A dor e a cólera de Aquiles, emoções motivadas pela morte do amigo Pátroclo, têm como consequência o massacre das tropas de Troia. Nesse processo, não há qualquer pingo de humanismo, piedade ou misericórdia da parte do filho de Tétis relativamente aos inimigos que se cruzam no seu caminho. O episódio com Licaonte põe a nu a transformação ocorrida em Aquiles: antes, resgatava ou vendia lutadores que capturava em vez de os matar; agora, não poupa ninguém. Se captura algum inimigo vivo, tal não se deve a qualquer gesto de piedade, antes tem como propósito queimá-los na pira funerária de Pátroclo. Esta prática, na época, consubstanciava um ato de honra para com os mortos, contudo, curiosamente, não se encontra em qualquer outro funeral descrito no poema. Talvez, afinal, o poeta – quiçá muitos gregos de há mais de 2700 anos – considere este um hábito bárbaro e indigno.
À raiva de Aquiles nem os deuses
escapam, como o demonstra o ataque que desfere sobre o deus do rio, quando este
se coloca ao lado de Troia. Sendo em parte mortal, o herói aqueu necessita de
ajuda para sobreviver ao rio, mas a forma e o tempo durante o qual resiste ao
ímpeto do curso de água evidenciam a sua força.
Relativamente aos deuses, pela
primeira vez no poema, lutam diretamente entre si, sem nenhum humano envolvido.
À medida que a guerra em torno de Troia se torna mais sanguinário e brutal, o
conflito entre os deuses revela-se mais superficial, mesquinha e sem sentido.
Eles não tentam mais interferir na batalha entre Gregos e Troianos, antes se
engalfinham entre si. No fundo, isto representa apenas a animosidade, os
conflitos pessoais que a guerra entre os mortais desperta neles. Por outro
lado, estas lutas divinas conferem variedade ao poema (à semelhança do que
acontece com os diferentes episódios que Camões introduz n’Os Lusíadas,
para quebrar a monotonia do relato da viagem de Vasco da Gama e da História de
Portugal).
Note-se, por outro lado, que estas
disputas entre as divindades estão longe da dignidade, heroísmo e nobreza das
guerras humanas, por ausência de consequências. De facto, os conflitos entre os
mortais causam imensas vítimas, mortais e outras, que têm repercussões
vastíssimas (por exemplo, no seio familiar), ao passo que, enquanto imortais,
os deuses arriscam apenas dor e humilhação temporárias. Observe-se outro
contraste: enquanto alguns humanos são feridos e, não obstante, continuam a
lutar apesar dos ferimentos mais ou menos graves, os deuses, quando feridos,
mesmo que de modo ligeiro, logo abandonam a luta e correm para Zeus, para se
queixarem. Neste contexto, é curioso observar que Homero parece adequar cada
ataque e as armas usadas à natureza da divindade que é atacada. Assim, Ártemis ataca
Ares, deus da guerra, com uma pedra, uma arma característica dos conflitos
bélicos da época; já Atenas agride Afrodite com um soco nos seios, o que se
adequa ao facto de esta ser a deusa do amor; por seu turno, Hera bate em
Ártemis, deusa da caça, com os seus próprios instrumentos de caça.
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