinado por Deus para o cumprimento desta
missão; por extensão, como é português e representa o seu povo, a sua sagração
significa a divinização do homem português;
‑ a sua sagração, a
sua obra, tem como consequência o acesso ao conhecimento: dos limites
geográficos do planeta, do mar, de outros povos, de outras culturas.
. Tom dramático do
poema:
‑ a tensão emocional
resultante da visão da terra redonda surgindo magicamente das profundezas do mar;
‑ as três
personagens:
.
o sujeito poético, que se dirige ao Infante e interpela Deus, significando este
facto a existência de um diálogo (implícito), o que está de acordo com o
caráter misterioso e messiânico do poema;
.
Deus;
.
o Infante.
Recursos
poético-estilísticos
1. Nível fónico
.
Estrofes: três quadras.
.
Métrica: versos decassilábicos
heróicos, acentuados nas 6.ª e 10.ª sílabas.
.
Ritmo predominantemente ternário, alternando com o
ritmo binário.
.
Rima:
. esquema rimático: abab / cdcd / efef;
. cruzada;
. consoante;
. grave e aguda;
. pobre e rica.
A rima permite que certas
palavras-chave se encontrem em posições de destaque: «nasce», «uma», «mundo»,
«português», «sinal», «Portugal».
.
Transporte: vv. 7-8.
2. Nível morfossintático
.
Verbos:
‑ presente: discurso aforístico do
primeiro verso;
‑ pretérito perfeito: narração de
acontecimentos passados;
‑ regresso ao
presente («Falta cumprir-se Portugal») a sugerir urgência, necessidade.
Esta sucessão presente / passado /
presente sugere a dialética hegeliana tese, antítese, síntese e seu retorno.
.
Adjetivos: «redonda», «inteira» ‑ designam um mundo circular,
fechado, uno, todo.
.
Frases curtas, correspondendo seis a um verso.
.
Assíndeto: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».
3. Nível semântico
.
Vocabulário de conotações simbólicas:
‑ «sagrou-te»: talvez
ligada à palavra «Sagres», sugere a escolha do Infante para uma missão divina
(«Deus quer»);
‑ o uso de maiúsculas
(Mar, Império);
‑ «mar»: simboliza o
desconhecido, o mistério, daí as expressões «desvendar a espuma», isto é,
desfazer o mistério, descobrir, ultrapassando as dificuldades que se lhe
deparam; é, pois, o traço de união de ilhas e continentes (vv. 2-3); «nos deu
sinal», ou seja, dar a chave para decifrar o mistério;
‑ «espuma» (branca),
«orla branca» (é o sulco de espuma deixado pelos navios portugueses; simboliza
o longo percurso que tiveram de percorrer para que a empresa dos Descobrimentos
se concretizasse), «clareou», «surgir» (sair das sombras, revelar-se,
conhecer), «do azul profundo» (do mar imenso e profundo, é o símbolo do
desconhecido, em oposição ao «clarear», que é o revelado): estas expressões
sugerem a passagem do mistério para a descoberta, para o conhecimento, passagem
caracterizada como repentina, espetacular, miraculosa; assim o sugere a
expressão «E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir redonda…»;
‑ a visão da «terra
redonda», surgida repentinamente, sugere a ideia de que a obra dos portugueses
é a realização de um plano divino. O redondo, a esfera. É o símbolo da
perfeição cósmica, da unidade (do mundo), da obra completa e perfeita que Deus
quis: «Deus quer… / Deus quis que a terra fosse toda uma…»;
‑ as cores:
.
azul: ligada ao mistério, ao desconhecido (o mar);
.
branco da espuma vem clarear e revelar a «terra inteira, de repente»;
‑ o Infante:
representa o povo português, mas também surge como o símbolo do homem
universal, o herói que realizou um sonho que era vontade de Deus.
.
Imagem e personificação:
«E a orla branca (…) correndo, até ao fim do mundo», a sugerir a rapidez
imparável das Descobertas.
.
Gradação: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», para
explicar a lógica da relação Deus / Homem / obra. De acordo com as segunda e
terceira estrofes, a obra nasceu, o mar passou a unir em vez de separar, o
império cumpriu-se e desfez-se.
.
Apóstrofe: «Senhor».
Bravo!!
ResponderEliminartbm acho
EliminarBravo? Copiado de livros e sem referências.
ResponderEliminarHá muitos anos, um professor de literatura grega ensinou o seguinte: os poemas homéricos «têm lá dentro tudo»; os autores que lhes sucederam no tempo limitaram-se a reescrevê-los com outra roupagem.
EliminarCreio que foi Eça quem disse que, basicamente, escreveu um livro original e que os restantes eram a sua reescrita, alterando as personagens, o tempo e os lugares.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
EliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarA ignorância trouxe-a até aqui. Bravo!
ResponderEliminar