sábado, 11 de setembro de 2021
Análise do poema "Testamento", de Alda Lara
Análise de "Perfilados de medo"
Este poema de Alexandre O’Neill está escrito na primeira pessoa do poema, remetendo assim para um universo alargado que inclui o sujeito poético, mas que está para além de si.
Este «nós»
vive num estado permanente de medo, desorientação e passividade, pois
conformou-se com a situação, incapaz de reagir. Esse estado de espírito
justifica-se pelo facto de haver forças que instilam o medo, o oprimem (“dentes
oprimidos”) e perseguem (“pelo medo perseguido”).
A primeira
estrofe assenta na antítese entre medo e coragem. O «nós» apresenta-se
«perfilado» de medo, contudo, ironicamente, agradece esse mesmo medo. Porquê?
Esse sentimento pode ter um lado positivo, pois impedirá que se cometam atos
corajosos de revolta, de insubordinação («loucura»), que poderiam acarretar consequências
graves. Só deste modo se pode compreender o agradecimento pela existência do
medo. Assim sendo, face ao medo, a coragem tem muito pouca valia.
O oxímoro e
a ironia do verso 4 são muito significativos: “e a vida sem viver é mais segura”.
Estes recursos, por um lado, sugerem que a existência do «nós» é uma vida em
que não lhe é permitido viver e ser livre; por outro lado, indiciam que uma
existência sem decisões, sem riscos é mais segura para esse coletivo.
A segunda
estrofe veicula uma visão temporal tripartida: passado, presente e futuro. No
presente, o nós, “Aventureiros já sem aventura”, combate fantasmas. Neste ato,
procura recuperar um estado passado (“Aventureiros”, “do que fomos”) em que não
vivia imerso no medo e pretende preparar um futuro em que viverá sem receio e
com confiança e livre. Os “fantasmas” referidos no verso 7 simbolizam o medo
sentido pelo «nós», mas, no verso 11, são o próprio «nós», ou seja, são as
pessoas, pois não vivem a sua vida: o medo transformou-os em espectros que não
têm existência consoante com o ser humano e os seus atos não têm consequências.
Na terceira
estrofe, o medo em silêncio, com angústia, transforma o «nós» em loucos, em
fantasmas. Ele encontra-se “sem mais voz” e com o “coração nos dentes oprimido”.
Ora, o coração é o espaço dos sentimentos e das emoções (a revolta, o desejo de
liberdade, a coragem, etc.); estando «oprimido», tal significa que as pessoas
estão silenciadas, não têm liberdade de expressão, não podem dizer o que
sentem; assim sendo, de facto, não têm voz.
A última
estrofe apresenta o nós como um rebanho perseguido pelo medo, indiciando que se
trata de um conjunto que perdeu a individualidade. Por outro lado, essas
pessoas perderam o sentido da vida e, apesar de viverem em comunidade (“já
vivemos tão juntos e tão sós”) cada um sente-se isolado.
Outro
recurso destacado no poema é a anáfora presente nos versos 1, 6 e 9 (“Perfilados
de medo”), que reforça a ideia de que o «nós» vive «sem viver», devido ao medo;
vive de forma mecânica, devido ao medo; vive-se a vida em silêncio, sem
questionar a realidade que se «vive», devido ao medo. Em suma, as pessoas não vivem
plenamente, devido (sempre) ao medo.
A
compreensão da mensagem do poema não pode ser desconectada do contexto em que
foi produzido. Com efeito, ele surgiu pela primeira vez na obra Poemas com
Endereço, publicada em 1962, isto é, em pleno regime ditatorial de Salazar –
o Estado Novo, caracterizado por um ambiente de medo, perseguição e opressão
que se abateu sobre o povo português, que viveu décadas sem liberdade, em
constante medo e oprimido pelo tal regime.
Em suma, o
texto revela a oposição do poeta a uma forma de estar medrosa por parte dos
portugueses, por isso podemos considerar que se trata de um panfleto contra o
espírito conformado dos portugueses, que O’Neill abomina.
Formalmente,
o poema é um soneto constituído por 2 quadras e 2 tercetos, num total de 14
versos, todos decassilábicos. A rima é cruzada e emparelhada (de acordo com o
esquema abab / baba / cdc / dcd), consoante (“loucura”/”segura”), pobre
(“combatemos”/”seremos”) e rica (“voz”/”nós”).
Análise de "O seu santo nome"
O título do poema remete para a Bíblia, que, em determinado passo, adverte o crente para não invocar o santo nome de Deus em vão.
Neste caso,
o «santo nome» em causa refere-se ao amor, apresentado como tão divino quanto o
símbolo do sagrado. Assim sendo, não deve ser pronunciado em vão.
Toda a
composição poética assenta na anáfora, uma anáfora de carácter negativo. De
facto, o advérbio de negação que está presente nos versos 1, 2, 3, 4, 5 e 8 estrutura
esta espécie de lição sobre o amor em termos negativos, dado que o sujeito
poético enumera um conjunto de atitudes que não devem ser tomadas face ao
sentimento amoroso, para que o leitor aprenda o comportamento «correto» a
adotar face ao amor.
O primeiro
verso do texto sugere, desde logo, tratar-se de uma palavra sagrada, daí ser
necessário ter respeito por ela: “Não facilite com a palavra amor”. De seguida,
o «eu» poético sugere que é perigosa, fugidia no que diz respeito ao seu
significado, podendo mesmo gerar ambiguidade e complicações para quem a emprega.
Mais do que usar de forma leviana a palavra «amor», o sujeito lírico defende
claramente que, antes, se deve conhecer o seu valor, ou seja, deve saber-se
primeiramente sentir aquilo para que ela remete.
Note-se que
a negação presente no poema é totalmente irónica. De facto, o «eu» adverte o
leitor/tu sobre os perigos do amor, mas acaba por incitar à sua procura, no
contexto de um mundo sem sentido e insensível. Neste seguimento, o último verso
aponta para a necessidade de sentir. O santo nome do amor não deve ser
pronunciado, mas, antes, sentir-se.
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Análise de "O Recreio"
Este poema é
constituído por seis estrofes, três quadras e três tercetos intercalados entre
si (o que exprime o ritmo monótono e regular do baloiço), nu cair no poço e m
total de 18 versos, todos em redondilha maior, com rima cruzada e versos
brancos (o 5, 11 e 17).
Aparentemente,
a composição descreve uma situação “simples”: uma criança brinca num baloiço
situado à beira de um poço, correndo perigo de vida desde logo, aumentado pelo
facto de a corda estar a esgarçar-se. A criança em questão é de tenra idade,
dado que está de bibe, está sempre a brincar e revela total inconsciência do perigo
a que está sujeita, como é evidenciado pela sua atitude negligentemente
perigosa: baloiça perto de um poço, num baloiço em mau estado, cuja corda está
esgarçada e, portanto, se encontra prestes a partir. Não obstante a
probabilidade de cair no poço e morrer afogada, continua a baloiçar
tranquilamente.
O sujeito
poético observa a situação e reage de forma indiferente e displicente, já que
tem noção de que a corda está esgarçada, mas isso não parece incomodá-lo. Além
disso, nada faz para retirar a criança da situação de perigo e até acaba por
ironizar, ao afirmar que, se ela morrer afogada, se acabará a «folia», a
brincadeira. Mais: acrescenta que poderia, se quisesse, mudar a corda, mas não
o fará, pois essa mudança exigiria um grande esforço (“Seria grande estopada…” –
v. 12) da sua parte. Perante a possibilidade de o menino morrer afogado, o
sujeito poético não encara o facto como grave nem a possibilidade de o salvar.
Pelo contrário, defende que deve continuar a baloiçar, isto é, a divertir-se
enquanto está vivo. E conclui o poema (re)afirmando que seria fácil mudar a
corda, mas admite que tal ideia nunca lhe ocorreu.
O título
é outro elemento bastante importante para a perceção do poema. De facto, se
atentarmos na palavra de forma isolada, o nome «recreio» remete para um espaço
que está associado a crianças, no qual estas brincam alegremente. Assim sendo,
trata-se de um local conotado com a alegria e a diversão. As referências, no
início do poema, ao «balouço» e ao «menino de bibe» parece, comprovar essas
características do espaço do recreio. Contudo, à medida que a composição
poética se desenvolve, a noção de recreio passa a estar associada à noção de
perigo e eventual morte, inclusive da aceitação natural da mesma.
Note-se,
porém, relendo o primeiro verso, que o «balouço» está a baloiçar na alma do
sujeito poético. Ora, isto significa que a leitura do texto não será tão
simples como à partida pareceria. A imagem da Alma como sede de um baloiço
(metáfora de instabilidade), à beira de um poço (símbolo de uma situação de
risco), com a corda «esgarçada» (reveladora de perigo iminente) e utilizado por
uma criança (totalmente inconsciente do perigo), configura uma forma insensata
e insegura de viver. Esta noção é acentuada pelo movimento do baloiço, que pode
traduzir o vazio repetitivo da sua vida.
Neste
contexto, o título terá uma dupla dimensão: descritiva (o baloiço, o
menino a brincar) e irónica (a recusa da vida adulta e a aceitação da morte
prematura).
As duas
primeiras estrofes descrevem a situação presente, no entanto, a partir da
terceira, somos projetados para o futuro e para a incerteza que o caracteriza.
Esse contraponto entre passado/presente e futuro é sugerido por várias
antíteses e contrastes: presente/futuro, criança/adulto, sonho/realidade,
ilusão/desilusão, vida/morte. Estes contrastes, por outro lado, são traduzidos
pela ideia do movimento do baloiço, no seu constante vaivém.
A corda que
prende o sujeito aos polos positivos (a infância, o sonho, a ilusão) está a
romper-se. Note-se que o verso entre parênteses remete para o interior do
sujeito poético: o «eu» reconhece a situação perigosa em que se encontra, mas
nada fará (mudar a corda) que a altere. Tratar-se-á de orgulho ou de uma saída,
drástica, mas definitiva, para o seu problema existencial. Que tudo isto remete
para a infância (enquanto tempo da ingenuidade, da inconsciência, da ausência
de pensamento e de razão, e da alegria e felicidade) é confirmado pela
expressão «Era uma vez» (v. 9), uma fórmula usada nos contos tradicionais
populares e nas históricas infantis, traduzindo um tempo indefinido e
indeterminado.
O sujeito
poético prefere a morte a uma mudança de vida e prefere morrer enquanto
criança, em vez de no estado de adulto: “Mais vale morrer de bibe/Que de casaca…”
– vv. 14-15). É preferível continuar a ser feliz enquanto se vive. Tratar-se-á
de uma situação em que o «eu» recusa a vida adulta («de casaca») e prefere
morrer prematuramente («de bibe»). Se quisesse, poderia mudar a corda, mas
recusa tal ideia; ora, isto metaforicamente significa que o «eu» não quer mudar
o seu «interior», não quer deixar de ser criança e tornar-se adulto, dado que
as crianças não têm preocupações como os adultos, são ingénuas e felizes.
Estas ideias
são desenvolvidas em estrofes que alternam entre a quadra e o dístico (cada um
iniciado por travessão): nas quadras descreve-se a situação, enquanto os
dísticos constituem uma espécie de apartes, onde o sujeito poético revela a sua
indiferença, o seu cinismo e até sadismo relativamente ao perigo e à morte.
Esta alternância regular de três quadras e três dísticos gera um ritmo (binário)
que traduz o movimento balanceado da imagem poética e, ao mesmo tempo, do
desdobramento temático em duas instâncias: o narrador e a personagem (o
«menino»). Por outro lado, tendo em conta as leituras do poema, o tom do texto,
à primeira vista, ser ligeiro e inocente, na realidade, é de profunda tristeza
e amargura.
Note-se,
ainda, que a composição poética contém uma estrutura narrativa, dado que
o texto é desenvolvido com quem conta uma história, com as categorias próprias
da narratividade:
• espaço: a «Alma»
com o seu «balouço» e o seu «poço»;
• tempo: «sempre»,
«um dia» (presente – futuro);
• ação: os atos de
baloiçar e brincar por parte da criança;
• personagens: o
sujeito poético (o narrador) e o «menino de bibe».
Esta caráter narrativo do poema cria um efeito de
distanciação, sugerindo o desdobramento do «eu».
Estilisticamente,
há a assinalar, além dos recursos já identificados, o apelo às frases
reticentes, que deixam por concluir os comentários do sujeito poético, podendo
também sugerir a sua indiferença. Por outro lado, são visíveis marcas de
oralidade de registo familiar e expressões típicas da linguagem popular («Era
uma vez»; «Cá por mim»; «Grande estopada»).
Análise de "A janela e as feras", de José Régio
O poema, constituído por duas quadras e dois tercetos (soneto), abre com a referência a um hospício (localização espacial) onde há muitos residentes (“centos”), algo que, visto do exterior, não seria percetível. A entrada para o hospício é feita através de um portão que dança na dobradiça velha. A repetição da forma verbal «dança» sugere a entrada de mais doidos, ideia confirmada pela segunda parte do verso 4: “… e faz entrar mais a toda a hora”.
Lendo a
segunda quadra, apercebemo-nos de que os doidos que habitam no hospício têm uma
experiência de vida marcada pelo sonho, pelo crime e pelo vício, e viveram o
seu apogeu (“foram reis”) no passado remoto (“lá muito longe, outrora…”). Tendo
em conta a última estrofe do texto, onde é explicitado o significado do
hospício e dos doidos, podemos olhar para os versos 5 e 6 e concluir que os alienados
são impulsos e desejos de sonho, crime e vício, isto é, são impulsos que, se se
manifestassem, se se concretizassem, levariam a esses comportamentos nocivos e
destrutivos. Neste contexto, o verso 6 significa que esses impulsos reinaram já
no passado do sujeito poético. Olhá-los nos olhos causa medo e angústia.
Porquê? Porque têm uma natureza hedionda e ameaçadora, além de uma
potencialidade destrutiva. Presentemente, os doidos encarcerados sentem-se
ansiosos, envergonhados, perturbados e inquietos por estarem aprisionados
naquele hospício.
O segundo
terceto reproduz uma fala do sujeito poético (marcado pelo travessão) dirigida
ao seu corpo (apóstrofe), que é, afinal, o hospício de alienados. Assim sendo,
compreendemos agora que o hospício simboliza o «eu» poético, representando os
doidos, os alienados os impulsos, as tentações e os desejos que nele vivem. Os
doidos (isto é, os impulsos e desejos) estão «enjaulados», presos, no «eu»
lírico porque este se vê forçado a mantê-los aprisionados, a não deixar que se
manifestem.
Nesse mesmo
terceto, o sujeito poético exorta os seus desejos e os seus impulsos a
libertarem-se da «jaula», isto é, da contenção que ele lhe impõe? Como se
justifica este desejo? O «eu» quer que os seus impulsos e desejos o controlem
(ao contrário do que tem sucedido até aqui) e destruam a sua vida, que se
norteia pelas regras racionais e sociais. Nesta estrofe derradeira, além da
apóstrofe e da exclamação, predomina a personificação, visto que os desejos são
representados como loucos exaltados e agressivos, dando conta da sua ferocidade
e da ansiedade que têm em sair da sua prisão.
Note-se, por
último, que a composição poética constitui uma alegoria, visto que o «eu» e os
seus desejos são retratados através de uma sucessão de símbolos e metáforas
interligados que se materializam na imagem de um hospício (o «eu», o seu corpo)
com os seus loucos (os seus impulsos e os seus desejos).
Análise de "Pastelaria", de Mário Cesariny Vasconcelos
Este poema de Cesariny de Vasconcelos é constituído por oito dísticos e um terceto. Nele, o «eu» poético, socorrendo-se da anáfora e da ironia, tece uma crítica a vários comportamentos do indivíduo em sociedade. Estes recursos insinuam, de forma subtil, que as opiniões apresentadas pertencem a outros que não o sujeito poético, e através deles este exprime o seu desencanto e a crítica a um quotidiano limitado e superficial.
Que aspetos
da vida humana não têm importância? Não importam a literatura, a crítica de
arte e o cinema (?) / a fotografia (?) [“a câmara escura”], isto é, a expressão
através das artes; o negócio, uma vida profissional bem-sucedida, a riqueza e o
ócio / a falta de uma ocupação; a juventude e ser galante, dado que se
«fabricam»; gente com fome, isto é, problemas sociais.
E o que importa?
O que tem importância é não ter medo / ser corajoso, cair no vício
verticalmente (ou seja, atual impulsivamente e ter comportamentos autodestrutivos?;
existirá na referência ao vício uma alusão à homossexualidade do poeta, que lhe
valeu perseguição policial?); ser-se destemido e arrogante (“não ter medo de
chamar o gerente”); ser-se cínico, superior e desprezar os outros (“rir de tudo”
– v. 17). Para os outros, representados pelo «rapaz» do verso 9, a vida
prossegue: “E amanhã há bola [futebol], madame blanche [bordel] e parola”
[conversa e má-língua]. Porém, o que realmente importaria seria “não ter medo /
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: / Gerente! Este
leite está azedo!” (vv. 13 a 15), ou seja, questionar o regime, contestá-lo,
denunciá-lo publicamente.
São visíveis
no poema várias preocupações sociais (por exemplo, com a pobreza) e críticas
(por exemplo, à mediocridade e ao egoísmo, à superficialidade e à valorização
das aparências – v. 19 – em detrimento da essência das coisas, à indiferença
com os problemas sociais – como a fome –, à arrogância e à soberba, à vaidade e
ao desprezo pelos outros – vv. 16-17).
Relativamente
ao título, uma pastelaria é um lugar onde se patenteiam comportamentos
fúteis e superficiais por parte de determinados grupos sociais.
quarta-feira, 8 de setembro de 2021
Resumo do Canto XXII da Ilíada
Heitor é o único troiano que permanece fora das muralhas de Troia. Príamo implora-lhe que entre, mas o filho, que se sente culpado por não ter seguido os conselhos sábios que o intimavam a fazer recolher o exército, na noite anterior, para dentro da cidade, antes ter optado por o manter no exterior dos portões, sente-se demasiado envergonhado para retirar e se juntar aos seus homens, por isso permanece sozinho e não entra. Quando Aquiles regressa da perseguição a Apolo, disfarçado de Agenor, Heitor confronta-o. Inicialmente, tenta negociar com o inimigo, porém, quando percebe que qualquer negociação é impossível, foge. Ele corre em torno da cidade três vezes, graças à força extra que Apolo lhe concede, com Aquiles sempre na sua cola, bloqueando-lhe a entrada em Troia. Zeus considera a possibilidade de salvar Heitor, mas Atenas diz-lhe que a sua vez chegou. O chefe do Olimpo põe os destinos de Aquiles e Heitor numa escala de ouro e o resultado é o afundamento no chão do do comandante das tropas troianas.
Quando Heitor dá a terceira volta em
torno da cidade, aparece-lhe Atenas, disfarçada de Deífobo, também ele filho de
Príamo (de acordo com a mitologia grega, Deífobo casou com Helena, após a morte
do seu segundo marido, Páris), e convence-o a parar de correr, depois de
prometer que o ajudará a lutar contra Aquiles. Heitor assim faz e encara o
oponente, propondo-lhe um pacto segundo o qual o vencedor do duelo não mutilará
o vencido, porém o filho de Tétis responde-lhe que não há juramentos entre
homens e leões. Então Aquiles arremessa a sua lança primeiro, mas o oponente
esquiva-se. Sem o conhecimento de Heitor, Atenas devolve a arma a Aquiles. O
líder dos troianos atira, por sua vez, a lança com que está armado e atinge o
escudo do inimigo no centro. Heitor volta-se, de seguida, para Deífobo para lhe
pedir outra lança; quando descobre que o suposto irmão desapareceu, compreende
que os deuses o traíram. Percebendo a situação dramática em que se encontra,
Heitor ataca o oponente com a sua espada. No entanto, ele usa ainda a velha
armadura de Aquiles, roubada do cadáver de Pátroclo, que o seu antigo
proprietário conhece muito bem, nomeadamente os seus pontos fracos. Com um
golpe perfeito, Aquiles espeta a lança na garganta de Heitor. Moribundo, este
implora ao filho de Tétis que devolva o seu corpo aos pais, para que o sepultem,
todavia o líder dos Mirmidões recusa. Seguidamente, retira-lhe a armadura;
outros soldados gregos juntam-se-lhe e apunhalam o cadáver. Então, Aquiles
amarra o corpo de Heitor na parte traseira da sua carruagem e arrasta-o pelo
solo até ao acampamento aqueu. Enquanto isso, do alto das muralhas de Troia,
Príamo e Hécuba observam a cena e choram de dor. Andrómaca ouve os gritos e o pranto,
sai do quarto e corre para onde está o casal. Quando vê o cadáver do marido
sendo arrastado pelo solo, desmaia.
Análise do Canto XXI da Ilíada
A dor e a cólera de Aquiles, emoções motivadas pela morte do amigo Pátroclo, têm como consequência o massacre das tropas de Troia. Nesse processo, não há qualquer pingo de humanismo, piedade ou misericórdia da parte do filho de Tétis relativamente aos inimigos que se cruzam no seu caminho. O episódio com Licaonte põe a nu a transformação ocorrida em Aquiles: antes, resgatava ou vendia lutadores que capturava em vez de os matar; agora, não poupa ninguém. Se captura algum inimigo vivo, tal não se deve a qualquer gesto de piedade, antes tem como propósito queimá-los na pira funerária de Pátroclo. Esta prática, na época, consubstanciava um ato de honra para com os mortos, contudo, curiosamente, não se encontra em qualquer outro funeral descrito no poema. Talvez, afinal, o poeta – quiçá muitos gregos de há mais de 2700 anos – considere este um hábito bárbaro e indigno.
À raiva de Aquiles nem os deuses
escapam, como o demonstra o ataque que desfere sobre o deus do rio, quando este
se coloca ao lado de Troia. Sendo em parte mortal, o herói aqueu necessita de
ajuda para sobreviver ao rio, mas a forma e o tempo durante o qual resiste ao
ímpeto do curso de água evidenciam a sua força.
Relativamente aos deuses, pela
primeira vez no poema, lutam diretamente entre si, sem nenhum humano envolvido.
À medida que a guerra em torno de Troia se torna mais sanguinário e brutal, o
conflito entre os deuses revela-se mais superficial, mesquinha e sem sentido.
Eles não tentam mais interferir na batalha entre Gregos e Troianos, antes se
engalfinham entre si. No fundo, isto representa apenas a animosidade, os
conflitos pessoais que a guerra entre os mortais desperta neles. Por outro
lado, estas lutas divinas conferem variedade ao poema (à semelhança do que
acontece com os diferentes episódios que Camões introduz n’Os Lusíadas,
para quebrar a monotonia do relato da viagem de Vasco da Gama e da História de
Portugal).
Note-se, por outro lado, que estas
disputas entre as divindades estão longe da dignidade, heroísmo e nobreza das
guerras humanas, por ausência de consequências. De facto, os conflitos entre os
mortais causam imensas vítimas, mortais e outras, que têm repercussões
vastíssimas (por exemplo, no seio familiar), ao passo que, enquanto imortais,
os deuses arriscam apenas dor e humilhação temporárias. Observe-se outro
contraste: enquanto alguns humanos são feridos e, não obstante, continuam a
lutar apesar dos ferimentos mais ou menos graves, os deuses, quando feridos,
mesmo que de modo ligeiro, logo abandonam a luta e correm para Zeus, para se
queixarem. Neste contexto, é curioso observar que Homero parece adequar cada
ataque e as armas usadas à natureza da divindade que é atacada. Assim, Ártemis ataca
Ares, deus da guerra, com uma pedra, uma arma característica dos conflitos
bélicos da época; já Atenas agride Afrodite com um soco nos seios, o que se
adequa ao facto de esta ser a deusa do amor; por seu turno, Hera bate em
Ártemis, deusa da caça, com os seus próprios instrumentos de caça.
Resumo do Canto XXI da Ilíada
Aquiles continua a matar inimigos sem dó nem piedade, dividindo fileiras e forçando uma a recuar até ao rio Xando ou Escamandro, onde liquida mais uma série de soldados troianos. Um deles é Licaonte, filho de Príamo, que lhe pede misericórdia, inutilmente, pois é morto sem piedade. Seguem-se outros: o colérico e vingativo Aquiles não poupará ninguém e lança os cadáveres ao rio, tantos que o obstroem. O deus do curso de água protesta, e o filho de Tétis concorda em não atirar mais corpos à água, mas prossegue a matança. O rio, pró-troiano, solicita a ajuda de Apolo, contudo Aquiles escuta o rogo e ataca-o. O Escamandro responde com ondas fortes, remoinhos e inundações, e arrasta o herói grego até uma planície inundada. Em consequência, Aquiles quase morre, mas Hefesto, enviado por Hera, incendeia a planície e faz ferver o rio até este ceder.
Neste ponto da narrativa, as
entidades divinas, que assistem aos eventos e discutem a evolução do conflito,
começam a lutar entre si diretamente. Atenas agride e derrota Ares e Afrodite,
enquanto Poseidon desafia Apolo, desafio que este recusa, afirmando não lutar
por meros mortais. Ártemis, sua irmã, provoca-o e encoraja-o a lutar, contudo
Hera ouve-a e ataca-a.
Cá em baixo, em Troia, Príamo
observa a devastação que atingiu o seu exército e decide abrir os portões da
cidade, para que os sobreviventes nela se possam acolher, com Aquiles nos seus
calcanhares. Entra então em cena Apolo, que, para distrair o guerreiro troiano
e permitir que os soldados troianos disponham de tempo para se abrigar dentro das
muralhas, insta Agenor a ataca-lo. Quando Aquiles revida, o deus retira Agenor
do campo de batalha para um lugar seguro e disfarça-se do próprio Agenor, até
que os últimos guerreiros troianos encontrem abrigo no interior da cidade.
Análise do Canto XX da Ilíada
Neste canto, assistimos a uma tomada de posição diferente por parte de Zeus, que autoriza as outras divindades a intervir na guerra. Esta permissão coincide com o regresso de Aquiles à batalha. Zeus está consciente de que o filho de Tétis poderá vencer os Troianos sem a ajuda divina, antes do tempo profetizado. Isto indicia que os seres humanos, nalguns casos, poderão alterar o destino, se os deuses não os impedirem. Para os Gregos e os Romanos de épocas vindouras, o destino era imutável (Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, seguindo a filosofia estoico-epicurista, seguia estes princípios, segundo os quais o destino humano era implacável e inexorável), porém Homero parece entendê-lo como o resultado da interação das ações dos mortais e dos deuses. Não obstante e apesar das constantes referências que lhe são feitas ao longo do poema, o leitor nunca chega a ter uma noção clara de quais são as suas características. Os primeiros versos da Ilíada parecem indiciar que a vontade de Zeus se sobrepõe a tudo e a todos (note-se que, na poesia de Ricardo Reis, os deuses se submetem sempre a uma entidade superior, o Fado, que se sobrepõe às divindades, ao Homem e à Natureza), no entanto há ocasiões em que não é bem assim. Por exemplo, no Canto XV, deixa de apoiar os Troianos porque Troia está fadada a cair. Noutros momentos, como o Canto XX, Zeus e o destino parecem trabalhar em conjunto, nomeadamente quando o líder do Olimpo reúne os demais deuses para impedir que Aquiles derrote os Troianos antes do que está previsto. Mas será que existe mesmo essa entidade chamada destino? Este último exemplo parece suscitar essa dúvida. O mesmo acontece na cena em que Poseidon salva Eneias de ser morto por Aquiles, argumentando que o filho de Afrodite está fadado a viver. Ora bem, se Eneias está predestinado a não morrer, não precisa de ser salvo.
Em suma, esta obra de Homero não
apresenta uma hierarquia clara dos poderes cósmicos e o leitor fica sem saber
quem controla quem e o quê. Embora o poeta e, sobretudo, as personagens tendem
a responsabilizar as divindades ou o destino pelos acontecimentos, essa
responsabilização não os explica cabalmente. Poderemos até concluir que o
efeito é exatamente o oposto, pois aponta para a natureza misteriosa do universo.
Ou seja, responsabilizar essas entidades é sugerir que há questões da
existência humana que estão fora do controle humano e até da compreensão dos
homens.
Uma das personagens que volta a
estar em foco é Agamémnon. Ele volta a alijar responsabilidades pela forma como
os acontecimentos se desenrolaram, optando antes por apontar o dedo aos deuses
e ao destino, chegando a responsabilizá-los até pela sua obstinação e orgulho
no conflito com Aquiles. O chefe dos Gregos tem consciência de que muitos dos
seus o culpabilizam pelas desgraças que o seu insulto a Aquiles acarretou,
porém ele descarta essa responsabilidade e indica as forças cósmicas ocultas,
nomeadamente atê, a Ruína, que se refere, como já vimos, à ilusão e à
loucura, bem como às consequências desastrosas desses estados mentais. Embora
Peleu, no Canto IX, a descreva como uma mulher forte e ágil que corre sobre a
terra causando estragos, é algo externo à psicologia humana.
Voltando a Aquiles, este canto
confirma o que o anterior tinha anunciado: embora faça as pazes com Agamémnon
tal não apaga a sua cólera, apenas altera o seu alvo. Agora, fá-la desabafar
sobre os inimigos, passando a traduzi-la através da ação, quando antes se
exprimia pela inação, isto é, pela recusa em combater. Aquiles age de forma
descontrolada, movido pela raiva por Heitor e pelos Troianos, bem distanciado
de qualquer reflexão e frieza na análise das situações. É isso que sugerem duas
comparações. A primeira é estabelecida com um fogo violento, sugerindo uma
destruição violenta e descontrolada; a segunda consiste na sua associação a um
enorme boi que esmaga grãos para debulhar – se é verdade que esta tarefa está
associada à produção de alimentos e nada tenha a ver com a guerra, não deixa de
evocar a violência de um conflito bélico, sugerindo a força de Aquiles e o modo
como esmaga os inimigos. Sustento/alimento e violência coexistem nesta
comparação, implicando que fazem parte do mesmo todo.
Tudo isto remete para o dilema de
Aquiles, que não se altera desde o início do poema: viver uma vida longa e
obscura em Ftia, ou uma vida gloriosa, mas breve em Troia. Embora se pressinta
que ela está ainda dividido entre as duas opções, a morte de Pátroclo decidiu-o
de vez; vai lutar, conquistar a glória e morrer.