terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
O título Viagens na Minha Terra
domingo, 9 de fevereiro de 2020
Viagens na Minha Terra : contexto português
Nesta época, surgiu, em Portugal, uma burguesia de caráter rural que aspirava ao poder e a viver ao nível da burguesia já existente. Era uma burguesia de pequenos rurais, cujo poder que possuía advinha sobretudo do dinheiro e que desejava investir na terra, detida pelo clero. Esta classe social era, pois, a que possuía mais imóveis, fonte de poder que se estendia também às letras e ao ensino (poder intelectual).
No entanto, determinados fatores contribuíram para a perda desse poder por parte do clero:
- a ação de Mouzinho da Silveira;
- a ação de Joaquim António de Aguiar ("Mata-Frades").
Ao chegarmos à segunda década do século XIX (vésperas da Revolução Liberal), Portugal vivia uma situação de crise em diversos planos da vida nacional:
-» crise política, que se evidencia pela ausência do rei e da corte no Brasil, tornando-se o Rio de Janeiro a capital portuguesa, onde se sediaram os órgãos de administração. Em 1815, o Brasil foi elevado à categoria de reino e, em 1821, D. João VI embarcou para Portugal. Porém, o movimento separatista já se tornara muito forte no Brasil e, em 1822, deu-se a independência daquela colónia portuguesa;
-» crise ideológica, sobretudo graças à alteração das ideias políticas, considerando-se a monarquia absoluta como um regime obsoleto, opressivo;
-» crise económica, resultante designadamente da emancipação económica do Brasil que, após a independência, começou a estabelecer contactos económicos com outros países, quando anteriormente eram exclusivamente com Portugal;
-» crise militar, originada pela presença de oficiais ingleses em altos postos do nosso exército. Com essas presenças, os nossos oficiais veem-se preteridos nas promoções, o que causa uma sensação de mal-estar no exército e conduz à instabilidade.
Foi nesta conjuntura que surgiu a Revolução Liberal de 1820, por impulso de um conjunto de burgueses do Porto, homens politicamente doutrinados que frequentavam o Sinédrio, onde se reunia um grupo de intelectuais.
Na tentativa de modificar a situação, este grupo começou por receber a colaboração de militares das guarnições do norte e, mais tarde, de militares do sul e a revolução acabou por não encontrar resistência. Pelo contrário, foi bem aceite.
Surgem então novas classes e estabelecem-se novas relações sociais: a nova burguesia cria medidas protecionistas para os seus negócios. Mas as pessoas pertencentes ao povo rural eram, quase na totalidade, analfabetas, pelo que a revolução não trouxe igualdade cultural.
Estas transformações vinham na sequência da acumulação de novos temas discutidos por intelectuais, que se reuniam em tertúlias literárias. Uma das mais conhecidas foi a da Marquesa de Alorna, na qual participavam figuras como Alexandre Herculano e Filinto Elísio.
A partir daqui, reforça-se a ideia de que a literatura devia ser um instrumento de transformação de uma nação, transformação que carregava consigo um novo estilo, novas aspirações. Simultaneamente, há também um novo acesso das massas burguesas à cultura: passa a ler-se mais e aparecem novos periódicos.
É cerca da terceira década do século XX que surgem os primeiros poemas portugueses considerados como marco do nascimento do Romantismo pátria lusa; são os poemas Camões e D. Branca de Almeida Garrett, que tinha feito a sua formação na Europa, onde estivera exilado.
Mas será que deveremos considerar estes dois poemas acima citados como iniciadores do Romantismo português?
Não propriamente, porque não são obras com cariz totalmente romântico. Surgem isolados num contexto social e estético-literário, não estabelecendo por si uma corrente literária autónoma e sistematizada. Estes poemas não apresentam ainda um corte radical com os modelos arcádicos, sobretudo no campo formal. É mais correto escolher uma data posterior à da publicação destes poemas para marcar a data da verdadeira implantação do Romantismo em Portugal. Essa data é o período que decorre entre 1835 e 1837 e que coincide com a fase seguinte à do regresso dos emigrantes e exilados devido à guerra civil interna.
Em síntese, podemos afirmar que a introdução do Romantismo em Portugal se ficou a dever sobretudo a dois emigrados: Alexandre Herculano e Almeida Garrett.
Síntese – Contextualização
. Finais do século XVIII, início do século XIX:
a) Europa – Revolução Industrial
– Revolução Francesa – Alemanha
– Romantismo europeu – Inglaterra
– França (mais tarde)
b) Portugal – Invasões francesas e fuga da família real para o Brasil;
– Revolução Liberal (1820);
– Decadência dos ideais liberais, devido aos interesses da burguesia (materialismo) – Liberalismo de fachada;
– Afirmação do Romantismo: românticos vintistas (Garrett e Herculano).
c) Autor – Adesão ao Liberalismo;
(Garrett) – Exílios (em França e Inglaterra);
– Adesão ao Romantismo;
– Crise afetiva e moral: desilusão amorosa; desilusão política; desilusão estético-literária.
d) Obra – Génese: 1843 (na revista "Universal Lisbonense", em folhetins);
– Publicação em livro: 1846.
e) Assunto – Viagem de Garrett a Santarém a convite de Passos Manuel.
f) Intenção – Fazer uma crónica sobre a viagem, refletindo sobre a sociedade portuguesa, sobretudo sobre a situação do país na primeira metade do século XIX.
De forma mais simples, na sequência das Invasões Francesas (1807-1810), as ideias liberais começaram a difundir-se e a ganhar adeptos.
A família real, fugindo das tropas napoleónicas, deslocara-se para o Brasil e, expulsos os franceses, o poder ficou nas mãos dos ingleses, que tinham vindo para Portugal para auxiliar no combate àqueles.
Em 1820, deu-se a revolta militar no Porto, a favor do liberalismo.
Ainda em 1820, eclode a Vilafrancada, a favor do Absolutismo.
Inicia-se então uma guerra civil entre liberais e absolutistas.
Em 1851 iniciar-se-á um período designado Regeneração.
Viagens na Minha Terra : contexto europeu
a) Antecedentes filosóficos:
Por detrás do Romantismo está uma conceção filosófica que se apoia na teoria de vários filósofos, como Kant, para o qual o conhecimento não podia apreender a verdadeira realidade das coisas; o conhecimento da realidade era um conhecimento mediatizado, deformado, porque não captava a realidade em si mesma.
Esta teoria de Kant foi explorada por Schlegel e Schelling e, em termos literários, estas ideias traduzem-se como menosprezo da realidade objetiva e têm como consequência a valorização do devaneio, da evasão. Valoriza-se a empatia entre o homem e o universo, aceita-se a dimensão do sonho e do inconsciente; valoriza-se o misticismo, que se funde com o natural e o sobrenatural.
b) Antecedentes sociais:
Rousseau (1712-1778) foi um dos teóricos que influenciou a mentalidade do final do século XVIII, através das ideias expressas em obras como Contrato Social (1762), em que procura conciliar a natureza livre do homem com a orgânica da sociedade – há uma espécie de contrato entre o indivíduo e a sociedade, que tinha que preservar os direitos do homem; e Emile, obra em que propõe uma nova pedagogia fundamentada na livre espontaneidade da criança sem coartar os seus instintos naturais.
No entanto, a sua teoria principal e mais marcante é aquela, segundo a qual o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe. Deste modo, é necessário que volte ao contacto com a natureza.
O Romantismo propicia uma nova visão da natureza, com ênfase para o pôr do sol; o poeta fá-la confidente e participante dos seus sentimentos e, portanto, o estado da natureza, tal como o Romantismo a descreve, favorece a implantação e o devaneio, "a livre expressão da sensibilidade".
c) Antecedentes históricos e políticos:
Por esta altura, começam a sentir-se as repercussões da Revolução Francesa: exaltam-se os princípios da liberdade e surge uma mentalidade que favorece a revolta contra a ordem estabelecida. Surgem também movimentos em defesa dos direitos do homem e da sua livre expressão, que passa pela livre expressão dos sentimentos. Valoriza-se a sensibilidade e a imaginação.
O ambiente de liberdade causa nas pessoas ambições desmesuradas e, paralelamente, surgem também os primeiros indícios de instabilidade social e política, o que gera no indivíduo um sentimento de frustração e desalento.
Deste ambiente social, político e histórico resulta a consciência de que está em formação um novo homem, que acredita em si e nas suas capacidades, que procura realizar o seu destino, que goza a sua liberdade e os seus direitos, mas é simultaneamente um homem que se sente limitado, porque não consegue realizar algumas das ideias por que lutou.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Retrato de Frei Jorge
▪ Confidente.
▪ Desempenha também a função de coro: comentários, profecias (presságios).
▪ Prenuncia o desfecho do conflito dramático.
▪ Tem a função de despertar a revelação dos pensamentos escondidos das personagens principais.
▪ Contribui para que os acontecimentos trágicos sejam suavizados por uma perspetiva cristã.
Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que, na sua presença, indicará o quadro de D. João de Portugal.
Retrato de Telmo Pais
▪ Não nobre: é um escudeiro.
▪ Liga sempre à nobreza (primeiro à família de D. João e depois de Manuel de Sousa).
▪ Confidente de D. Madalena.
▪ Elo de ligação das famílias (de D. João e de Manuel de Sousa).
▪ Chama viva do passado: alimenta os terrores de D. Madalena.
▪ Desempenha três funções do coro das tragédias clássicas:
- diálogo;
- comentário dos acontecimentos (apartes);
- profecia (agouros/presságios).
▪ Conflito interior: dividido entre a fidelidade a D. João e a fidelidade a D. Madalena.
▪ Sebastianista.
▪ Ligado à lenda romântica sobre Camões.
Telmo Pais, o velho criado, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a desgraça da família de D. Madalena e Manuel, mas como verdadeiro crente no mito sebastianista, acredita que D. João há de regressar. No final, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal.
Retrato de Maria de Noronha
▪ Treze anos.
▪ Nobre: sangue dos Vilhenas e dos Sousas (I, 2); o epíteto de “dona bela” (I, 2).
▪ Precocemente desenvolvida, física e psicologicamente (I, 2,3 e 6).
▪ Doente: sofre de tuberculose (a doença dos românticos).
▪ Culto de Camões: evoca constantemente o passado (II, 1).
▪ Sebastianista: culto de D. Sebastião, o que martiriza a mãe involuntariamente (II, 1).
▪ Vive no pressentimento de que qualquer coisa terrível estava iminente sobre a família.
▪ Perspicaz, dotada de poderosa intuição e do dom da profecia (I, 4; II, 3; III, 12).
▪ Marcada pelo Destino: a fatalidade atinge-a e destrói-a (III, 12).
▪ Modelo da mulher romântica: a mulher-anjo bom.
▪ Ao idealizar esta personagem, Garrett estaria a pensar na sua filha Maria Adelaide, igualmente não legitimada por um casamento válido.
Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Retrato de D. João de Portugal
▪ Nobre: família dos Vimiosos (I, 2).
▪ Cavaleiro: combate com o seu rei (D. Sebastião) em Alcácer Quibir.
▪ Evoca o nome bíblico de João, o apóstolo de Jesus Cristo.
▪ Ama a Pátria e o seu Rei.
▪ Representante da época de ouro portuguesa.
▪ Imagem da Pátria cativa.
▪ Ligado à lenda de D. Sebastião.
▪ Nos dois atos iniciais, é uma personagem abstrata: existe somente nos pensamentos de D. Madalena, Maria e Telmo (e até de Manuel de Sousa Coutinho e Frei Jorge); torna-se uma personagem concreta no ato III na figura de romeiro.
▪ Personagem simbólica: espécie de personificação da fatalidade, do Destino que vai precipitar o desenlace trágico.
▪ No final da obra, ninguém se compadece dele como marido ultrajado, mas das outras personagens.
O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como Ninguém. O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.
Retrato de Manuel de Sousa Coutinho
▪ Nobre: cavaleiro de Malta (só os nobres ingressavam nessa ordem religiosa) (I, 2 e 4).
▪ Evoca o nome bíblico de Emanuel (Deus connosco): paz de consciência, desprendimento dos bens materiais e da própria vida (I, 11).
▪ Racional: deixa-se guiar pela razão, no que contrasta com D. Madalena.
▪ Guiado pela razão, toma as suas decisões à luz de um conjunto de valores universais: a liberdade, a moral, a honra, o nacionalismo (por exemplo, a resposta dada às tentativas dos governadores, incendiando o palácio).
▪ Bom marido e pai terno (II, 7; I, 4).
▪ Corajoso, audaz, determinado e decidido (I, 7, 8, 9, 11, 12, 19; III, 8).
▪ Marcado pelo Destino (I, 11; II, 3 e 8).
▪ Após o aparecimento do Romeiro, deixa-se perturbar pela emoção, revelando-se então uma personagem mais romântica do que clássica.
▪ Encarna o mito romântico do escritor: refúgio no convento, que lhe proporciona o isolamento necessário à escrita.
Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luís de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo que queima o seu próprio palácio, para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes estes sobrepõem-se quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.
Retrato de D. Madalena de Vilhena
▪ Nobre: “família e sangue dos Vilhenas” (I, 8); o epíteto de “dona” só era dado no século XVII às senhoras da aristocracia.
▪ Sentimental: deixa-se arrastar pelos sentimentos muito mais do que pela razão.
▪ Pecadora: o nome “Madalena” evoca a figura bíblica da pecadora com o mesmo nome.
▪ Religiosa; não compreende, todavia, que o amor de Deus possa exigir o sacrifício do amor humano.
▪ O amor de esposa sobrepõe-se ao amor de mãe.
▪ Torturada pelo remorso do passado: não chega a viver o presente por impossibilidade de abandonar o passado, que a deixa constantemente aterrorizada.
▪ Redimida pela purificação no convento, que constitui a saída romântica para a solução dos conflitos.
▪ Modelo da mulher romântica: para os românticos, a mulher ou é anjo ou diabo.
▪ Marcada pelo Destino: amor fatal; ligada à lenda dos amores infelizes de Inês de Castro (I, 1).
D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode afirmar-se que toda a família tem um relevo significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o criado e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em causa. Um drama abate-se sobre esta família e, enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida religiosa, Maria morre como vítima.
D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer Quibir. Durante sete anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel Coutinho. Tem agora 38 anos (17+21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista, que lhe pode trazer D. João de Portugal de volta, mas teme a possibilidade da sua vinda. É com medo que a encontramos a refletir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
A viagem em Viagens na Minha Terra
A viagem constitui a ação central da obra. Iniciando-se no capítulo I e
terminando no capítulo XLIX; constitui o nível em que de imediato se vai cumprindo
o projeto de "crónica" anunciado pelo narrador. Trata-se, pois, de um
percurso seguido por um viajante e pelos seus companheiros de jornada, percurso
balizado, do ponto de vista temporal e espacial, pelo narrador da seguinte
forma: em termos temporais, a viagem decorre desde 17 de julho de 1843, uma
segunda-feira, sensivelmente até sábado; em termos espaciais, os marcos
fundamentais da viagem serão Lisboa e Santarém, com regresso a Lisboa e com uma
dupla paragem no Vale de Santarém. E já aqui a viagem começa a revelar-se algo
mais do que um simples trajeto geográfico: é que o narrador segue até certo
ponto o exemplo de Xavier de Maistre, mencionado logo no primeiro parágrafo,
depois de ter sido citado nesse lugar estratégico que é a epígrafe, mas tende a
superar esse exemplo, indo mais longe e refletindo em profundidade. A
"circularidade" da viagem de X. de Maistre cumpre-se também, mas de
forma mais alargada: ir a Santarém e regressar ao ponto de partida é levar a
cabo um movimento circular, todavia muito mais amplo do que o permitido pelo
espaço apertado de um quarto, assim se conferindo uma outra dimensão às alusões
simbólicas que a circularidade pode sugerir (acabamento, perfeição,
completude). Ao longo desta viagem, Garrett revela um grande amor pelas coisas
nacionais e uma profunda angústia perante a degradação do património cultural
às mãos de uma sociedade materialista insensível aos valores do espírito.
Há uma certa descontinuidade na apresentação dos vários locais de passagem
(Alhandra, Vila Franca, Vila Nova da Rainha, Azambuja, Cartaxo, Charneca, Vale
de Santarém e Santarém), que são descritos muito sumariamente ou apenas
referidos. As primeiras localidades referidas são a Azambuja (a estalagem e o
pinhal) e o Cartaxo (o café). Todavia, nenhum destes espaços é objeto de uma
descrição pormenorizada e sistemática; são apenas genericamente esboçados e
servem os objetivos de intervenção crítica de Garrett: através da descrição da
estalagem (cap. III), denuncia o convencionalismo da literatura romântica da
época; o desencanto da chegada ao pinhal da Azambuja (cap. V) vai motivar uma
vigorosa crítica à falta de originalidade da literatura contemporânea e uma
chamada de atenção para o estado de abandono em que se encontra aquele monumento
nacional; a paragem no café do Cartaxo (cap. VII) é pretexto para criticar a
autossuficiência e a tacanhez dos lisboetas, que não viajam, "cuidando que
todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como
a Rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare".
No capítulo VIII, entra-se na charneca ribatejana, aproveitando o autor
para reconstituir a beleza clássica de "uma jovem seara do Ribatejo nos
primeiros dias de abril" e de "um campo minhoto de milho" em agosto,
contrapor-lhe a solenidade romântica de "um bosque antigo e copado" e
exprimir a sua emoção perante a charneca. Todavia, Garrett não se detém na
contemplação do exterior; a paisagem é para ele, como para os românticos, a
ponte para o sonho, o devaneio ou a meditação.
No final do capítulo IX, o narrador atinge o Vale de Santarém que,
patrioticamente, considera "um dos mais lindos e deliciosos sítios da
terra". A descrição da paisagem aparece logo no início do capítulo X, que
funciona como prólogo da novela. Garrett começa por dar uma visão geral da
beleza edénica da paisagem, para de seguida ir particularizando, parágrafo a
parágrafo, até chegar à reconstituição de "um vulto feminino que viesse
sentar-se" ao "balcão" da "janela meio aberta de uma
habitação antiga", situada num "maciço de verdura", à esquerda
do Vale.
A idealização da paisagem do Vale, em que se acentuam o caráter primitivo e
a "harmonia suavíssima e perfeita", serve de enquadramento adequado à
apresentação de Joaninha, a heroína da novela. Dir-se-ia que a inocência e a
pureza ideais de Joaninha ditaram a idealização da paisagem.
A introdução do 1.º ato da novela interrompe a narrativa da viagem, que só
é retomada no capítulo XXVII, com a chegada às proximidades de Santarém,
aproveitando Garrett para novamente se insurgir contra o estado de abandono do
património, representado pelos olivais de Santarém.
Chegado ao alto da vila, inicia-se a enumeração, mais ou menos descritiva,
dos monumentos de Santarém (conventos, mosteiros, palácios, ruas mouriscas,
casas senhoriais, etc.), que o narrador reencontra, na sua maioria descaraterizados
por sucessivos restauros e transformações, no caminho para a Igreja de Santa
Maria da Alcáçova, junto da qual mora Passos Manuel. São esses "reparos e
transformações" que fazem com que só consiga identificar aquela velha
igreja quando lha mostram.
Chega, finalmente, aos "palácios de D. Afonso Henriques",
habitados pelo chefe do partido progressista, Passos Manuel. Ao jantar
discute-se política, literatura, Santarém, "sobretudo das suas ruínas, da
sua grandeza antiga, da sua desgraça presente".
Na manhã seguinte, acordado pelos sinos da Alcáçova, o narrador vem à
janela e observa, extasiado, a paisagem do Tejo e povoações ribeirinhas
(Almeirim, Alpiarça).
No capítulo XXIX, o narrador revela que "os sublimes espetáculos da
natureza" o fazem "sonhar acordado" (característica romântica),
aproveitando para novamente definir o âmbito, a natureza e os objetivos da
obra. A metáfora "Santarém é um livro de pedra" constitui uma síntese
de quanto Garrett admirava o seu património arquitetónico. Todavia, o seu
estado atual merece-lhe violentas críticas às autoridades que, há mais de um
século, têm permitido autênticas profanações.
Ao almoço recordam-se as grandes figuras da História de Portugal
relacionadas com Santarém e, por fim, a "madrinha e padroeira desta
terra", Santa Iria ou Santa Irene. A inserção da lenda ou romance desta
santa, que teria dado o nome à vila, constitui uma interrupção da viagem; na
parte final do capítulo XXIX, cita-se a versão popular, em trovas, e no
capítulo XXX sintetiza-se a "História de Santa Iria" segundo os
cronistas e procede-se à sua comparação com o romance.
No capítulo XXXI, inicia-se a visita "de relíquias, templos e
monumentos" de Santarém: junto da igreja da Alcáçova, que já está fechada,
o narrador interessa-se por algumas portas e janelas trabalhadas ao gosto
moçárabe; mais adiante depara com um nicho que contém um antiquíssimo busto
degradado de D. Afonso Henriques; chega depois às Portas do Sol, um miradouro
"triste" sobre o Tejo. E é junto da muralha ali existente que o
narrador prepara a transição para a "história da Menina dos
Rouxinóis", cujo 3.º acto decorrerá entre os capítulos XXXII e XXXV, numa
cela do convento de S. Francisco.
No início do capítulo XXXVI, o narrador interroga o companheiro de viagem
sobre o destino das personagens da novela, com especial incidência em Carlos.
Promete-se o fim da "história da menina dos olhos verdes" para o dia
seguinte e prossegue a viagem:
. passagem
pela porta de Atamarma, franqueada por D. Afonso Henriques, quando conquistou
Santarém, já muito descaracterizada por inúmeras reparações e que alguns já
pensaram destruir, facto que é mordazmente
ironizado como uma ideia "digna da época";
. observação
do exterior da capelinha de Nossa Senhora da Vitória, fundada pelo primeiro rei de Portugal, e entrada para lamentar a destruição
da "solenidade do antigo";
. observação do "arrendado e elegante frontispício gótico" da
Igreja e Convento da Graça, na impossibilidade de entrar para visitar o túmulo
de Pedro Álvares Cabral e outras antiguidades, por não ter sido encontrada a
pessoa que guardava as respetivas chaves;
. visita à
Igreja do Santo Milagre, para admirar "quatro medalhões de pedra lavrada
com bustos de homens e mulheres em relevo (...), relíquias da primitiva Igreja
do Santo Milagre", que vários
"melhoramentos" transformaram num
"desgraçado e desgracioso templo";
. visita à Capela do Santo Milagre,
em estilo filipino, local de "grande veneração", onde se terá operado
o Santo Milagre de Santarém havido com os restos mortais da infanta D. Maria da
Assunção, filha do rei D. João VI, e que hoje se encontra abandonada e em
graves ruínas.
O narrador regressa à Alcáçova (casa de Passos Manuel) para
"jantar" (= almoçar), continuando a sua visita de tarde, já no
capítulo XXXVIII. Acabado o almoço, continua a viagem a cavalo para uma visita
à Ribeira, um "subúrbio
democrático", a "única parte viva de Santarém", em busca
infrutífera da "tenda do Alfageme".
À noite, na alta de Santarém (Marvila), a elegância civilizada do chá em
casa da Baronesa de Almeirim fá-lo-á esquecer o desconforto das ruínas
suburbanas. A conversa será um pretexto para reflexões sobre a sociedade
portuguesa dum modo geral, a "secante" vida na capital do "nosso
pobre reino":
. espetáculos enfadonhos
de S. Carlos;
. espetáculos da Rua dos
Condes e o dramalhão romântico;
. o contraste com a
província, onde "não há tal fastio".
Na manhã seguinte (capítulo XXXIX), continua a visita a Marvila de Santarém
com passagem pelo Colégio dos Jesuítas,
edifício agora convertido em sede de governo civil e que anteriormente fora
estabelecimento de ensino criado pelo rei para formação dos infantes e da
mocidade do distrito; agora as suas instalações abrigavam o governo dito civil,
cuja tarefa era "corromper a moral do povo, sofismar o sistema
representativo". E o autor aproveita para criticar a concentração de
estabelecimentos de ensino em Lisboa e defender a criação da Casa Pia, Colégio
Militar ou outra grande escola em Santarém.
Seguidamente, prossegue a viagem por Santarém com chegada ao mosteiro de S.
Domingos, templo que tem vindo a servir de palheiro, como era fácil de
verificar pela camada de palha podre e malcheirosa que ainda cobria o lajedo.
Apesar disso, Garrett procura a capela e jazigo de S. Frei Gil de Santarém,
evoca a sua vida lendária, os "negócios" com o Diabo e posterior
salvação pelo arrependimento. Ao deparar com a minúscula e grosseira capela do
Santo, sem quaisquer sinais de antiguidade e com o túmulo vazio de pedra pintada,
fica completamente desiludido. Até o cadáver do santo tinha desaparecido!
No capítulo XL, recorda-se a chegada de três frades ao convento das Claras,
em 1834, trazendo uma espécie de cofre com o corpo de S. Frei Gil, numa altura
em que os liberais acabavam de expulsar do país as ordens religiosas. Esta
evocação é aproveitada para uma chamada de atenção para a necessária tolerância
liberal para com as freiras, socialmente muito úteis, ao contrário dos barões,
social e politicamente parasitas.
No capítulo XLI, o narrador atinge o Convento de São Francisco de Santarém,
de que fosse guardião Frei Dinis, um daqueles frades que tinham
"roubado" o cadáver de Frei Gil para o entregar às freiras do
Convento das Claras, a única forma de poupar os restos mortais do santo. Pouca
atenção é prestada àquele convento, evocam-se as cenas finais da história de
Joaninha que ali se desenrolaram e, depois da frustração face à degradação e
descaracterização do património, decide-se pelo regresso a Lisboa. Mas vai
ainda procurar o túmulo do rei D. Fernando (cap. XLII), sofrendo novo desgosto,
porque o encontra esburacado e quase irreconhecível. Tal situação ilustra o grosseiro
materialismo em que os barões mergulharam o país e leva-o a fazer previsões
pessimistas sobre o destino nacional, restando-lhe somente a esperança do
"povo povo", que ainda não está corrupto. Esta meditação é de extrema
importância para a compreensão do significado global da obra, pois é aqui que,
pela primeira vez, Garrett indica uma saída do impasse, ao contrapor às
corruptoras abstracções da falsa sabedoria dos que detêm o poder, a integridade
potencialmente salvadora de um concreto "povo" capaz "da síntese
transcendente, superior e inspirada pelas grandes e eternas verdades, que se
não demonstram porque se sentem".
Nessa sexta-feira, o narrador decide regressar a Lisboa. Volta a passar
pela casa do Vale e assim se faz a transição para o epílogo da novela. Junto da
casa encontra Fr. Dinis, única e última companhia da avó, que lhe dá a ler a
carta de Carlos, cuja transcrição ocupará os capítulos XLIV a XLVIII.
A viagem é retomada no cap. XLIX, depois de um curto diálogo com Fr. Dinis
a propósito de Carlos. A primeira parte do percurso é feita a cavalo, com
pernoita no Cartaxo, onde o narrador sonha com eles e com barões. Este sonho
está carregado de simbolismo e de ironia. As sugestões de irrealidade
verdadeiramente surrealista ("céu de papel", "noite polar",
e as notas de várias cores como "farrapos de neve"), a ironia e a
hipérbole ("Eram milhões e milhões e milhões...") e a exploração do
contraste com a realidade ("Acordei no outro dia e não vi nada... só uns
pobres que pediam esmola à porta") concretizam, mais uma vez, a crítica do
materialismo da "constelação de barões".
A segunda parte do percurso é feita de barco, com a chegada ao Terreiro do
Paço a ocorrer às cinco horas da tarde.
Terminada a viagem, anuncia Garrett também o final da obra, admitindo-se,
todavia, a possibilidade de novas viagens "por esse Portugal fora"
(narrativa aberta). A obra finaliza com uma referência crítica aos caminhos de
ferro que, por serem de metal e não de papel, os barões jamais construiriam.
Garrett entendia que o caminho de ferro seria um melhoramento que apenas
beneficiaria as classes privilegiadas e traria prejuízos às massas populares.
Ao contrário das estradas "de pedra", cuja construção é vivamente
recomendada.
Estrutura de Viagens na Minha Terra : níveis narrativos
É possível localizar nas Viagens
três níveis narrativos distintos, para além do nível extradiegético a partir do
qual se supõe que o narrador enuncia o relato:
- nível diegético: o da viagem;
- nível
hipodiegético (embutido no nível diegético): a novela / a história da
"Menina dos Rouxinóis";
- nível
hipo-hipodiegético: a carta escrita por Carlos a Joaninha.
Esta complexa articulação pode
ainda representar-se do seguinte modo:
A entidade
designada como N1 será o narrador do nível extradiegético, quer dizer, aquele
que se encontra num plano exterior à história, tal como os leitores se
encontram; P1 será uma personagem do nível diegético ocasionalmente feito
narrador desse mesmo nível; a partir do seu relato desdobra-se um nível
hipodiegético, no interior do qual se encontram personagens, ações, etc.
Nas Viagens,
o nível diegético é o da viagem propriamente dita, dentro do qual se insere a
história da "Menina dos Rouxinóis". Já no final da viagem, o
narrador-viajante, ao passar de novo no Vale de Santarém, lê uma carta que
Carlos escrevera a Joaninha, surgindo deste modo um terceiro nível diegético, o
nível hipo-hipodiegético.
Esquematicamente,
poderá descrever-se assim a estrutura narrativa da obra:
Como se pode observar, a novela aparece de forma fragmentada; por
outro lado, o salto do nível diegético para o nível hipodiegético não é tão
abrupto como aparenta. Anunciando a "história da menina dos rouxinóis como
ela se contou", o narrador parece fazer uma profissão de fé na palavra do
seu companheiro de viagem, narrador efetivo da novela; ao acrescentar, no
entanto, que este "é o primeiro episódio da minha Odisseia", o
narrador insinua o que, de facto, vai verificar-se: o apropriar-se de um relato
alheio, procedendo à sua reformulação em discurso narrativizado (reelaboração
de um discurso alheio) e "desvanecendo" assim esse nível narrativo
segundo.
Trata-se, pois, de uma redução do hipodiegético ao diegético, de
uma incorporação no nível narrativo primeiro (diegético) daquilo que se
encontrava num nível narrativo segundo (hipodiegético).
Ao integrar a novela sentimental no nível narrativo que domina (o
diegético), o narrador assegura o controlo também dessa novela: em complemento
das inúmeras digressões que vai explanando, ele fica em condições de comentar,
como e quando entender, a história de Carlos e Joaninha, extraindo dela ilações
de teor crítico e ideológico; o que não seria possível se o narrador
respeitasse a palavra do companheiro de viagem que contou a novela. Esta
atitude de apropriação relaciona-se
ainda com a apresentação fragmentada da novela: determinada também pela
estratégia folhetinesca que domina as Viagens, essa fragmentação cria
vários momentos de articulação entre o nível da viagem e o da novela.
A integração do nível hipodiegético no diegético é importante
porque, deste modo, o narrador tende a quebrar a fronteira entre os dois níveis
narrativos, fronteira que poderia obliterar as efetivas conexões que vão
instituir-se entre os dois níveis. Assim, tal como o pinhal de Azambuja, o café
do Cartaxo ou os monumentos de Santarém, a intriga e as personagens da novela
serão dimensionadas não como elementos estranhos à viagem, mas como mais um dos
seus eventos, decerto o mais importante, contribuindo para reforçar o intuito
didático e persuasivo que o narrador incute ao seu discurso. O final da obra
demonstra-o, quando o narrador encontra Fr. Dinis e a Avó, no regresso pelo
Vale. Assim se concretiza uma metalepse:
Fr. Dinis e D. Francisca, que surgiram inicialmente como personagens da novela,
acabam por desembocar na viagem.
Pode, pois, concluir-se que a novela, os seus incidentes e as
conclusões que ela permite, vêm convergir no relato da viagem; chegado o seu
final, tudo se harmoniza e o que parecia um relato fragmentário ao sabor das
circunstâncias, revela-se afinal uma peça importante do todo orgânico que é a
narrativa na sua totalidade.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
"Reflections of my life", The Marmalade
1969
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
Leituras interpretativas de Frei Luís de Sousa
1. Panorâmica de uma recepção interpretativa
Empenhado
política e culturalmente num processo de renovação do teatro nacional, com Um Auto de Gil Vicente (1838), Almeida
Garrett tinha fundado o teatro português moderno, ao gosto da nova estética
para o drama romântico. Cinco anos
volvidos apresenta a sua obra-prima teatral: Frei Luís de Sousa.
Várias
datas significativas rodeiam a apresentação e representação desta obra:
·
1843, 6 de Maio: apresentando publicamente, pela primeira vez, a peça, Garrett
lê uma Memória ao selecto auditório
do Conservatório Real. Nessa ocasião, procede à primeira leitura do seu mais
recente drama, apresentando explicações de natureza vária (sobre a génese da
obra, o seu estilo, o género literário, etc.).
·
1843, 19 de Maio: Garrett faz nova leitura da peça, na intimidade da casa da
sua amiga Maria Krus.
·
1843, 4 de Julho: em consequência da anterior leitura, o drama é apresentado,
pela primeira vez, no pequeno teatro particular da Quinta do Pinheiro; nesta
primeira representação, feita por actores amadores, o próprio Garrett desempenhou
o papel de Telmo Pais.
·
1844: é publicada a 1.ª edição, em livro, da peça (Lisboa, Imprensa Nacional,
cujo prefácio é datado de Dezembro de 1843)[1].
·
1847: dá-se a primeira representação da peça no modesto Teatro do Salitre,
embora censurada, já que lhe fora amputada a última cena do Acto I, a fim de
“evitar complicações diplomáticas”.
·
1850, 24 de Fevereiro: ocorre a representação da peça no teatro Nacional D.
Maria II, instituição que Garrett ajudara a criar.
Entretanto,
fazia-se uma hábil divulgação da peça na imprensa do tempo, com disfarçados
auto-elogios do próprio autor e alguns ataques aos poderes de Costa Cabral que
obstaculizavam a sua representação nos teatros do Salitre (1847) e de D. Maria
II (1850).
2. Leituras críticas de Frei Luís
de Sousa
2.1. Leitura histórico-genética
Uma das
primeiras leituras críticas da peça relaciona-se com a indagação das suas fontes
históricas e literárias, isto é: onde se inspirou o dramaturgo para conceber o
enredo desta peça? Que relações tem a obra de ficção teatral com a realidade
histórica? Que obras terá lido para se informar sobre o assunto?
De facto,
Garrett inspirou-se num tema nacional, numa figura histórica para compor o seu
drama. Ao dramatizar a vida de Manuel de Sousa Coutinho, o dominicano Frei Luís
de Sousa, insigne historiador e prosador seiscentista, Garrett combina
habilmente informação histórica e ficção. Esta recriação estava prescrita,
aliás, pela teorização do drama romântico.
Na Memória ao Conservatório Real, o próprio
Garrett enumerou as fontes que o influenciaram à escrita da obra, desde a
representação da “comédia famosa” do teatro ambulante, na Póvoa de Varzim, até
às fontes histórico-literárias mais ou menos recentes. Na livre composição da
sua ficção dramática, aproveitava o essencial de uma fábula trágica, mas
introduzia-lhe alterações justificáveis pela economia dramática e atmosfera
romântica. Não podendo ser escravo da cronologia, para Garrett, a verdade dramática implicava uma
consciente alteração da verdade histórica[2].
Além das
influências que Garrett confessa, há outras igualmente importantes que ele
conhecia, mas não menciona: 1.ª) o romance em prosa Manuel de Sousa Coutinho, de Paulo Midose, publicado n’O Panorama, em 1842; 2.ª) a comovente
lenda de Frei Luís de Sousa,
narrativa poética em rima oitava, do Romanceiro
de Inácio Pizarro de Morais Sarmento.
2.2. Leitura biográfico-psicológica: a
ficcionalização de um caso pessoal
Esta
perspectiva procura relacionar o conteúdo do drama garrettiano com as circunstâncias
da vida do autor, em particular com o caso
pessoal de Garrett.
Deste modo,
esta interpretação valoriza o drama íntimo da figura de D. Madalena, que amou
ilicitamente o segundo homem da sua vida, Manuel de Sousa Coutinho, estando
ainda casada com o primeiro. É precisamente este facto que atormenta a
consciência desta mulher, confessando-o dolorosamente ao velho Telmo Pais. O
regresso inesperado, mas sempre receado, do primeiro marido (D. João de
Portugal) desfaz a nova família, tornando ilegítima a filha desta relação
(Maria de Noronha). Sobretudo para D. Madalena, ao crime do adultério de pensamento, sucedeu o castigo da desagregação familiar, da morte da filha e da morte para
o mundo (solução religiosa, tipicamente romântica).
À luz de um
biografismo algo primário, este drama íntimo configuraria a projecção romântica
do caso pessoal do próprio dramaturgo. Separado da primeira esposa, Luísa
Midosi, mas casado com ela aos olhos da Igreja, Almeida Garrett conhecera e
mantivera uma relação com a jovem Adelaide Pastor, de quem tivera uma filha,
Maria Adelaide. Porém, esta mulher morrera inesperadamente em 1841, deixando o
escritor com uma filha ilegítima nos braços, face aos olhos da sociedade
conservadora do tempo. Quer na vida quer na ficção dramática, o inocente fruto
de uma relação pecaminosa seria objecto de marginalização social e condenação
moral.
Por
conseguinte, a aflitiva situação existencial, vivida nos dois anos que antecederam
a primeira apresentação da peça, teria alimentado a imaginação do dramaturgo
durante a composição da sua obra teatral, pretendendo com ela exorcizar
publicamente a sua culpa. É esta a posição de Teófilo Braga: “E Maria, a débil
criança, que morre de vergonha vendo que se separam os seus progenitores,
porque ainda está vivo o marido de sua mãe, surgia-lhe na mente, diante de sua
filhinha Maria Adelaide de pouco mais de dois anos, que lhe ficara desses
atormentados amores de Adelaide Deville, extinta aos vinte e dois anos. Esse
pressentimento realizou-se; porque D. Maria Adelaide na adolescência veio a
saber que D. Luísa Midosi, esposa de seu pai, estava viva em Paris, vindo a
confinar-se na vida doméstica com a vergonha do seu nascimento.”
Esta tese é
aprofundada por Costa Pimpão, para quem a história trágica de Frei Luís de
Sousa surgiria, deste modo, associada ao drama pessoal do próprio Garrett.
Assim se compreenderia o sacrifício final da jovem e inocente Maria de Noronha.
Com esta morte de dor e de vergonha antes da cerimónia religiosa, despertava-se
o terror e a piedade, e expiava-se a culpa dos seus progenitores, através da
noção cristã de pecado e respectivo remorso. Deste modo, a peça seria um apelo
patético a favor das inocentes vítimas da moral social, bem diversa da moral
cristã. Pensando na filha, Garrett teria procurado ganhar para Maria a piedosa
adesão dos espectadores. E essa seria, portanto, a personagem central.
No entanto,
são vários os perigos redutores e os inconvenientes desta perspectiva, até
porque as semelhanças entre a fábula dramática e uma dada fase da vida do autor
são dispensáveis à compreensão da obra.
2.3. Leitura religiosa: entre a angústia, a
revolta e a esperança cristã
Intimamente
relacionada com a interpretação precedente, está uma leitura religiosa e
metafísica. A fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a
actuação das personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus”
(Memória ao Conservatório Real). Não faltam
os ícones e signos representativos da Divina Providência (a Palavra de Deus, a
Cruz ou a Igreja), nem o caso dos condes de Vimioso (que também entraram para a
vida conventual), várias vezes convocado com uma função pressagiadora do
próprio desfecho do drama. A enformar a tragédia estão pressupostos religiosos
característicos da vivência portuguesa de Seiscentos: a visão católica da
indissolubilidade matrimonial, o escrúpulo de consciências exigentes
atormentadas pelo remorso do pecado, mesmo só quando praticado em espírito.
Nesta
abordagem, destacam-se três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado por
parte de D. Madalena, existente desde a primeira cena. Atormentada pelos
fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e
profunda ansiedade. Não só teme o regresso do primeiro marido, como se sente
uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu
segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério
em pensamento). Quem também a atormenta é Telmo Pais, quer quando conversa com
Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua
ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2).
Mais tarde, é a própria Madalena que, na cena anterior à aparição do Romeiro,
confessa a Frei Jorge a razão da sua infelicidade que a sua consciência de
cristã se encarrega de lhe lembrar.
A segunda
ideia é a da desafiadora revolta de
Maria nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela
Igreja de S. Paulo quando os seus pais se preparam para tomar o hábito,
morrendo para o mundo e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes
(Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena). Não a prepararam para tão duro golpe,
nem lhe perguntaram a opinião; apenas a confrontaram com aquele violento abandono.
Tenta ainda demovê-los de tão cruel resolução: “Esperai: aqui não morre ninguém
sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto
que surge a invectiva de Maria contra a falta de humanidade de um Deus
justiceiro e vingador que assim lhe rouba os pais: “Que Deus é esse que está
nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?” (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?...
Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me
importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade
para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a
indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem as razões do coração e o
fruto de uma união apaixonada (plano humano).
Por último,
cabe mencionar a resolução do casal (solução
religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D.
Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois
decidem entregar-se à divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes
de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do
drama familiar reside na “sepultura de um claustro”.
O mesmo
sentimento de revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai.
Com efeito, no início do derradeiro acto, aparece-nos um Manuel de Sousa
profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado
apenas por um doloroso sentimento: a perdição da sua filha no “abismo da
vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de
resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte de Frei
Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta
essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu
padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria
paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III,
1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a
oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio
pecado. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de
dor perante a anagnórise incompleta
(II, 13).
Depois da
interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina com um sentimento
misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homem confia
plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela
alma daquele anjo inocente que acaba
de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus
irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá
senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da
relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a
desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora.
Consuma-se, deste modo, a anunciada catástrofe do “duplo e tremendo suicídio” (Memória ao Conservatório Real): suicídio
moral dos esposos e morte física da vítima filha.
2.4. Leitura genológica: a discussão do
género
O Frei Luís de Sousa é um drama romântico
ou a renovação da tragédia antiga? A resposta é adiantada pelo próprio Garrett:
drama de índole trágica (hibridismo genológico).
Por um lado, Frei Luís de Sousa não respeita todos os
cânones poético-retóricos da tragédia clássica (assunto antigo, uso do verso ou
a divisão em cinco actos), sem deixar de ser uma “verdadeira tragédia”. Embora
optando por assunto português e relativamente moderno, a fábula é determinada
por leis superiores (religião e moral social), personagens de perfil trágico. O
leitor/espectador é ainda confrontado com a relativa observação da lei das três
unidades (acção, espaço e tempo). Por último, mencione-se o facto de o coro da
tragédia clássica ser desempenhado ora por Telmo, ora por Frei Jorge. Por
outro, inspirando-se em temática nacional e em circunstâncias biográficas
(ingredientes do drama moderno), a obra também não observa toda a moderna
estética do drama romântico, o que leva Garrett a observar: “Só peço que a não
julguem pelas leis que regem, ou vedem reger, essa composição de forma e índole
nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de
ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico”.
A não
observância da rígida lei das três unidades da tragédia antiga é compensada
pelo aproveitamento de três procedimentos técnico-compositivos:
a) a
estrutura interna:
‑ exposição do
conflito (primeiras cenas do acto I);
‑ adensamento
e clímax dramáticos (até ao final do acto II);
‑ desenlace trágico (morte simbólica dos pais – profissão religiosa –
e morte física de Maria).
b) a
concentração dramática:
‑ da acção que, da exposição
inicial do conflito, caminha inexoravelmente para o adensamento trágico e
anagnórise gradual, até ao desenlace final;
‑ do tempo, que se vai
chegando gradualmente, até ao dia fatal de 4 de Agosto de 1599, vinte e um anos
depois da batalha de Alcácer Quibir;
‑ do espaço, que se vai
afunilando gradualmente até à austeridade do palácio de D. João de Portugal e
do retrato, e depois da capela onde decorre a celebração religiosa final na
sóbria igreja de S. Domingos;
c) o estilo e a arte do
diálogo: o estilo da peça caracteriza-se pela sobriedade lexical e pela
exploração de determinados recursos reveladores dos estados emocionais das
personagens (alusões, exclamações, reticências, interrogações, etc.); por outro
lado, Garrett adequa o estilo ao momento, perfil e ideologia de cada personagem
– nervoso e angustiado em D. Madalena; emocionado e inquiridor em Maria;
respeitoso e digno em Telmo; nobre e decidido em Manuel de Sousa.
Além disso,
os dois primeiros actos são de índole mais trágica, enquanto que o terceiro,
sobretudo com a melodramática morte de Maria, é mais sombrio e patético. Nos
dois primeiros, sobressai um clima crescente de medo, em que uma família é
ameaçada pelo pecado e ensombrada pela figura do ausente/presente D. João de
Portugal, encarnação de um Destino fatal; no terceiro, mais declamatório, é o
cristianismo romântico que impõe a morte de Maria, como uma espécie de
expiação.
Por
conseguinte, podemos concluir que o Frei
Luís de Sousa é formalmente um drama romântico, servido por um enredo nacional
de fundo trágico.
2.5. Leitura político-sociológica: relações
especulares
Tão
importante como o tempo da intriga recriado pela peça (finais do séc. XVI e início
do séc. XVII) é a época da escrita (década de 1840). Lida à luz do contexto em
que a obra foi escrita, apresentada e publicada, a peça configurar-se-ia como
uma censura mais ou menos velada e simbólica da situação político-social
portuguesa, das “violências palatino-cabralistas”, vividas sob o governo
conservador e autoritário de Costa Cabral.
Assim sendo,
não surpreende que a censura cabralista persiga a obra, amputando-lhe os actos
ou falas de bravura revolucionária diante da tirania castelhana (incêndio do
palácio de Manuel de Sousa Coutinho), argumentando com as consequências para as
relações diplomáticas entre os dois estados peninsulares. Aliás, terão sido as
ideias políticas mais revolucionárias de Garrett que, exonerado dos cargos
políticos ligados directamente à reforma do teatro português, impediram,
durante algum tempo, a representação do Frei
Luís de Sousa.
Almeida
Garrett terá, assim, explorado a similitude entre as duas épocas históricas: o
moderno autoritarismo cabralista (do séc. XIX), sob a aparência de um regime
liberalista, assemelha-se à despótica e opressora ocupação castelhana de finais
do séc. XVI. Neste sentido, a obra não deixa de ser uma crítica à política
vigente, ressaltando a revolta e sublevação de um homem (Manuel de Sousa)
contra a tirania de um regime imposto e em prol do elevado valor da liberdade e
da independência ideológica. O acto de Manuel de Sousa deve ser interpretado
como um significativo acto de vontade por parte de um homem que preza a
liberdade contra todas as formas de tirania.
2.6. Leitura psicocrítica e imagética: o
conflito e a psicologia profunda
Segundo esta
leitura, com a peça estaria em causa a dualidade do Homem, no seu conflito
entre o ser e o parecer, entre o Eu profundo e o Eu de superfície.
António José
Saraiva sustenta que Telmo, verdadeira personagem central do drama, simboliza a
alma profunda e fragmentada do autor, no seu conflito de fidelidades (o culto
sebástico e a crença no regresso de D. João, a par da profunda afeição por
Maria), de impossível harmonização.
O dramatismo
intensifica-se quando Telmo se consciencializa da passagem do tempo, dando-se
conta de que a antiga admiração por D. João, que vive apenas na sua “lembrança”,
é substituída por uma afeição bem real e viva por Maria. Mudam-se os tempos e
as circunstâncias, mudam os corações, e a convivência de sentimentos torna-se
impossível. Perante este dilema interior, o velho aio acaba por se transformar
no anunciador da “morte do impostor” (D. João). Essa morte do passado é-lhe
solicitada expressamente pelo antigo amo, mas esse pedido estava já entranhado
no perturbado coração de Telmo.
Resumidamente,
o Frei Luís de Sousa pode ser visto
como um drama do Eu. Telmo exprimiria
“a dor de não ser constante e inteiro no amor, a mágoa, a que se mistura algo
de remorso, de viver repartido entre duas afeições inconciliáveis, dois compromissos,
uma para com o passado (no caso de Telmo, a fidelidade a D. João) e outro para
com o presente (no caso de Telmo, a entranhada estima por Maria), que o leva a
desejar que o antigo amo nunca mais volte”.
Mário Garcia
visualiza em Telmo um conflito entre o Eu social, de aparências e disfarces, e
o Eu desvelado, profundo e verdadeiro. Manuel de Sousa, que incendeia heroicamente
o seu palácio, impelido pela honra, representaria “o contributo para a
regeneração espiritual de Garrett, através do sentido de paternidade”.
Para João
Mendes, Garrett viveu um inquestionável drama
da fidelidade entre um homem social, de aparências e máscaras, e um homem
sensível, íntimo e real. Ora, esse conflito de fidelidade é projectado nas
dramáticas figuras de D. Madalena e de Telmo, tendo sido esta última
interpretada pelo dramaturgo na primeira representação. A saída para o conflito
e divisão interior de Garrett residia no sacrifício de Manuel de Sousa: “Manuel
de Sousa é o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta
de coragem”.
Segundo uma
leitura histórico-psicológica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitação de
Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade.
Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romântico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na Minha Terra configuraria o
homem devorado pelo amor-paixão (antítese), encontrando-se a síntese n’ As Folhas Caídas, entre Manuel de Sousa
e Carlos. O incêndio da casa e o permanente estado febril de Maria remetem para
a bivalência da imagem arquetípica do fogo:
ora significando a auto-expiação de Manuel de Sousa e “confissão” de Garrett;
ora a purificação do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do
pecado de uma relação extra-conjugal. O incêndio depurador da paixão
prepararia, deste modo, o desfecho religioso do drama.
2.7. Leitura mítico-cultural: o
Sebastianismo e o destino português
Para Garrett,
desencantado com o rumo do país, ligado a um passado quinhentista, e vivendo à
sombra de uma pesada memória, o Portugal do séc. XIX só teria futuro se se
libertasse da nostalgia passadista.
As crenças no
sebastianismo eram sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Regressar
ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do
futuro.
A crença
sebástica é difundida por Telmo Pais. Amigo de Luís de Camões, ele acredita no
regresso de D. João, que acompanhara o jovem rei D. Sebastião à nefasta batalha
de Alcácer Quibir. Ao comunicar estas crenças à jovem e influenciável Maria,
Telmo desperta gradualmente o terror em D. Madalena, logo a partir da cena II
do acto I. Estas referências ao sebastianismo prosseguem ao longo de toda a
obra, o que só serve para acentuar o desespero de Madalena.
Por outro
lado, de acordo com a didascália que antecede o acto II, destacavam-se, no
palácio de D. João, pela sua singular localização, os retratos de D. Sebastião,
Camões e D. João de Portugal, que merecem a atenção de Maria.
Reactualizando
comicamente o sebastianismo, Garrett concebe-o, no Frei Luís de Sousa, à luz da tradição sebástica, como o mito
imperial que deu corpo à nostalgia de uma idade de ouro. Com a perda do jovem
monarca, Portugal afunda-se numa época de inércia e de brumas, à espera de um
refundador e heróico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise
política.
Por
conseguinte, nesta abordagem crítica, na peça de Garrett, mais do que personagens
de um drama familiar, temos seres simbólicos, representativos do destino
colectivo português, num dado momento da sua história. Neste contexto, uma
última leitura situa-se ao nível mitológico, recuperando o significado dos
temas da saudade e do sebastianismo. D. Sebastião seria, assim, a anunciada
“maravilha fatal da nossa idade” (Camões) e dos tempos futuros.
Para Garrett,
o sebastianismo constituía o mito da nossa decadência. Portugal renegava, por
um mito, a realidade; morria para a história, apático e desfeito em sonho; envolvia-se,
para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica. O
sebastianismo era o mito da nossa fraqueza e compensação, da nossa fuga da
realidade; é um refúgio para a realidade dos acontecimentos; é uma afirmação de
esperança nacionalista, de fé patriótica em épocas de profunda crise política,
como a da perda da independência. Será isso que Garrett transmitiu na peça: um
choro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança
vaga, etérea, na imaginação de uma rapariga tísica e no tresvario de um
escudeiro sebastianista.
Maria de
Lourdes Vieira considera que o mito do Encoberto (tratado desde o Bandarra até
à Mensagem de Pessoa) é
perspectivado, negativamente, como sinónimo de paragem no tempo, de
irrealidade, de sacrifício do herói na catástrofe final. O regresso do (falso)
D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o
aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do
Portugal morto e sebástico se define como Ninguém.
O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadistas.
Podemos assim
dizer que o incêndio do palácio de Manuel de Sousa, além de acto de
patriotismo, simboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para
uma família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de
mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João representa um
anacrónico e impossível regresso ao trágico ao passado. A História não pode
regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem de,
edipianamente, matar o velho pai para mudar o rumo da sua história, nem que
para isso tenha que sacrificar a própria vida, como fez Manuel de Sousa.
Para Eduardo
Lourenço, Frei Luís de Sousa será a
representação da tragédia colectiva de um povo. O drama reflete sobre Portugal
num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um
presente hipotecado, à sombra de um sentimento de saudade passadista e
sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada por dois fantasmas – um
quase fantasma (D. João) e um fantasma mítico (D. Sebastião). O simbolismo
alegórico que une os dois personagens está bem representado no nome do
primeiro: o primeiro nome (D. João) remete-nos para alguns monarcas da História
de Portugal; e no sobrenome (de Portugal) está cristalizado o próprio nome da
Nação, num momento crucial da sua História. É preciso matar ou exorcizar o
passado, para que Portugal possa ter futuro.
Deste modo,
estaremos perante uma culpa metafísica,
personificada em D. João, a figura que simboliza um Portugal sem presente,
sonâmbulo e doente de sebastianismo. Nesta ordem de ideias, a regeneradora
Maria representa o sacrifício necessário para exorcizar os fantasmas do passado
e definir o futuro de Portugal. Só assim teria sentido o absurdo castigo-expiação de Maria, culpada de não ter culpa, que morre,
romanticamente, de excesso e de vontade.
Esta
problematização do modo de ser português será, portanto, feita a partir do
duplo e simbólico espaço da casa-palácio e da igreja-convento. O drama de
Garrett é fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo
fantasmático) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na História,
objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos.
Neste
sentido, o conflito particular ou o drama humano e familiar da peça mais não é
do que uma metáfora do nosso devir colectivo: “Quem responde pela boca de D.
João, definindo-se como ninguém, não
é um mero marido ressuscitado fora de estação, é a própria Pátria. O único
gesto redentor do seu herói (Manuel
de Sousa) é deitar fogo ao palácio e enterrar-se fora do mundo, da História.
Por
conseguinte, pela boca do Romeiro, fantasma de um outro fantasma (D. Sebastião),
é Portugal inteiro que se auto-interroga, olhando no espelho da sua identidade
e não se encontrando. O velho Portugal já não se revê na nova ordem
estabelecida, nem é facilmente reconhecido pelos seus mais fiéis seguidores
(Telmo Pais). Portugal desapareceu em Alcácer Quibir, perdeu irremediavelmente
a sua identidade, até à sua refundação em 1640. O Portugal heróico, aventureiro
e cavaleiresco estava definitivamente defunto. Dessa morte simbólica, que
implicou o sacrifício de vidas mais ou menos inocentes nascia um Portugal novo.
Sintetizando
as várias perspectivas críticas:
Interpretações
|
Ideias
nucleares
|
1.
Leitura histórico-ge-nética
|
. Fontes histórico-literárias da peça, reconhecidas
pelo autor ou omitidas;
. Recriação ficcional de assunto histórico: tradição
+ imaginação dramática.
|
2.
Leitura biográfico-psicológica
|
. Encenação do caso pessoal de Garrett, com base nas
significativas coincidências entre a situação biográfica e o enredo dramático
da obra.
|
3.
Leitura religiosa e metafísica
|
. Da consciência do pecado (D. Madalena), à
desafiadora revolta (Maria) e ao sacrifício à esperança cristã (tomada de
hábito do casal).
|
4.
Leitura genológica e arquitextual
|
. Classificação quanto ao género: drama ou tragédia?
. Tragédia de destino, de assunto moderno; drama
romântico, de fundo trágico.
|
5.
Leitura político-soci-ológica
|
. Homologias entre a decadência quinhentista e o
autoritarismo agiota cabralista.
. Crítica velada ao rumo da política portuguesa sob o
governo de Costa Cabral.
|
6.
Leitura psicocrítica e imagética
|
. Drama interior de Telmo e D. Madalena, divididos
entre duas fidelidades.
. Numa imagética do fogo, Manuel de Sousa Coutinho seria o Garrett ideal.
|
7.
Leitura mítico-cultural
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. Enterro simbólico do sebastianismo no seu
fantasmático representante (D. João).
. Interrogação psicanalítica de Portugal: a
fragilidade ôntica da pátria portuguesa.
|
Bibliografia:
. http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf
[1] Nesta
altura, fez-se uma edição de quinze exemplares da peça. Existe um fac-símile do
Frei Luís de Sousa da edição da
Quinta do Pinheiro, apresentada por M.ª Leonor Machado de Sousa, Lisboa, Inst.
da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. Em bom rigor, esta primeira publicação
constitui a verdadeira editio princeps
da peça garrettiana.
[2] Entre
as alterações da verdade factual, salientam-se: 1.ª) D. Madalena esperou 7 anos
por notícias do primeiro marido a que, somada a idade de Maria, perfaz 21 anos,
quando historicamente terão sido 17 ou 18 anos; 2.ª) D. Madalena aparece em
cena atemorizada com a marginalização que se abaterá sobre a sua única filha,
do seu segundo casamento com Manuel de Sousa, embora a realidade histórica
refira a existência de mais três filhas do primeiro casamento; 3.ª) Manuel de
Sousa incendeia patrioticamente o seu palácio de Almada, quando, de facto, não
terá sido por um acto de heroísmo, nem ele se terá notabilizado por reacções
anti-castelhanas, antes pelo contrário; 4.ª) por fim, a solução religiosa fica
a dever-se à inesperada aparição de D. João, quando, historicamente, a opção
pela vida conventual por parte de Manuel de Sousa e da esposa não tem nada a
ver com essa lenda.
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