Português: Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes

terça-feira, 8 de abril de 2025

Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes

Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
que quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale apena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!
 
    Este poema pertence à obra Dama de Espadas, publicada em 1988, quando a autora contava 28 anos.

    Nele, deparamos com um «eu» poético bastante sofrido que desenvolve o seu pensamento de forma paradoxal. O sujeito entra numa luvaria à procura de um par de luvas não para as usar, mas para mostrar a sua identidade mais essencial e que melhor  distingue, aquele que as impressões digitais representam e tornam singular. De facto, ele declara, sem pejo, que quer o par de luvas (os pormenores, como a cor, não interessam) para «desvestir» as mãos, não para as esconder.
    
    As mãos estão em ferida, e as luvas (cujos dedos não vale a pena sequer a pena abrir nem polvilhar com pó de talco, visto que não serão calçadas) servem efetivamente “para desvestir as mãos”, ou seja, deverão mostrar as mãos feridas e as respetivas impressões digitais, aquilo que é autêntico, que representa a identidade do «eu».

    O vendedor estranha as mãos magoadas do sujeito lírico: “I / como tem a mão / como é que fez isso?” A palavra inicial é extremamente ambígua de ler, pois tanto pode remeter para a interjeição «ih!», traduzindo o espanto do vendedor, como equivaler ao pronome pessoal inglês de primeira pessoa, que simultaneamente fosse um «ai!» interjetivo da língua portuguesa. De facto, a maiúscula pode sugerir que o «I» remete para  pronome inglês, misturando-o com um grito.

    Por outro lado, justificando o recurso a luvas que desvestem as mãos, o sujeito poético afirma o seu gosto masoquista por ver o próprio sangue. Por último, atente-se no facto de o talco ser usado apenas para abrir as luvas de pelica, o que sugere que o uso das luvas corresponde à adoção de uma espécie de segunda pele, na qual se inscrevem as mais autênticas impressões digitais.

Rosa Maria Martelo, in “A luva e a mão (uma história de salvação)”

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