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domingo, 8 de março de 2020

Análise do capítulo XLIV de Viagens na Minha Terra


Contextualização do capítulo

A carta de Carlos a Joaninha, datada de 1843, ocupa vários capítulos (XLIV-XLVIII) e é lida pela narrador-viajante e cronista da obra, em 1843, quando a recebe das mãos de Frei Dinis, que reencontra ao passar pelo vale de Santarém de regresso a Lisboa.
A carta é, sem simultâneo, uma carta-punhal e um texto autobiográfico e memorialístico, e evoca a tragédia familiar, que termina na mor, física ou moral, de todos os intervenientes.


Estrutura do capítulo XLIV

1.ª parte (linha 1 – “Olha o que será o resto!”): Considerações gerais sobre o passado e a personalidade de Carlos.

2.ª parte (“Tu não ignoras…” – “e não guardei verdade a ninguém.”): Análise da situação da família e dos erros cometidos.

3.ª parte (“Mas espera, ouve…” – Exílio de Carlos em Inglaterra e a sua devoção às três filhas da família que o acolhe.


Mudança de narrador e narratário

Narrador: Carlos autodiegético (1.ª pessoa), com uma dimensão de relato autobiográfico.

Narratário: Joaninha (2.ª pessoa).


Retrato de Carlos

▪ Carlos mostra confusão emocional («confunde-se, perde-se-me esta cabeça nos desvarios do coração.»), algum desespero («Eu estou perdido.») e sentimento de culpa.

Carlos perdeu a sua pureza e o seu idealismo quando integrou a vida em sociedade e aceitou as suas convenções.

Possui uma grande ânsia de viver («excessos»), mas, em simultâneo, sente uma grande frustração existencial por não ser quem sonhou.

Quando se refere ao passado familiar, Carlos mostra-se:
» amargurado («e imaginei-a poluída de um enorme crime…»);
» enraivecido e revoltado («não o podia ver, hoje que sei o que ele me é… Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!»);
» ressentido («… ainda o posso ver menos!») e incapaz de perdoar («… eu, como lhe hei de perdoar eu…»).

No amor, Carlos é uma figura volúvel, egoísta e mentirosa (mente às mulheres que o amam).

Afirma-se «perdido», por duas razões: a sua natureza incorrigível → energia em excesso e coração demasiado ardente; a perda da sua integridade pessoal e da sua honestidade, passando a reger-se pelas convenções, pelos interesses e pelas manhas sociais, o que o deixa profundamente angustiado e a sensação de que falhou.

Duvida que Joaninha o compreenda, pois é mulher, e ele acredita que as mulheres, como são diferentes dos homens, jamais entenderão os seus excessos. No entanto, conta-lhe a verdade, destruindo-lhe as ilusões, para que ela, conhecedora da verdade da natureza masculina, se prepare para as armadilhas do amor/coração.

A sua partida do vale ficou a dever-se ao crime que manchou a casa paterna (a morte do seu suposto pai), ignorando que o verdadeiro era Frei Dinis.

Por outro lado, julgava que a avó tinha sido cúmplice do crime e, não o sendo, culpa-a de omissão e confessa que não consegue também perdoar o adultério da mãe.

Confessa a Joaninha que a amou, mas o seu coração não era inteiramente livre e mentiu-lhe (e a si próprio), ainda que involuntariamente, por isso não se considera merecedor do seu amor.


A carta como analepse e como digressão sobre o amor

2.1. A carta como analepse:
. escrita em maio de 1834 – lida em 1843:
- a juventude de Carlos;
- o exílio em Inglaterra;
- a relação com as três irmãs inglesas;
- regresso a Portugal.

2.2. A carta como digressão sobre o amor:
. o drama amoroso de Carlos:
- a sua paixão (correspondida por Laura);
- a impossibilidade dessa paixão (Laura é comprometida);
- a recordação de Joaninha;
- a aproximação a Júlia;
- a paixão por Georgina;
- a separação, com a partida para os Açores;
. a evolução do sentimento de Carlos;
- “Em breve eu amava perdidamente uma delas” (Laura);
- “… pois nesse mesmo instante distintamente me apareceu diante dos olhos de alma a única imagem que podia chamá-la do abismo: era a tua, Joana!”;
- “Júlia era parte de nós, era uma porção do nosso amor… E já as confundia ambas por tal modo no meu coração, que me surpreendia a não saber a qual queria mais.”;
- “Uma delas, jovem, ardente, apaixonada, quis tomar a empresa de me consolar. (…) Era Soledad. (…) Eu não amei Soledad.”;
. “… todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te.” (Joaninha).


Visão de Joaninha segundo Carlos

É generosa: «tens generosidade».

Não o compreende, por causa da sua natureza de mulher.

É jovem e inexperiente, vista como de outro tempo, que destoa no mundo moderno: «Tu és jovem e inexperiente, a tua alma está cheia de ilusões doces.»

Vive cheia de ilusões: «a tua alma está cheia de ilusões doces».

É uma vítima de ter amado um herói perseguido por um destino adverso: «Tu não compreendes isto, Joaninha, não me entendes decerto; e é difícil».


Visão de Carlos da mulher e da génese do amor

1. Visão romântica da mulher
» natureza diferente do homem: «… as mulheres não entendem os homens.»;
» é um «produto» social e natural que suscita admiração, desejo, amor: «Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama.»;
» a mulher-anjo: «E era um anjo…».

2. A génese do amor
- a admiração
- a beleza
- o espírito «os dotes de alma e do corpo»
- a graça
- o amor romântico:
. é indefinível («O amor não está definido nem o pode ser nunca»);
. distingue-se do flirt, da admiração, do desejo.


Informações sobre o passado da família

A mãe de Carlos manteve uma relação adúltera com Frei Dinis.

Dessa relação nasceu Carlos.

A avó escondeu essa relação dos olhos do mundo.


A vida de Carlos em Inglaterra

No início, Carlos estranhou os hábitos da aristocracia inglesa, protegida e artificial, no entanto depressa se lhe moldou, revelando a maleabilidade do seu caráter.

Adaptou-se também à arte da sedução, aprendendo a flartar, de modo inconsequente, com as três irmãs. No seu caso, a emoção dominava a razão, e ele enganava-se a si mesmo, interiormente.


Carlos, o herói romântico: «Tenho energia demais, tenho poderes demais, no coração».

Carlos luta pelo ideário liberal, pela liberdade.

Temperalmente, é impulsivo, intenso, não admite injustiças nem afrontas.

Sentimentalmente, é um homem sensível, com alma de poeta, que se entrega ao amor de forma excessiva e se deixa dominar pelo coração, pelo sentimento, que coloca à frente da razão.


Recursos expressivos

Metáfora:
- «sabia-a [à casa materna] manchada de um grande pecado, e imaginei-a poluída de um enorme crime»: os erros («pecado», «crime») cometidos por membros da família de Carlos a uma sujidade que conspurca aquele lar para dar conta de que a pureza inicial foi «manchada» e «poluída» pelos comportamentos ilícitos do pai, da mãe e da avó do protagonista;
- «afiz-me a vegetar docemente na branda atmosfera artificial daquela estufa sem perder a minha natureza de planta estrangeira.»: Carlos tinha confessado a Joaninha que a amava, no entanto, pela leitura da carta, declara que amava outra mulher e que ficara fascinado ainda por outras duas. Revela-se, assim, um marialva, egoísta e desonesto no amor, ou seja, um D. Juan.

Agrupamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes encerrado devido ao COVID-19

sábado, 7 de março de 2020

Tema do conto George

O conto centra-se nas três idades da vida: a juventude, a maturidade e a velhice.

As três idades não são, porém, apresentadas no texto de forma linear, antes de acordo com a «viagem» empreendida com o narrador, a partir da sua memória.

Síntese das categorias da narrativa do conto George


“George”
A intriga
Intriga focalizada cinematograficamente, valorizando pormenores.
Regresso de uma artista de renome à vila do interior, onde nasceu, depois de 23 anos de ausência.
▪ Diálogo de mulheres que se cruzam:
» Confronto com a juventude: Gi e George.
» Confronto com a velhice: George e Georgina.
▪ Partida de George no comboio que a levará para longe da vila onde nasceu.
O tempo e a personagem principal
▪ Fusão de três tempos: as três idades da vida
» O presente – George: a pintora bem-sucedida de 45 anos.
» O passado – Gi: “a jovem frágil de dezoito anos”.
» O futuro – Georgina: “a velha” de 70 anos com os “cabelos pintados de acaju”.
▪ Afastamento progressivo da infância e aproximação da velhice:
» A infância está presente, no primeiro encontro (entre Gi e George).
» George e Gi movem-se lentamente, como a simbolizar a impossibilidade de George de ressuscitar o passado e de se despedir dele.
» O segundo encontro (entre George e Georgina) é marcado pela velocidade do comboio e pela sua marcha sem retorno, simbolizando a morte definitiva do passado e a aceleração da marcha do Tempo em direção à velhice.
O espaço
▪ Vila parada do interior                                            Regresso ao passado
» Casa da infância
» Ponto de confluência de lugares e de tempos
▪ Locais de passagem:                                               Visão de futuro
» Viagem de comboio
» As várias casas alugadas
» Amesterdão
» Estados Unidos
A protagonista
▪ George:
» Pintora consagrada de 45 anos, bem-sucedida num universo dominado pelo masculino.
– Características da personagem:
. Protótipo da mulher independente, profissionalmente realizada.
. Crença no poder imortalizador da arte.
. Acentuado egocentrismo.
. Consciência plena do envelhecimento e da solidão.
. Solidão combatida pela presença do dinheiro acumulado.

» O nome inusitado de uma figura feminina
– Abreviatura possível de Georgina
– Pseudónimo literário de duas conhecidas romancistas do século XIX
. Escritoras profissionais que viviam da escrita
. Pseudónimos masculinos, visando a aceitação da obra
> A francesa George Sand (1804-1880)
> A inglesa George Eliot (1819-1880)
– Evocação de uma elite intelectual e artística
. Escândalo das ligações sentimentais à margem das convenções
> Hábito de fumar em público
> Uso frequente de indumentária masculina
> Extravagantes cores dos cabelos de George
O narrador
▪ Focaliza, na terceira pessoa, os acontecimentos, conhece o passado e o mundo interior das personagens.
▪ Mistura a sua voz com os pensamentos da personagem principal e com as suas falhas de memória.
▪ Apresenta uma visão crítica e desprovida de autopiedade que a protagonista tem de si própria.
▪ Reproduz as «falas» de Gi e de Georgina em itálico.
A atualidade do conto
▪ A condição feminina:
» A situação (e o sucesso) profissional
» A independência económica
» O amor
▪ Reflexão sobre a Morte e sobre o Tempo.
▪ Mundividência invulgar e sensibilidade artística:
» Reflexão sobre a complexidade da natureza humana
» Reflexão sobre a constante (re)definição da complexidade humana
▪ Fusão da arte narrativa com diversas formas de arte
» Pintura
. Modigliani (1884-1920): pintor italiano
. Edvard Munch (1863-1944): pintor norueguês
» Cinema
» Fotografia

Manual Palavras 12

O diálogo entre realidade, memória e imaginação

A metamorfose de George ao longo da vida

A complexidade da natureza humana no conto George

Este conto constitui uma profunda reflexão sobre a complexidade da natureza humana, centrada na figura de George: (sobre) o fracasso do amor, a separação, a dificuldade de atingir a realização profissional, a condição feminina, a efemérida da vida, a solidão, o vazio e a morte. Por outro lado, o conto compreende uma reflexão sobre a intemporalidade da arte e a imortalização do artista.
Através do desdobramento da protagonista, bem como pela duplicidade do seu nome (entre feminino e masculino), o conto possibilita uma reflexão sobre as diferentes fases da vida e sobre os caminhos que o ser humano trilha, uma vez por opção, outras por imposição das circunstâncias que o rodeiam.

Quando jovem, vivia inconformada com as limitações da conceção de vida que a família e a sociedade local lhe ofereciam, por isso decidiu partir, sozinha, para uma cidade e um país desconhecidos. O seu enorme desejo de liberdade e de independência, bem como a vontade de diversificar ao máximo as suas experiências de vida, levaram-na a alterar constantemente o seu aspeto físico, a viver os afetos e o amor com grande desprendimento e até superficialidade e a mudar frequentemente de local de residência. Além disso, vivia sempre em quartos alugados ou casas arrendadas mobiladas para que não se apegasse aos objetos. O desejo de ser livre e independente predominava. Apesar de conservar uma fotografia sua da juventude (de quando era Gi), prefere o esquecimento e não chora pelo passado.
Em suma, George tornou-se uma pintora de sucesso, famosa e rica. Perante a imagem (antecipada) da sua velhice e da solidão que a espera, mostra-se incomodada e arrogante, preferindo os pensamentos agradáveis e confiante de que o dinheiro constituirá a sua tábua de salvação.

Relacionado com esta questão estão os nomes da protagonista. De facto, a evolução da sua vida reflete a complexidade humana, também espelhada no nome. Assim, a abreviatura Gi, que constituía o tratamento carinhoso que lhe foi dado durante a infância e a juventude, está associada a uma fase de submissão aos ditames familiares e sociais. Já George, o nome correspondente ao presente, à vida adulta da protagonista, representa a rutura que ela pretendia, marcada pelo desejo de liberdade e independência. Note-se que o nome não é português, o que evidencia o cosmopolitismo que tanto procurava e sugere alguma ambiguidade relativa ao género (o nome é masculino), indiciado também pelo facto de o narrador se referir ao(s) seu(s) amor(es), sem especificar se se trata do género masculino ou feminino (excluindo a figura do primeiro namorado, Carlos). Georgina é o nome de registo da personagem, assumido pelo narrador quando ela imagina como será a sua velhice, numa atitude aparente de resignação, de assunção de uma identidade inteira e final.

Uma terceira questão respeitante ao problema da complexidade da natureza humana neste conto tem a ver com a falta de amor, tema recorrente na obra de Maria Judite de Carvalho.
No texto, por exemplo, George, em vez de amor, tem amores, isto é, relações frágeis e efémeras, passageiras, todas provisórias, como provisórias são as casas e as cidades onde mora.
Essa ausência de afeto e a solidão que afeta as personagens da obra da escritora – tanto homens como mulheres – têm como consequência, se não a morte, uma espécie de morte em vida, «uma existência desprovida de sentido que, ao longo dos anos que nas suas memórias se vão confundindo, se arrasta e pesa mais do que a própria morte.».
A vida, metaforicamente vista como uma viagem, é complexa, tanto na juventude como na velhice. Famosa além-fronteiras, George configura o protótipo da mulher independente e profissionalmente realizada, aparente sem razões para lamentar o passado e, ainda medos, recear o futuro. No entanto, esse medo assalta-a de forma imprevista e cruel no momento em que regressa à sua terra natal e que vai suscitar um confronto quer com o passado quer com o futuro.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Símbolos do conto "George"

▪ A vila: o passado e o retorno à infância.

▪ A fotografia:
→ ligação ao passado;
→ fixação da juventude perdida;
→ imagem ideal da juventude intocada e dos sonhos por cumprir.

▪ O comboio: a marcha rápida para a velhice, a viagem do passado para o futuro.

▪ Os quadros de George: autorretratos; o sucesso profissional e financeiro.

▪ O pincel, as telas, as tintas: a máquina fotográfica e a fixação do momento.


Conto "George": as 3 idades da vida

segunda-feira, 2 de março de 2020

Análise do capítulo XX de Viagens na Minha Terra

Estrutura do capítulo

1.ª parte (do início até “à menina do seu nome”): Apresentação de um quadro idílico: Joaninha, adormecida, no meio da natureza.

2.ª parte (de “Com o aproximar dos soldados” até “há dois anos?”): Caracterização de Carlos.

3.ª parte (de “Dizendo isto” até “Agora vamos, Carlos”): Encontro e conversa entre Carlos e Joaninha.

4.ª parte (de “E falando assim” até ao fim do texto): As personagens dirigem-se para o vale de Santarém.


Retrato de Joaninha

Joaninha é uma jovem campestre, simples e de sentimentos e intenções puros, e revela-se espontânea na forma de agir, bem como terna e afetuosa.

Fisicamente, possui um corpo esbelto (“formas graciosas”) e o rosto “expressivo”.

Joaninha representa a pureza, a autenticidade e a simplicidade da Natureza. Por essa razão, Garrett mostra grande cuidado na descrição do cenário que a envolve, onde predomina a verdura.

Joaninha, adormecida, surge como um elemento indissociável (isto é, enquadrado) do espaço em que se encontra; personagem e espaço parecem fundir-se num todo, iluminadas pela luz do crepúsculo, de modo que é difícil distinguir os limites de uma dos da outra. Este enquadramento da personagem na natureza serve para estabelecer uma relação de afinidade e sintonia entre ambas, de perfeita harmonia e sintonia, que permite sugerir que Joaninha é natural, autêntica (sem o artifício de outras mulheres) e simples.

De facto, a sua apresentação de Joaninha é associada a um quadro de naturalidade. Desde logo, é apresentada como alguém com quem o narrador se deparou por acaso e é descrita exatamente dessa forma: adormecida, nem sentada nem deitada, num tufo de erva, com as formas do corpo realçadas pelo assento natural em que se encontra. Além disso, a expressão «sem arte nem estudo» sugere exatamente essa naturalidade do quadro de Joaninha adormecida.

▪ Joaninha tem os olhos verdes, o que constitui uma alusão à esperança e à fecundidade da terra verdejante. No fundo, representa a própria terra-mãe, ao mesmo tempo que evoca um passado que constitui uma espécie de paraíso perdido: «Sobre uma espécie de banco rústico de verdura, tapeçado de gramas e de macela brava, Joaninha, meio recostada, meio deitada, dormia profundamente”.

O rouxinol:
a) Simboliza o sentimento amoroso: Joaninha, adormecida, era embalada pelo canto harmonioso do rouxinol, que a acompanhava. O barulho dos soldados silenciou-o, mas a chegada do misterioso oficial inspirou-lhe o canto, que se tornou um prelúdio do amor. Símbolo, como Joaninha, da pureza do Vale, o rouxinol faz-se aqui eco do sentimento a despertar nela.

b) Representa a graciosidade e o caráter natural de Joaninha; surge como o prolongamento metonímico da natureza e da personagem que se lhe associa. A “torrente de melodias, vagas e ondulantes como a selva com o vento, fortes, bravas, e admiráveis de irregularidade e invenção, como as bárbaras endeixas de um poeta selvagem das montanhas” não constitui uma mera função de enquadramento decorativo: essas melodias trazem consigo os sentidos da espontaneidade, da naturalidade e da criatividade anticonvencional que se concentram nos olhos verdes de Joaninha.
c) Serve para preparar o encontro amoroso entre Joaninha e Carlos.

Características românticas:
» Joaninha representa a mulher-anjo;
» a paisagem serve de enquadramento ao reencontro de Carlos e Joaninha;
» o rouxinol: inspira premonições como o sofrimento, a desilusão amorosa, a morte (Menina e Moça).


Retrato de Carlos

Num segundo momento, verifica-se a entrada em cena de uma nova personagem (um oficial), procedendo o narrador, de seguida, à elaboração do seu retrato, enquanto Joaninha permanece adormecida.

Antes de introduzir Carlos, o narrador dirige-se familiarmente, num registo coloquial, às «amáveis leitoras» (narratário), pois serão as que maior interesse terão em conhecer o oficial. Por um lado, mais uma vez a mulher é «chamada» quando se vão tratar questões do foro amoroso; por outro, o narrador consegue interessar quem o lê na história, quase levando a que sejam também parte dos acontecimentos.

▪ A utilização da expressão «entrada em cena de um novo ator» reflete a novidade da escrita das Viagens, visto que o narrador interpela constantemente o leitor, optando por uma escrita de caráter conversacional e informal. Por outro lado, a forma como a novela é introduzida no relato da viagem, o predomínio do diálogo e a constante interação com o leitor assemelham a obra a um texto dramático, acentuando o seu hibridismo.

Este retrato é feito a partir do aspeto físico para o espiritual.

O narrador apresenta a personagem envolta em grande anonimato e mistério, designando-o meramente por “O oficial”, estratégia que favorece a curiosidade das “amáveis leitoras”.

Idade: menos der 30 anos.

Fisicamente:
» é um jovem militar, mas já com feições de homem feito/aspeto de adulto e um rosto marcado pela vida e pelas preocupações;
» é magro, mas de peito largo e forte;
» é de estatura mediana;
» tem barba e cabelos pretos;
» tez / pele clara;
» os olhos são vivos, pardos e não muito grandes, mas eloquentes;
» a boca é pequena;
» a testa é alta;
» tem um busto clássico;
» está vestido com uma farda militar.

Psicologicamente:
» é gentil e determinado;
» é elegante e de passo enérgico;
» a compleição e os olhos pardos e grandes indiciavam que se tratava de um homem de talento e com a nobreza de um «caráter franco, leal e generoso», isto é, inteligência, talento e alguma irreflexão;
» tem uma personalidade «pouco vulgar»;
» é impulsivo, arrebatado e orgulhoso, ora sério, ora alegre.

A componente física do retrato serve como veículo de acesso às características psicológicas e emocionais.

▪ A descrição de Carlos é feita de forma gradual e entremeada de divagações. O narrador começa pela sua estatura, o vestuário, os olhos, a boca, o rosto, o cabelo, o busto e termina com uma síntese que remete para a excecionalidade da personagem: «Daquele busto clássico e verdadeiramente moldado pelos tipos da arte antiga, podia o estatutário fazer um filósofo, um poeta, um homem d’estado, ou um homem do mundo, segundo as leves inflexões d’expressão que lhe desse». As divagações que acompanham a descrição acentuam-lhe os traços românticos.

▪ O narrador foca especialmente os olhos e o olhar de Carlos: «Os olhos pardos e não muito grandes». Ora, o olhar do homem romântico vê coisas que os outros não podem/conseguem ver e transcende a realidade comum. Daí que os olhos da personagem se caracterizem por «uma luz e viveza imensa, [que] denunciava o talento, a mobilidade do espírito».

Por outro lado, o narrador valoriza em especial certos pontos estratégicos da fisionomia, em grande parte coincidentes com o que em Joaninha é também descrito: os olhos, lugar preferencial de projeção do temperamento e das emoções, a boca e o rosto.

▪ A comparação «mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre» destaca a importância que o coração assume para o homem romântico. Por outro lado, a antítese entre o «corpo delgado» e o «peito largo» da personagem realça a valorização dos sentimentos, associada à ideia de um coração grande e generoso.

A fisionomia revela uma personagem marcada por traços de excecionalidade bem típicos do herói romântico:
» a superioridade e impulsividade;
» o viver pelo sentimento;
» a luta por causas;
» as antinomias (“fácil na ira, fácil no perdão, etc., mas sobretudo a oscilação entre os polos da mobilidade e da gravidade);
» o pendor da marginalidade e para o isolamento existencial que se adivinham no “caráter pouco vulgar e dificilmente bem entendido”;
» ser incompreendido e com características de uma certa genialidade.

Estes factos são confirmados pela trajetória biográfica de Carlos: ao contrário de Joaninha, ele é dominado por uma sistemática tendência para a mudança – a partida do vale de Santarém, a experiência no exílio, o regresso ao vale, seguido de nova partida (definitiva), as mudanças no campo amoroso e, por fim, no campo social.

Crítica: o retrato é interrompido pelo narrador para criticar o desprezo a que foi votado o uniforme militar nacional (patriotismo romântico): “Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações…”.


Encontro entre Carlos e Joaninha

Joaninha acorda e não quer crer que é Carlos quem está à sua frente, porque tinha sonhado que ele morrera, tal como a avó (presságio de tragédia), daí a grande emoção que evidencia, traduzida pelas pausas no seu discurso, marcadas pelas reticências, pelas exclamações e pelas repetições de palavras ou expressões.

É revelado o parentesco entre as duas personagens: são primos (“– Carlos, meu primo…”) e de algo que ultrapassa o mero parentesco familiar entre primos (“… sonhava com aquilo em que só penso… em ti.”; “e abraçaram-se num longo, longo abraço – com um longo, interminável beijo…”).

As duas personagens começam por se tratar por «prima(o)» e «irmã(o)» e por exprimir a saudade que sentiam um do outro, mas acabam por manifestar o amor que nutrem mutuamente, selado por um beijo.

Os sentimentos expressos por Carlos e Joaninha estão em consonância com o espaço em que se reencontram – o ambiente natural do vale. Assim, é com naturalidade e espontaneidade que manifestam os sentimentos puros que nutrem um pelo outro.

São também bem visíveis os preconceitos sociais que os envolvem: a preocupação com a honra (“E sós, sozinhos aqui a esta hora! (…) E que dirão? (…) Mas quem não souber, pode dizer…”).

A felicidade absoluta e perfeita das duas personagens não pode continuar, porque tudo é efémero. Se assim não fosse, «os anjos» trocariam o céu pelo paraíso que seria a terra: «Senão… invejariam os anjos a vida na terra”.

Um outro facto relevante consiste na revelação a Carlos da cegueira da avó.


Informações sobre a família

Introdução de duas novas personagens: Frei Dinis e a avó, cega.

Joaninha e Carlos são primos.

A cegueira da avó tem uma causa triste, não revelada ainda.

Carlos desconhece coisas, que Joaninha contará mais tarde.

Joaninha e a avó pensavam que Carlos tinha morrido.


Linguagem e recurso expressivos

Sinédoque: “o trato das armas” – é uma sinédoque da vida militar, visto que se associa a parte (as armas) ao seu todo (o exército, a carreira militar, na qual as armas são elemento essencial).

Estrangeirismos: demi-jour, coquette, boudoir, great coat.

Metáforas:
- «quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras»: designa o ato da escrita.

Comparação:
- com «pintores da Idade Média», que escreviam uma espécie de legendas por baixo das pinturas que pintavam, para que estas fossem mais bem compreendidas – o narrador faz o mesmo e as suas divagações correspondem às suas legendas.

Tom coloquial: «Voltemos ao nosso retrato».

Caracterização pela negativa: «Os olhos pardos e não muito grandes…».

Frases curtas.

Pontuação expressiva:
» frases exclamativas: «Carlos, meu primo… meu irmão!»;
» frases interrogativas: «Pois tu sonhavas?»;
» frases interrompidas pelo uso de reticências: «Tu não morreste…».

Vocativos: «Carlos, Carlos!».

Os últimos recursos referidos estão presentes, neste capítulo, de forma a recriar a linguagem oral e, simultaneamente, sugerir o estado de espírito de Joaninha, colhida de surpresa pelo inesperado encontro com o primo.

Mistura da cultura erudita e popular: por um lado, faz-se uso de formas de relacionamento informal com o interlocutor e, por outro, recorre a referências artísticas que só o leitor culto acompanha: o teatro, a pintura, a escultura.

Digressão: «Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações – que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do exército… por muito português de mais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha!».

Coloquialidade: «Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato».

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