Português: Estrutura de Viagens na Minha Terra : níveis narrativos

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Estrutura de Viagens na Minha Terra : níveis narrativos

É possível localizar nas Viagens três níveis narrativos distintos, para além do nível extradiegético a partir do qual se supõe que o narrador enuncia o relato:
- nível diegético: o da viagem;
- nível hipodiegético (embutido no nível diegético): a novela / a história da
"Menina dos Rouxinóis";
- nível hipo-hipodiegético: a carta escrita por Carlos a Joaninha.


Esta complexa articulação pode ainda representar-se do seguinte modo:


A entidade designada como N1 será o narrador do nível extradiegético, quer dizer, aquele que se encontra num plano exterior à história, tal como os leitores se encontram; P1 será uma personagem do nível diegético ocasionalmente feito narrador desse mesmo nível; a partir do seu relato desdobra-se um nível hipodiegético, no interior do qual se encontram personagens, ações, etc.
Nas Viagens, o nível diegético é o da viagem propriamente dita, dentro do qual se insere a história da "Menina dos Rouxinóis". Já no final da viagem, o narrador-viajante, ao passar de novo no Vale de Santarém, lê uma carta que Carlos escrevera a Joaninha, surgindo deste modo um terceiro nível diegético, o nível hipo-hipodiegético.
Esquematicamente, poderá descrever-se assim a estrutura narrativa da obra:


Como se pode observar, a novela aparece de forma fragmentada; por outro lado, o salto do nível diegético para o nível hipodiegético não é tão abrupto como aparenta. Anunciando a "história da menina dos rouxinóis como ela se contou", o narrador parece fazer uma profissão de fé na palavra do seu companheiro de viagem, narrador efetivo da novela; ao acrescentar, no entanto, que este "é o primeiro episódio da minha Odisseia", o narrador insinua o que, de facto, vai verificar-se: o apropriar-se de um relato alheio, procedendo à sua reformulação em discurso narrativizado (reelaboração de um discurso alheio) e "desvanecendo" assim esse nível narrativo segundo.
Trata-se, pois, de uma redução do hipodiegético ao diegético, de uma incorporação no nível narrativo primeiro (diegético) daquilo que se encontrava num nível narrativo segundo (hipodiegético).
Ao integrar a novela sentimental no nível narrativo que domina (o diegético), o narrador assegura o controlo também dessa novela: em complemento das inúmeras digressões que vai explanando, ele fica em condições de comentar, como e quando entender, a história de Carlos e Joaninha, extraindo dela ilações de teor crítico e ideológico; o que não seria possível se o narrador respeitasse a palavra do companheiro de viagem que contou a novela. Esta atitude de apropriação relaciona-se ainda com a apresentação fragmentada da novela: determinada também pela estratégia folhetinesca que domina as Viagens, essa fragmentação cria vários momentos de articulação entre o nível da viagem e o da novela.
A integração do nível hipodiegético no diegético é importante porque, deste modo, o narrador tende a quebrar a fronteira entre os dois níveis narrativos, fronteira que poderia obliterar as efetivas conexões que vão instituir-se entre os dois níveis. Assim, tal como o pinhal de Azambuja, o café do Cartaxo ou os monumentos de Santarém, a intriga e as personagens da novela serão dimensionadas não como elementos estranhos à viagem, mas como mais um dos seus eventos, decerto o mais importante, contribuindo para reforçar o intuito didático e persuasivo que o narrador incute ao seu discurso. O final da obra demonstra-o, quando o narrador encontra Fr. Dinis e a Avó, no regresso pelo Vale. Assim se concretiza uma metalepse: Fr. Dinis e D. Francisca, que surgiram inicialmente como personagens da novela, acabam por desembocar na viagem.

Pode, assim, propor-se uma nova configuração para a estrutura das Viagens:

Pode, pois, concluir-se que a novela, os seus incidentes e as conclusões que ela permite, vêm convergir no relato da viagem; chegado o seu final, tudo se harmoniza e o que parecia um relato fragmentário ao sabor das circunstâncias, revela-se afinal uma peça importante do todo orgânico que é a narrativa na sua totalidade.


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