Neste canto, assistimos a uma tomada de posição diferente por parte de Zeus, que autoriza as outras divindades a intervir na guerra. Esta permissão coincide com o regresso de Aquiles à batalha. Zeus está consciente de que o filho de Tétis poderá vencer os Troianos sem a ajuda divina, antes do tempo profetizado. Isto indicia que os seres humanos, nalguns casos, poderão alterar o destino, se os deuses não os impedirem. Para os Gregos e os Romanos de épocas vindouras, o destino era imutável (Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, seguindo a filosofia estoico-epicurista, seguia estes princípios, segundo os quais o destino humano era implacável e inexorável), porém Homero parece entendê-lo como o resultado da interação das ações dos mortais e dos deuses. Não obstante e apesar das constantes referências que lhe são feitas ao longo do poema, o leitor nunca chega a ter uma noção clara de quais são as suas características. Os primeiros versos da Ilíada parecem indiciar que a vontade de Zeus se sobrepõe a tudo e a todos (note-se que, na poesia de Ricardo Reis, os deuses se submetem sempre a uma entidade superior, o Fado, que se sobrepõe às divindades, ao Homem e à Natureza), no entanto há ocasiões em que não é bem assim. Por exemplo, no Canto XV, deixa de apoiar os Troianos porque Troia está fadada a cair. Noutros momentos, como o Canto XX, Zeus e o destino parecem trabalhar em conjunto, nomeadamente quando o líder do Olimpo reúne os demais deuses para impedir que Aquiles derrote os Troianos antes do que está previsto. Mas será que existe mesmo essa entidade chamada destino? Este último exemplo parece suscitar essa dúvida. O mesmo acontece na cena em que Poseidon salva Eneias de ser morto por Aquiles, argumentando que o filho de Afrodite está fadado a viver. Ora bem, se Eneias está predestinado a não morrer, não precisa de ser salvo.
Em suma, esta obra de Homero não
apresenta uma hierarquia clara dos poderes cósmicos e o leitor fica sem saber
quem controla quem e o quê. Embora o poeta e, sobretudo, as personagens tendem
a responsabilizar as divindades ou o destino pelos acontecimentos, essa
responsabilização não os explica cabalmente. Poderemos até concluir que o
efeito é exatamente o oposto, pois aponta para a natureza misteriosa do universo.
Ou seja, responsabilizar essas entidades é sugerir que há questões da
existência humana que estão fora do controle humano e até da compreensão dos
homens.
Uma das personagens que volta a
estar em foco é Agamémnon. Ele volta a alijar responsabilidades pela forma como
os acontecimentos se desenrolaram, optando antes por apontar o dedo aos deuses
e ao destino, chegando a responsabilizá-los até pela sua obstinação e orgulho
no conflito com Aquiles. O chefe dos Gregos tem consciência de que muitos dos
seus o culpabilizam pelas desgraças que o seu insulto a Aquiles acarretou,
porém ele descarta essa responsabilidade e indica as forças cósmicas ocultas,
nomeadamente atê, a Ruína, que se refere, como já vimos, à ilusão e à
loucura, bem como às consequências desastrosas desses estados mentais. Embora
Peleu, no Canto IX, a descreva como uma mulher forte e ágil que corre sobre a
terra causando estragos, é algo externo à psicologia humana.
Voltando a Aquiles, este canto
confirma o que o anterior tinha anunciado: embora faça as pazes com Agamémnon
tal não apaga a sua cólera, apenas altera o seu alvo. Agora, fá-la desabafar
sobre os inimigos, passando a traduzi-la através da ação, quando antes se
exprimia pela inação, isto é, pela recusa em combater. Aquiles age de forma
descontrolada, movido pela raiva por Heitor e pelos Troianos, bem distanciado
de qualquer reflexão e frieza na análise das situações. É isso que sugerem duas
comparações. A primeira é estabelecida com um fogo violento, sugerindo uma
destruição violenta e descontrolada; a segunda consiste na sua associação a um
enorme boi que esmaga grãos para debulhar – se é verdade que esta tarefa está
associada à produção de alimentos e nada tenha a ver com a guerra, não deixa de
evocar a violência de um conflito bélico, sugerindo a força de Aquiles e o modo
como esmaga os inimigos. Sustento/alimento e violência coexistem nesta
comparação, implicando que fazem parte do mesmo todo.
Tudo isto remete para o dilema de
Aquiles, que não se altera desde o início do poema: viver uma vida longa e
obscura em Ftia, ou uma vida gloriosa, mas breve em Troia. Embora se pressinta
que ela está ainda dividido entre as duas opções, a morte de Pátroclo decidiu-o
de vez; vai lutar, conquistar a glória e morrer.
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