É possível localizar nas Viagens
três níveis narrativos distintos, para além do nível extradiegético a partir do
qual se supõe que o narrador enuncia o relato:
- nível diegético: o da viagem;
- nível
hipodiegético (embutido no nível diegético): a novela / a história da
"Menina dos Rouxinóis";
- nível
hipo-hipodiegético: a carta escrita por Carlos a Joaninha.
Esta complexa articulação pode
ainda representar-se do seguinte modo:
A entidade
designada como N1 será o narrador do nível extradiegético, quer dizer, aquele
que se encontra num plano exterior à história, tal como os leitores se
encontram; P1 será uma personagem do nível diegético ocasionalmente feito
narrador desse mesmo nível; a partir do seu relato desdobra-se um nível
hipodiegético, no interior do qual se encontram personagens, ações, etc.
Nas Viagens,
o nível diegético é o da viagem propriamente dita, dentro do qual se insere a
história da "Menina dos Rouxinóis". Já no final da viagem, o
narrador-viajante, ao passar de novo no Vale de Santarém, lê uma carta que
Carlos escrevera a Joaninha, surgindo deste modo um terceiro nível diegético, o
nível hipo-hipodiegético.
Esquematicamente,
poderá descrever-se assim a estrutura narrativa da obra:
Como se pode observar, a novela aparece de forma fragmentada; por
outro lado, o salto do nível diegético para o nível hipodiegético não é tão
abrupto como aparenta. Anunciando a "história da menina dos rouxinóis como
ela se contou", o narrador parece fazer uma profissão de fé na palavra do
seu companheiro de viagem, narrador efetivo da novela; ao acrescentar, no
entanto, que este "é o primeiro episódio da minha Odisseia", o
narrador insinua o que, de facto, vai verificar-se: o apropriar-se de um relato
alheio, procedendo à sua reformulação em discurso narrativizado (reelaboração
de um discurso alheio) e "desvanecendo" assim esse nível narrativo
segundo.
Trata-se, pois, de uma redução do hipodiegético ao diegético, de
uma incorporação no nível narrativo primeiro (diegético) daquilo que se
encontrava num nível narrativo segundo (hipodiegético).
Ao integrar a novela sentimental no nível narrativo que domina (o
diegético), o narrador assegura o controlo também dessa novela: em complemento
das inúmeras digressões que vai explanando, ele fica em condições de comentar,
como e quando entender, a história de Carlos e Joaninha, extraindo dela ilações
de teor crítico e ideológico; o que não seria possível se o narrador
respeitasse a palavra do companheiro de viagem que contou a novela. Esta
atitude de apropriação relaciona-se
ainda com a apresentação fragmentada da novela: determinada também pela
estratégia folhetinesca que domina as Viagens, essa fragmentação cria
vários momentos de articulação entre o nível da viagem e o da novela.
A integração do nível hipodiegético no diegético é importante
porque, deste modo, o narrador tende a quebrar a fronteira entre os dois níveis
narrativos, fronteira que poderia obliterar as efetivas conexões que vão
instituir-se entre os dois níveis. Assim, tal como o pinhal de Azambuja, o café
do Cartaxo ou os monumentos de Santarém, a intriga e as personagens da novela
serão dimensionadas não como elementos estranhos à viagem, mas como mais um dos
seus eventos, decerto o mais importante, contribuindo para reforçar o intuito
didático e persuasivo que o narrador incute ao seu discurso. O final da obra
demonstra-o, quando o narrador encontra Fr. Dinis e a Avó, no regresso pelo
Vale. Assim se concretiza uma metalepse:
Fr. Dinis e D. Francisca, que surgiram inicialmente como personagens da novela,
acabam por desembocar na viagem.
Pode, pois, concluir-se que a novela, os seus incidentes e as
conclusões que ela permite, vêm convergir no relato da viagem; chegado o seu
final, tudo se harmoniza e o que parecia um relato fragmentário ao sabor das
circunstâncias, revela-se afinal uma peça importante do todo orgânico que é a
narrativa na sua totalidade.
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