● Função da
Introdução
▪ Camilo Castelo Branco prepara o leitor e sobretudo a leitora
para a história que vai contar. A voz que encontramos na Introdução não é a do
narrador que narra a ação dos capítulos da novela, mas a do autor que nos
fornece informações acerca das origens da história e das suas personagens.
▪ Assim sendo, a Introdução funciona como uma apresentação da
obra, como uma espécie de prólogo (note-se que, na primeira edição, de 1862,
este texto introdutório surgia como um prefácio), visto que nela é sintetizada
em linhas gerais a história que vai ser narrada (“Amou, perdeu-se, e morreu
amando”) e o narrador-autor se esforça por lhe conferir credibilidade, levando
o leitor a aderir emocionalmente ao seu relato.
● Motivo subjacente à
escrita da obra
A
similitude das situações vividas por Camilo Castelo Branco e Simão Botelho, seu
tio, permite ao escritor denunciar a injustiça de que foi vítima ao ser preso pela
relação adúltera com Ana Plácido e, em simultâneo, reivindicar o seu direito ao
amor. Assim sendo, implicitamente, Camilo defende-se a si próprio.
● Estrutura da
Introdução
▪ 1.ª parte (do início até “Foi para a
Índia em 17 de março de 1897): Relato da descoberta e consulta de um documento
oficial e transcrição do seu conteúdo.
▪ 2.ª parte (de “Não seria fiar
demasiadamente…” até ao final): Comentários do narrador e antecipação do conteúdo
da novela.
● Transcrição do
assentamento da Cadeia da Relação
▪ A Introdução inicia-se com a transcrição do registo (o
assentamento) da entrada de Simão Botelho na Cadeia da Relação do Porto, que
encontrou nos “livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da
Relação do Porto”.
▪ Que dados encontramos no registo de entrada?
– Nome completo da personagem:
Simão António Botelho.
– Estado civil: solteiro.
– Profissão/Ocupação:
estudante na Universidade de Coimbra.
– Naturalidade: Lisboa.
– Idade: 18 anos.
– Filiação:
. Pai: Domingos José Correia Botelho.
. Mãe: Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco.
▪ Objetivo da transcrição do documento
– A transcrição de um documento autêntico,
oficial, que alude a uma pessoa real, permite ancorar a narração que se vai
seguir numa base histórica, ou seja, confere-lhe veracidade/credibilidade,
torna-a verídica ou, pelo menos, verosímil, aos olhos do leitor. Dito de outra
forma, quer fazer-nos crer que os acontecimentos relatados na obra correspondem
à vida de Simão Botelho, tio de Camilo Castelo Branco. Quando Camilo denuncia a
sua situação de preso na cadeia, onde descobre informação sobre o seu tio,
procura criar no leitor a ideia de que o que vai narrar se baseia em factos
reais, daí as referências à descoberta do assentamento que documenta a entrada
ali de Simão Botelho e a sua partida para o degredo em 17 de março de 1807.
– A transcrição de documentos e/ou a
inclusão de notas de rodapé informativas enquanto forma de dar credibilidade,
de conferir veracidade ao que é narrado, ocorre noutras passagens da novela
(bem como noutras obras do escritor). Por exemplo, encontramos notas de rodapé
no Capítulo I (com informações sobre os irmãos de Domingos Botelho) e na
Conclusão (nomeadamente a data da morte da irmã predileta de Simão).
– A transcrição serve ainda para
apresentar, desde já, Simão.
▪ Por outro lado, as datas inscritas no registo
permitem situar, temporalmente, a ação da novela no início do século XIX. A
este propósito, há que saber que, na realidade, Simão Botelho não partiu para o
degredo com 18 anos nem morreu, em alto mar, a caminho do exílio, como
apresentado da obra. De facto, chegou a viver na Índia (há notícias da sua
presença em Goa em 1808, por exemplo), o que indicia que alguns dos factos da
novela não correspondem à realidade, antes foram adulterados por questões
ficcionais (cf. Amor de Perdição, edição didática de Luís Amaro de
Oliveira). De igual forma, o motivo que o levou à prisão não foi o homicídio de
Baltasar.
● Objetivo do
narrador-autor ao folhear os livros
O narrador, ao folhear os livros no
cartório da prisão, desejava conhecer melhor a história do seu tio Simão
Botelho, de quem tinha ouvido contar muitas histórias, desde criança, e que
tinha estado preso na mesma cadeia que ele mesmo.
● Narrador-autor
▪ Ponto de vista
O narrador adotará uma posição
subjetiva face aos acontecimentos narrados, visto que, desde o início, não
esconde a sua empatia relativamente a Simão, pelo facto de, por amor, aos 18
anos, ter sido obrigado a abandonar a sua família e o seu país, e por ser seu
tio paterno, seu parente.
▪ Sentimentos – Discurso emotivo
• Num discurso emotivo, o narrador reflete sobre a vida de
Simão, distinguindo nela duas fases: a primeira corresponde à descoberta do
amor (“O arrebol dourado e escarlate na manhã da vida! As louçanias do coração
que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores!
Dezoito anos! O amor naquela idade!”); a segunda cinge-se à dor e à desilusão
que o amor causou (“E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o
céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem
dignidade, nem um amigo!”).
• Ao ler o assentamento da Cadeia da Relação, o narrador-autor
comove-se profundamente, manifestando, entre outros, os seguintes sentimentos:
amargura pela situação vivida por Simão; respeito pela personagem, nomeadamente
pelos seus ideais; ódio (= indignação, revolta) relativamente à hipocrisia e
conservadorismo de uma sociedade que tudo sacrifica em nome da sua honra.
▪ Causas do estado de alma
Camilo escreveu a novela enquanto
estava preso na Cadeia da Relação do Porto, por ter cometido adultério com Ana
Plácido. Assim sendo, ter-se-á identificado com a situação vivida pelo tio,
Simão Botelho, que também foi preso em decorrência de um caso de amor, pelo que
a mágoa que sente perante uma situação injusta, o respeito por aqueles que
lutam pelo amor e o desprezo por uma sociedade hipócrita e retrógrada são
aplicáveis também à sua pessoa.
▪ Vozes
Por um lado, na Introdução está
presente a voz do narrador-autor, que refere pessoas e acontecimentos reais com
mentalidade e objetividade. Por outro, identifica-se o narrador
heterodiegético, que será o responsável pela dimensão ficcional da novela e
que, além de narrar, faz sentir a sua presença também através de comentários,
reflexões e juízos avaliativos, assumindo uma posição subjetiva.
▪ Identificação com Simão
O narrador identifica-se com Simão
Botelho, quando, por exemplo, afirma que sentiu um “doloroso sobressalto”,
“amargura e respeito” e “ódio” ao ler o registo de assentamento. Além disso,
prevê que possa vir a ter dissabores, causados pelos “frios julgadores do
coração”, no momento em que desmascarar a “falsa virtude” dos inimigos do amor.
Refere-se, assim, aos seus próprios inimigos, que o “julgaram” e prenderam pela
relação com Ana Plácido.
Por outro lado, como já sabemos,
Camilo estava preso na Cadeia da Relação pelo já referido caso de adultério com
Ana Plácido, uma senhora casada, vivendo uma situação semelhante à do seu tio,
que aí estivera igualmente encarcerado por homicídio. Assim sendo, de
semelhança entre os dois existe a questão do encarceramento e do motivo do
mesmo: o amor.
▪ Linguagem e estilo
Após a transcrição do documento, o
narrador-autor dirige-se ao leitor e faz uma série de comentários, nos quais
predomina uma linguagem emocional:
• Frases curtas: “Dezoito anos!”; “É triste!”.
• Frases exclamativas: sexto e sétimo parágrafos.
• Repetições: “Dezoito anos!” (três vezes).
• Metáforas: “arrebol dourado e escarlate da manhã da vida”.
• Enumerações: “nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem
reabilitação, nem dignidade, nem um amigo”.
• Vocabulário associado à ideia de infelicidade: “dó”,
“triste”, “choraria”, “doloroso”, “amargura”.
• Interrogação retórica: “[…] por amor da primeira mulher que
o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”.
• Reticências: traduzem hesitações do narrador.
• Pronome indefinido “tudo” (“[…] irmãs, mãe, vida, tudo…”):
retoma todos os elementos enumerados (catáfora) e amplifica a ideia da perda,
que, por ser absoluta/total, se torna ainda mais dramática.
Esta linguagem reflete o
envolvimento emotivo do narrador na narrativa.
▪ Interpelação ao narratário:
• O narrador-autor dirige-se diretamente ao “leitor” e à
“leitora”, que constituem o narratário da obra, procurando despertar o seu
interesse para a história que vai narrar.
• O assentamento transcrito serve, além do já referido, para
despertar a curiosidade e, principalmente, a piedade do leitor e apelar à sua
simpatia para com Simão, acreditando que não ficaria indiferente à tragédia de
Simão e de Teresa: “Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor,
se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó”.
• Deste modo, entre toda a informação apresentada na
Introdução, o narrador-autor enfatiza os seguintes dados relativos para
sensibilizar o leitor perante o destino de Simão: a sua juventude, a inocência
do primeiro amor, a pena a que foi condenado (o degredo), a separação
definitiva da família, a falta de liberdade. E fá-lo socorrendo-se de um
discurso pautado pela subjetividade e pela emoção (atente-se na pontuação
emotiva), o que pode indiciar o seu envolvimento na história, ao mesmo tempo
que procura envolver também o leitor.
• Por isso, dirige-se primeiro ao leitor, no sentido geral
(“Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor…”), ao leitor do
sexo masculino (“O leitor decerto se compungia…”) e, por último, à leitora (“e
a leitora…”).
• Apesar dessa referência ao leitor, o narratário que visa é a
leitora. O narrador tem a noção de que o homem reagiria à história que irá
contar de forma diferente da mulher, por isso prevê reações diferentes: “O
leitor decerto se compungia”; “e a leitora […] choraria!”.
• A leitora é caracterizada como uma figura bondosa e piedosa
(“a criatura mais bem formada das branduras da piedade”) e solidária com os
desafortunados (“amiga de todos os infelizes”) e que choraria, se comoveria,
pois a história de amor entre Teresa e Simão contém todos os ingredientes
necessários à comoção de quem a ler. Dado que, na sua ótica, as leitoras eram
mais sensíveis, dirige-se sobretudo a elas, dando a entender que a história as
comoverá muito.
• Esta estratégia, por um lado, prepara os leitores para a
narrativa que irão ler e, por outro, é uma forma de o narrador procurar captar
a sua empatia com o protagonista. Afinal, trata-se de uma história triste: a
história de um jovem – Simão Botelho – que perdeu tudo por amor: “honra,
reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida”.
• E qual é a causa desta desgraça? O amor: “… tudo, por amor
da primeira mulher…”. É a absolutização do amor: o sentimento amoroso é tudo e
está acima de tudo.
● “Amou, perdeu-se, e
morreu amando”
Esta frase resume a estrutura
tripartida da história de amor de Simão:
• Introdução: Simão “amou, isto é, apaixonou-se por
Teresa, e foi correspondido.
• Desenvolvimento: Simão cometeu um homicídio e
“perdeu-se por amor”.
• Conclusão: “e morreu amando” – deixou-se morrer pelo
seu amor impossível por Teresa.
● Linhas
estruturantes da novela
A Introdução antecipa algumas das
linhas estruturantes da obra, como, por exemplo, as seguintes:
• o amor-paixão: este é o tema da novela que vai ser narrada e
que está sintetizado na frase “Amou, perdeu-se, e morreu amando”;
• o herói romântico: Simão é o protagonista que perdeu tudo
por amor, um herói romântico;
• a sugestão biográfica: há semelhanças entre Simão e o
narrador, cuja figura, por sua vez, se confunde com a do próprio autor (preso,
tal como Simão, por amor e na cadeia da Relação do Porto);
•o caráter memorialístico da obra: o narrador assume-se como
alguém que relata as memórias de uma história cujo protagonista é verídico e
seu parente;
• a crónica da mudança social: Simão representa a mudança da
sociedade, que assenta na noção de liberdade e no valor do indivíduo e que se
opõe a uma sociedade antiga, assente na falsa virtude, como Camilo assinala no
final da Introdução.
● Crítica
No final da Introdução, o
narrador-autor afirma que a leitura do registo de entrada de Simão na prisão
lhe despertou o ódio (“Ódio, sim…”), a indignação (“o doloroso sobressalto”) e
a amargura (“e lidas com amargura”) perante a injustiça de que o protagonista
da obra e Teresa tinham sido vítimas.
Aqueles que se opuseram ao amor
(entre ambos) são apelidados de “frios jugadores do coração”), dado que se
mostraram insensíveis perante os projetos de felicidade de Simão e Teresa.
No entanto, esta crítica não se
restringe ao contexto da novela; de facto, estende-se e dirige-se sobretudo a
todos aqueles que, possuidores de uma falsa virtude, se tornam bárbaros pela
defesa da sua honra: “A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não
fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos
frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa
virtude dos homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.” Deste modo, o
narrador assume-se como um narrador judicativo.
É possível que esta crítica
suscitada pelo amor de Simão e Teresa tenha sido espoletada pelo caso pessoal
de Camilo Castelo Branco. Que semelhanças existem entre as duas situações?
Simão foi julgado por causa do amor por Teresa (em virtude do qual assassinou
Baltasar Coutinho) e preso na Cadeia da Relação do Porto; Camilo foi igualmente
levado a julgamento por amor, isto é, por causa da relação amorosa que mantinha
com Ana Plácido, uma mulher casada, e esteve preso no mesmo local. Por outro lado,
o narrador chama a atenção para a injustiça que constitui a condenação do seu
tio Simão, sugerindo, assim, a injustiça da sua própria condenação e da de Ana
Plácido. Por último, apela à comiseração do leitor para a história que vai
narrar e, indiretamente, para a sua própria história (“Escrevi o romance em
quinze dias, os mais atormentados de minha vida.”).