segunda-feira, 18 de outubro de 2021
Nomes comuns
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
Nomes próprios
quarta-feira, 13 de outubro de 2021
Retrato / Caracterização de Heitor
Heitor é a maior figura de entre os Troianos. O filho de Príamo destaca-se pela sua grandeza heroica e humana. Ele constitui o modelo de filho, de marido, de pai e de cidadão. Enquanto Aquiles luta pela glória pessoal, Heitor fá-lo pela sua cidade e pelo seu povo, bem como pela sua família. Esta forma como Homero trata o inimigo configura uma prova clara de imparcialidade e da superioridade moral grega. Outro exemplo disto verifica-se quando Heitor morre às mãos de Aquiles. Nesse instante, os Aqueus aproximam-se para o verem de perto e não se coíbem de expressar a sua admiração pela beleza física do inimigo morto.
Heitor é, pois, o comandante do
exército troiano e nenhum guerreiro do seu exército se aproxima do seu valor,
coragem e valentia. Assim sendo, é ele quem lidera o ataque que, por fim, rompe
a resistência grega e penetra as suas muralhas, é ele o primeiro e único
troiano a atear fogo a um navio inimigo e, não menos importante, é ele quem
mata Pátroclo e, deste modo, se torna o responsável pelo regresso de Aquiles à
guerra. Tal sucede a partir do instante em que tira a vida a Pátroclo e suscita
o desejo de vingança no filho de Tétis. Em consequência, Heitor sentencia,
nesse momento, a sua morte.
Além disso, enquanto primogénito de
Príamo e Hécuba, será o futuro rei de Troia. A sua preocupação com as mulheres
troianas e com a comunidade troiana no seu conjunto enquadram-se perfeitamente
neste contexto.
Ao longo do poema, Heitor contrasta
com Aquiles: aquele é um homem com família e consciente das suas
responsabilidades nos seus diversos papéis, enquanto o segundo se apresenta
como uma figura extremamente orgulhosa, excessiva e barbaramente cruel. Nenhum
dos dois, no fundo, acredita na guerra, mas Heitor continua a lutar dado que é
a atitude honrada a ter nas presentes circunstâncias, enquanto Aquiles se
retira do conflito porque o seu orgulho foi ofendido por Agamémnon.
Além das responsabilidades sociais
que possui e das qualidades guerreiras que alardeia, Heitor é um comandante
preocupado e atencioso; por outro lado, respeita as divindades olímpicas, por
isso recusa o vinho que a sua mãe lhe oferece, visto que se encontra cansado e
impuro e receia que a bebida o faça esquecer o seu dever para com as suas
tropas.
Heitor é um homem virtuoso, um
modelo de herói homérico. Um claro exemplo disso verifica-se quando censura
Páris, seu irmão, por ter raptado Helena, atitude que precipitou a guerra com
os Aqueus. O gesto vergonhoso do irmão coloca Heitor numa posição complexa,
pois, se é verdade que tem de proteger Páris, também é necessário que o
repreenda. Deste modo, o seu código de conduta enquanto herói e modelo exemplar
colocam-no numa posição delicada.
De modo semelhante, Helena deixa-o
perante um dilema. Por um lado, ela é a companheira amorosa do irmão e uma
convidada da cidade de Troia. Além disso, como foi raptada, é uma esposa sem
dote, algo que desrespeita os princípios da sociedade troiana. Heitor não a
responsabiliza por nada, incluindo a guerra e os seus dramas, mas, sendo casada
indevidamente, constitui um símbolo de desordem e uma ameaça às normas sociais
de ambos os povos em conflito.
Por seu turno, Andrómaca representa
algo bem diferente para o «domador de cavalos», desde logo porque é a sua
esposa de forma legítima e de acordo com as normas. Heitor ama-a profundamente,
pelo que a perspetiva de, perdendo Troia a guerra, ela ser feito prisioneira e
escrava dos Gregos, o deixa extremamente inquieto e preocupado.
Esta postura e o relacionamento de
Heitor com as mulheres e crianças estão profundamente enraizados na cultura
homérica. De acordo com o código da época, um filho imita o pai na guerra, mas
também é criado pela mãe, que o ensina a comportar-se como um herói, lutando
por ela e por outras mulheres enquanto progenitores de heróis. A cultura da
época preocupava-se imenso com as mulheres e as crianças, visto que se trata de
seres humanos frágeis, dependentes e vulneráveis a vários males, como, por
exemplo, a escravidão. Neste sentido, Heitor é o herói que é, simultaneamente,
uma extensão do seu pai e da sua mãe.
Não obstante ser o comandante do
exército troiano e o mais valoroso dos seus combatentes, Heitor tem falhas. Por
exemplo, no Canto XVII, foge duas vezes quando combate com Ájax e só retorna
após ser insultado por Glauco e Eneias. Outra falha ocorre quando promete às
suas tropas a vitória na guerra após a expulsão dos Aqueus dos seus navios.
Quando discursa perante elas, anuncia-lhes o seu plano, segundo o qual
acamparão fora das muralhas, prontas para um ataque rápido. Tal perceção em
torno de uma possível vitória tem origem nu erro de interpretação da promessa
de Zeus, que, na verdade, se tinha comprometido a favorecer os Troianos apenas
até eles alcançarem os navios gregos, para que Agamémnon seja castigado pelo
que fez a Aquiles. Outra falha tem a ver com o seu excesso de confiança, que o
leva a recusar a retirada do exército para a segurança do interior da cidade,
sob a proteção das suas muralhas, tal como aconselha Polidamas, na noite que
antecede o retorno de Aquiles à guerra, o que conduz ao descalabro do dia
seguinte. Todos estes factos colocam-nos perante uma personagem impulsiva e
nada prudente, mas está bem longe do orgulho de Aquiles e da arrogância e
autoritarismo de Agamémnon.
Seja como for, Heitor é um homem de
família que ama a esposa e o filho e um patriota que se preocupa com troia e os
seus cidadãos. No entanto, quando abandona o interior da cidade, mostra-se uma
pessoa diferente, talvez pelo desejo do sucesso militar na guerra, pela sua
própria força e pela ilusão de que Zeus apoio incondicionalmente a sua causa. O
processo de isolamento que ocorre no exterior de Troia culminará no instante em
que se vê só no campo de batalha, lutando até à morte com Aquiles.
O lado negativo da personalidade de
Heitor evidencia-se noutro momento: a morte de Pátroclo. Nesse instante, foge
ao ideal do herói homérico, concretamente no momento em que ameaça arrastar o
corpo morto do inimigo até Troia para o deitar aos cães da cidade, quando o
código lhe impunha que o devolvesse aos Aqueus, para que estes o sepultassem
adequadamente. É também por isto que Aquiles maltratará o corpo do próprio
Heitor depois de o matar. Por outro lado, se é verdade que foge do filho de
Tétis aquando desse combate final e que, durante breves momentos, acalenta a
esperança de negociar a sua saída desse duelo, não o é menos que acaba por
enfrentar o seu poderoso inimigo, mesmo quando toma consciência de que os
deuses o abandonaram. A sua recusa em fugir nesse momento, mesmo perante forças
bem superiores a si, tornam-no a figura mais trágica da Ilíada.
Sob certo prisma, Heitor constitui o
mais heroico dos heróis no poema. Enquanto Aquiles, como já foi referido, passa
grande parte da obra amuado por causa do seu orgulho ferido, Heitor parece ser
bem menos egoísta, preocupando-se essencialmente com o destino de Troia e com a
sua família. Por outro lado, facilmente o leitor simpatizará com esta
personagem, desde logo porque sabe desde cedo que os deuses decidiram já que os
Gregos triunfarão e que Troia está condenada a sucumbir e que intervirão no
desenrolar dos acontecimentos, de modo a assegurarem-se de que esse será o
desenlace do conflito. Em suma, Heitor nunca teve qualquer hipótese de sair
vencedor.
A morte de Heitor é um dos passos
mais importantes da Ilíada, como é óbvio. No Canto XII, enquanto Aquiles
aniquila ferozmente todos os soldados troianos que lhe urgem à frente, Heitor
recua em direção aos portões da cidade. Vários compatriotas conseguem
refugiar-se no seu interior, todavia o filho de Príamo permanece no exterior,
apesar de os pais lhe implorarem que se coloque a salvo do inimigo. Heitor, no
entanto, decide ficar e lutar, num acesso de confiança nas suas capacidades e
força, no entanto subitamente essa confiança desaparece e ele foge. Aquiles
persegue-o em torno das muralhas três vezes, mas os deuses interferem nos
eventos e o «domador de cavalos» cumpre o seu destino e morre no campo de batalha,
confirmando-se também a ideia de que é um instrumento dos deuses.
Note-se que a Ilíada
principia focada em Aquiles e na sua cólera, contudo termina com os funerais de
Heitor. O estudioso James Redfield considera, por isso, que a figura principal
do poema é Heitor, a personagem cuja tragédia comove o leitor; a personagem
que, ao contrário de Aquiles, não participa na guerra por escolha pessoal, nem
dela se pode retirar quando algo o ofende. Assim sendo, isto é, porque não tem
escolha, o papel de Heitor é trágico: é seu dever proteger e defender os pais
idosos, a esposa, o filho, os concidadãos, Troia. Todos dependem dele.
Confirmando isto, quando ele morre às mãos do filho de Tétis, a cidade morre consigo.
Heitor é um homem nobre, um guerreiro viril e corajoso, com espírito de
sacrifício, uma figura que aceita o seu destino, o filho, o pai e o marido
ideal e exemplar. Exemplo de tal é a sua despedida de Andrómaca, um momento de
amor, ternura e compreensão mútua.
segunda-feira, 11 de outubro de 2021
Análise de "Fostes, filha, eno bailar"
A donzela acabou de chegar do baile
e a sua mãe repreende-a por ter rompido a roupa/o manto. Além disso, adverte-a
para que tenha cuidado, pois o baile aproxima-se da fonte, onde, aparentemente,
o baile teve lugar. Ora, no contexto da cantiga de amigo, a fonte constitui o
lugar do encontro erótico e o veado/cervo o símbolo da sexualidade masculina.
Por outro lado, a dança/o baile configuram um comportamento de cariz sensual ou
erótico, isto é, através do qual a jovem procura seduzir o amigo que a observa.
As roupas rasgadas (“e rompestes i o
brial”) simbolizam a perda da virgindade na poesia trovadoresca. O «brial» era
uma peça de vestuário exterior, uma espécie de túnica ou manto, feita de seda
ou outro tecido fino.
O primeiro verso do refrão adverte-a
para a aproximação do veado, que vai beber à fonte, a metáfora da virilidade,
portanto do amigo, ou seja, a figura materna chama a atenção da filha para a
vinda do amigo. Já o verso seguinte do refrão (“esta fonte seguide-a bem”)
apresenta dificuldades de interpretação. De facto, interpretá-lo de forma
literal parece não fazer sentido, visto que as fontes não se movem. Por outro
lado, a mãe também não está a mandar a filha para a fonte. Poder-se-á
aindaconsiderar que, neste caso, “seguide-a bem” poderá significar “observar” (“observa-a
bem”), indiciando que a progenitora está a alertar a jovem para ter cuidado com
algo. Todavia, de acordo com alguns críticos, este significado não foi
atestado. A forma «seguir» provém do latim vulvar “sequire”, pelo contrário “sequi”
(«seguir»), da raiz indo-europeia “sekw”. Assim, «vê», «observa» estão entre as
possibilidades decorrentes da raiz e este uso ocorre, efetivamente, em latim. A
Eneida, o célebre poema épico de Virgílio, contém o uso da expressão “oculis
sequi” com o sentido de «seguir (um objeto que recua) com os olhos”. Assim,
neste contexto, a evolução semântica da expressão seria algo como «seguir» >
«observar um objeto em movimento» > «observar um objeto». No entanto, se
correto, o uso é único.
A segunda cobla, como é
característico das cantigas de amigo paralelísticas perfeitas, repete o
conteúdo da primeira, sendo os respetivos versos muito semelhantes, com pequenas
variações, mais concretamente das palavras rimantes. Ainda assim, convém deixar
uma nota a propósito do termo «loir» (v. 6), cuja origem parece residir no
latim «ludere» (via «ludire»). «Loir» talvez não seja um sinónimo exato de
«bailar», mas regra geral significa «jogar» ou «brincar».
O segundo par de coblas insiste na
censura da mãe por a filha ter rompido as vestes, acrescentando nova informação
– como é hábito no paralelismo perfeito –, neste caso o pesar da progenitora
pelo sucedido, o que traduz a sua oposição à situação.
Em suma, tal como sucede em vários
outros cantares de amigo, esta composição é passível de uma dupla leitura. A
primeira, singela, coloca-nos perante uma mãe que censura a sua filha por esta ter
ido bailar e lá ter rasgado a sua roupa de tecido fino. A segunda, de cariz
metafórico, recorda-nos que o baile constitui um momento de sensualidade e
sedução do amigo por parte da donzela. Por outro lado, o «brial», que é uma
peça fina de vestuário, conota igualmente sensualidade e o seu rompimento
simboliza o rompimento do hímen, isto é, a perda da virgindade. Deste modo, estaremos
na presença da primeira relação sexual da jovem. Quanto à fonte,
geograficamente constitui o local do encontro amoroso, mas simboliza também a
figura feminina; já a sua forma, fálica, representa o amigo, que é igualmente
representado pela figura do cervo, um animal que, tradicionalmente, metaforiza
o homem.
Deste modo, poderemos concluir que a
donzela se foi encontrar com o amigo na fonte, onde se concretizou o ato sexual
e a consequente perda da virgindade da menina. A dança representa a sua
maturidade sexual; a fonte, o encontro e a concretização do ato; o romper do
brial, uma metonímia do rompimento do hímen, da perda da virgindade.
Tudo isto causa o descontentamento
da mãe, que comunica com a filha através de uma espécie de código, ao desvendar
o segredo da filha. As duas coblas finais acrescentam uma informação que parece
confirmar a ideia segundo a qual a donzela deseja manter ter relações sexuais
com o amigo: foi ela quem fez o vestido, sem o consentimento da mãe. Ora, este
dado implica que a figura materna se opõe ao relacionamento sexual da filha.
Porquê? Provavelmente, porque considera que a jovem não está ainda pronta para
dar tal passo, ou porque não tinha boa opinião do amigo.
Esta cantiga – à semelhança de
outras de Pero Meogo – alude à passagem da adolescência à idade adulta por
parte da donzela. De facto, as nove cantigas que conhecemos deste trovador
constituem um conjunto que conta uma história. Assim, as cantigas I a IV
configuram o prelúdio de uma iniciação sexual vivida pela donzela entre a preocupação
pelos sentimentos que alberga por ela o amigo, a segurança do namoro dele e a
procura dos conselhos da mãe. A cantiga V é o clímax de um encontro amoroso,
prolongado na plenitude do poema VI e sistematizado no VII. As cantigas VIII e
IX supõem a resposta da mãe à transgressão moral e mostram a sua preocupação
ante um abandono por parte do amigo.
Nestas cantigas, encontramos vários
elementos simbólicos, como o cervo, o mar, a fonte, etc. O mar é apresentado
como um espaço de morte. A rapariga que penteia os cabelos na fonte
relaciona-se com as figuras das «mouras», das «donas», das «lavadeiras» e da
própria Morrigana (a deusa da guerra e da morte para os celtas), de grande
conotação sexual, geradora de vida e de morte. O cervo é o símbolo da força
geradora, da virilidade. A sua origem encontra-se na raiz proto-indoeuropeia *ker,
com as variantes *kor e *kr-, que têm o significado de corno. Os
cornos do veado são elementos geradores relacionados com uma mística primitiva,
na qual se unem as forças masculinas e femininas.
segunda-feira, 4 de outubro de 2021
Sermão de Santo António aos Peixes - Exórdio (cap. I)
Análise da cantiga "Bailemos nós já todas três, ai amigas"
• Estrofes/coblas/cobras:
três sextilhas (4 + 2) heterométricas.
• Métrica: versos
decassílabos, alternando com versos tetrassílabos no refrão.
• Rima:
- esquema rimático: aaabab
- emparelhada e cruzada
- rica (“velidas”/”frolidas”)
e pobre (“amar”/”bailar”)
- grave (“velidas”/”frolidas”)
e aguda (“amar”/”bailar”)
- consoante (“velidas”/”frolidas”)
• Refrão: intercalado, monorrimo;
sugere o ritmo do baile a realizar; reitera o convite à dança realizado nas
coblas. Introduzindo a condição «se amigo amar».
• Ritmo: mais rápido no
refrão, coincidente com a alternância entre versos compridos e mais curtos.
• Transporte: vv. 1-2,
5-6, etc.
• Nomes:
- “amigas”: as donzelas
das cantigas de amigo;
- “amigo”: o objeto
visado pela ação (a dança) das donzelas, isto é, a figura para quem pretendem
dançar e, assim, seduzir;
- “avelaneiras”, “ramo”:
indiciam o ambiente (espaço e tempo) em que ocorre o baile.
• Pronome «nós»: indicia
uma ação coletiva.
• Adjetivos (“velida”, “louçana”):
encarecem a beleza física das donzelas, afinal aquilo que, juntamente com a
dança, atrairá os amigos.
• Verbos: encontram-se no
conjuntivo/imperativo, na 1.ª pessoa do plural, e traduzem o apelo, a exortação
à dança coletiva.
• Numeral cardinal três:
especifica o número exato de donzelas; simboliza a harmonia e a perfeição.
• Interjeição «ai»:
indicia a alegria do convite.
• Vocativo “ai amigas”:
identifica as confidentes, o destinatário do convite para bailar.
• Tipos de frases:
imperativas – traduzem o apelo/convite da donzela às amigas para dançarem.
• Anáfora: intensifica o
apelo à dança.
• Paralelismo semântico (“louçanas”/”velidas”),
estrutural e anafórico (“Bailemos”/”Bailemos”):
- salienta o objetivo do
convite, evidente na repetição de “Bailemos nós já todas três” (vv. 1 e 7);
- sublinha a relação de
proximidade afetiva entre as donzelas pela substituição da palavra “amigas” por
“irmanas”;
- evidencia a
consciência, por parte da donzela, de que ela e as suas amigas são belas,
através da sinonímia entre “velidas” (v. 3) e “louçanas” (v. 9);
- exprime a passagem de
uma visão geral do espaço (campo com avelaneiras onde as donzelas bailarão)
para uma visão circunscrita (a árvore e o ramo sob o qual decorrerá a dança),
através da substituição da expressão “avelaneiras frolidas” (v. 2) por “aqueste
ramo destas avelanas” (v. 8);
- contribui para a
cadência melódica da cantiga.
• Apóstrofe “Ai amigas”:
identifica o destinatário do discurso da donzela.
• Comparações: enfatizam
a beleza e a formosura das donzelas; incitam ao encontro, à dança e à
celebração do amor pelas donzelas enamoradas.
domingo, 3 de outubro de 2021
Retrato / Caracterização de Aquiles
Aquiles é o protagonista da Ilíada. Ele é filho de Tétis, deusa do mar que o tornou invulnerável (exceto no calcanhar, por onde o segurou) ao mergulhá-lo no rio Estige quando era bebé, e de Peleu, um homem mortal.
Trata-se do maior guerreiro do
exército aqueu e o líder dos Mirmidões, que combatem ao lado dos Gregos contra
os Troianos. Nas palavras de Maria Helena da Rocha Pereira (in Estudos de
História da Cultura Clássica, 6.ª ed., p. 173), “Aquiles [é] o herói
modelo, nobre e valente, mas impulsivo […]”. De facto, Aquiles é uma personagem
que encerra em si as características de um extraordinário combatente, o maior
dentre os Aqueus, mas as suas falhas de caráter impedem que haja com
humanidade, nobreza, compaixão e integridade. É um homem orgulhoso que se deixa
cegar pela raiva quando esse orgulho é ferido, como se comprova através do
conflito que mantém com Agamémnon, que o leva a abandonar a guerra, juntamente
com os seus Mirmidões, enquanto o comandante grego não se desculpar. Mais do
que isso, a cólera é tão grande que pede aos deuses que provoquem a derrota do
rei grego e do seu exército, isto é, do seu próprio povo, dos seus
companheiros. O seu sentido de honra pessoal inviabiliza qualquer acordo e
apenas a perda de um amigo – Pátroclo – o demove da sua ausência da batalha.
A sua inação e a retirada da guerra condicionam
o desenrolar dos acontecimentos. O que o move é o desejo de honra e glória,
granjeadas no conflito bélico, desejo esse que é tão intenso que a personagem
prefere morrer coberto de glória a regressar a casa, são e salvo e em paz, com a
garantia de uma vida longa.
De início, Aquiles parece possuir um
sentido agudo de ordem social que se manifesta quando revela a sua preocupação
com a desordem que grassa no acampamento grego; uma praga mortal instalou-se no
exército e o protagonista quer conhecer a razão. Por outro lado, estamos na
presença de alguém que, por vezes, desrespeita as normas sociais. É o que
sucede quando decide convocar uma assembleia do exército logo no início do
poema, algo que estava reservado apenas a Agamémnon. Essa reunião permite-lhe
ficar a saber o motivo da praga, no entanto, com isso, faz instalar a desordem
entre os Aqueus quando é revelado que o culpado da doença é o próprio
Agamémnon. Deste modo, é a tentativa do líder dos Mirmidões de devolver a ordem
ao acampamento que, em última análise, causa maior desordem. A sua raiva é tão grande
que quase tenta matar o líder aqueu, o que não consegue somente porque Atena o
impede.
Note-se que Aquiles não abandona a
guerra e os companheiros sem motivo. De facto, Agamémnon exige que o filho de
Tétis lhe entregue Briseida, o seu prémio de guerra, e Aquiles vê nesta
exigência um paralelo com o rapto de Helena por Páris, comparando-se a Menelau.
Assim sendo, na sua ótica, o conflito entre si e Agamémnon é tão justificado
quanto a guerra contra os Troianos. Mesmo depois de o chefe aqueu concordar em
lhe devolver Briseida juntamente com vários presentes, Aquiles mantém-se irredutível,
o que indicia que um dos seus maiores defeitos é o orgulho excessivo. A oferta
de Agamémnon, na perspetiva do filho de Tétis, não compensa a afronta e o
insulto públicos que acredita ter sofrido.
Aquiles norteia a sua vida por um
código heroico claro, no entanto, quando se afasta da guerra, começa a questionar
a glória individual, principiando a desenvolver-se a noção de que o lar, a
família e o indivíduo são igualmente importantes para a sociedade e para o
herói. Esta visão surge concretizada, no poema, na figura de Heitor. Estes
conceitos só se tornam mais efetivos após a morte de Pátroclo e o encontro com
Príamo. Ele sente que é sua obrigação vingar o passamento do amigo e reconhece
as suas insuficiências enquanto seu protetor.
Durante a maior parte da obra, as
ações de Aquiles são guiadas pela sua cólera. A sua batalha junto ao rio
Escamandro evidencia toda a sua ferocidade, impiedade e fúria insana no campo
de batalha. O próprio deus do rio, confrontado com os seus excessos, como a
mutilação de corpos dos inimigos, o censura e acusa de crueldade excessiva e desproporcionada.
No fundo, Aquiles está a tentar vingar a morte de Pátroclo matando o máximo de
soldados troianos que conseguir, como se todos fossem culpados do sucedido. A
fúria e a violência cruel do filho de Peleu encontram o seu término com a morte
de Heitor e a mutilação do seu cadáver e são definitivamente sanados aquando do
encontro com Príamo.
A consequência mais evidente do
abandono da guerra por parte de Aquiles é o facto de estar longe da vista do
leitor durante a maior parte da Ilíada. Estamos na presença do herói
bélico por excelência, no entanto não pega numa arma em mais de 80% dos versos
do poema. Esta opção por parte de Homero talvez tenha a ver com o objetivo de o
poeta querer enfatizar o momento em que o filho de Tétis retorna ao campo de
batalha para tirar a vida a Heitor, como vingança pela morte de Pátroclo.
Por outro lado, desde cedo – mais precisamente
desde o canto inicial – nos apercebemos do drama que atinge o protagonista da
obra. Num certo sentido, Aquiles está sempre do lado oposto do resto do mundo,
incluindo a própria mãe, neste caso porque têm desejos diferentes para a vida
do líder dos Mirmidões. Quando o filho lhe relata a ofensa de Agamémnon, fica
claro que a roda do Destino foi posta em funcionamento e dela não haverá
possibilidade de fugir. Aquiles parece já ter decidido que prefere viver uma
vida curta motivada pela busca da glória individual, mas Tétis não se conforma
com isso: “Quem dera que junto às naus estivesses sentado sem lágrimas / e sem
sofrimento, visto que curta é a tua vida, sem duração! / Agora será rápido o
teu destino e mais do que todos os outros / sofrerás. Para um fado cruel te dei
à luz no nosso palácio” (I, vv. 415-418). Atente-se neste passo: “[…] mais do
que todos os outros / sofrerás”. Ele parece indiciar que, para Homero, o herói
deverá ser capaz de sentir/suportar mais dor do que o comum dos mortais. Os
próprios deuses, como se verifica pelas palavras de Tétis, não escapam ao sofrimento
e à dor. Outros exemplos são dados por Afrodite, deusa grega do amor, e Ares, a
divindade da guerra, ambos feridos por simples mortais.
Aquiles combate para alcançar a
glória pessoal, porém afasta-se da guerra pelos motivos conhecidos. Quando Agamémnon,
desesperado, no Canto IX, envia uma embaixada, constituída por Ajax e Ulisses à
sua tenda, prometendo-lhe várias riquezas se ele reconsiderar e refregar à
refrega, o filho de Tétis recusa. Porquê? Porque deixou de acreditar na guerra.
É isso que transparece na seguinte fala, dirigida a Ulisses: “Igual porção cabe
a quem fica para trás e a quem guerreia; / na mesma honra são tidos o cobarde e
o valente: / a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança” (vv.
318-320). Deste modo, quando Aquiles regressa à guerra, não o faz já motivado
pela procura da glória, mas por um motivo pessoal e íntimo: a dor causada pela
morte do amigo Pátroclo. Nas palavras de Frederico Lourenço, na introdução à
sua magistral tradução da Ilíada (p. 18), “[…] se, por um lado, quando o
herói máximo comete o seu máximo feito (matar Heitor), o heroísmo «tradicional»
já deixara de lhe fazer sentido, há, por outro lado, como que uma reinvenção do
conceito de heroísmo no ato de matar na plena consciência de que a morte da
vítima acarreta a morte de quem mata. Às vezes parece que morrer, na Ilíada,
é muito mais importante do que viver.”
Análise do Canto XXIV da Ilíada
A Ilíada termina de modo semelhante ao que começou. De facto, Príamo atravessa as linhas inimigas para suplicar a Aquiles o corpo do seu filho, tal como Crises, no Canto I, se dirigiu ao acampamento grego, para que lhe fosse restituída a sua filha. No entanto, ao contrário do que sucedeu com este último, a prece de Príamo é atendida de imediato. A invocação, pelo rei de Troia, do pai do herói grego cria um vínculo momentâneo entre ambos. Aquiles sabe que está fadado a não regressar a casa, o que significa que, em breve, Peleu será o pai desolado que Aquiles fez de Príamo ao assassinar-lhe o filho e profanar o corpo. Essa súbita consciência de que o seu próprio progenitor está condenado a sofrer aquilo que Príamo sofre agora aplaca a cólera de Aquiles e emociona-o.
É preciso ter consciência, porém, de
que o vínculo entre Aquiles e Príamo é momentâneo, dado que, na essência, nada
se alterou, desde logo porque Agamémnon, se deparasse com o rei de Troia no
acampamento, logo o faria prisioneiro. Os próprios Aquiles e Príamo continuam a
ser inimigos, tal como Hermes recorda ao velho rei. O destino de Troia está
traçado: a cidade está fadada a cair às mãos dos Gregos, como nos recorda
Andrómaca ao ver o corpo sem vida de Heitor. Não obstante todos estes factos,
nomeadamente a certeza de que Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, a
verdade é que a sua animosidade se torna, agora, mais nobre e respeitosa.
Este último canto do poema
exemplifica a mudança operada na personalidade de Aquiles. De facto, o herói
surgiu, de entrada, como uma figura colérica, temperamental, orgulhosa, egoísta
e impulsiva, contudo, no momento em que a obra finaliza, revela empatia,
compaixão e simpatia pelo outro. Ao longo da Ilíada, o narrador
mostra-nos um Aquiles incapaz de pensar em alguém mais do que em si próprio e
nos seus problemas, guiado pelo orgulho e pelo rancor. Estes traços de personalidade
são tão vincados que o filho de Tétis parece indiferente à sorte do seu povo,
que parece condenado à derrota sem a sua presença no campo de batalha. Nada o
abala nem demove, exceto a morte de Pátroclo. Contudo, este acontecimento não o
torna melhor pessoa; pelo contrário, a sua raiva é mais forte do que nunca e a
sua crueldade e desumanidade não explícitas a partir do momento em que põe fim
à vida de Heitor e profana o seu corpo. NO entanto, o encontro com um Príamo
despedaçado pela dor e a lembrança do seu pai, Peleu, humaniza-o, levando-o a
corresponder positivamente ao apelo do rei dos Troianos, devolvendo-lhe o corpo
do filho, e indo mais além inclusive, ao conceder uma trégua de doze dias na
guerra, para que em Troia se proceda adequadamente às exéquias fúnebres do seu
herói. Note-se que, neste passo e nestas decisões de Aquiles, não existe
qualquer interferência por parte dos deuses, facto que confirma a tal
humanização da personagem.
Atente-se, todavia, que este “novo
Aquiles” pode não ser duradouro, tendo em conta a sua reação quando Príamo lhe
sugere que regresse a casa em paz, mas sem glória, algo que o grego considera
um insulto. Há que ter em conta, porém, que o traço da raiva e da cólera não é
exclusivo do líder dos Mirmidões, dado que até o próprio Príamo afirma que
preferia que tivesse morrido qualquer um dos outros filhos no lugar de Heitor;
Hécuba declara, em fúria, que gostaria de comer o fígado de Aquiles.
Esta mudança operada em Aquiles
enfatiza a importância que a cólera da personagem assumiu ao longo de todo o
poema. Este não se conclui com a morte do herói aqueu nem com a queda de Troia
e a derrota dos Troianos, mas com o apaziguamento da cólera. A ênfase é posta
no lado das personagens, nas suas emoções e sentimentos, e não na guerra e nas
suas peripécias. Como se explica esta opção de Homero? Por um lado, o público
contemporâneo do autor estaria familiarizado com a história; por outro, o
leitor de qualquer outra época fica a conhecer, desde cedo na obra, o desfecho
da ação. Assim sendo, o suspense acerca da mesma desaparece a partir das
primeiras páginas. Além disso, o motivo que condiciona o evoluir dos
acontecimentos é a cólera de Aquiles, pelo que fará todo o sentido que a obra
finalize quando o conflito que a iniciou se resolve. Deste modo, o tema central
do poema parece ser a evolução pessoal do protagonista – Aquiles.
Por outro lado, a
história tem uma estrutura circular, como já foi aludido anteriormente. Assim,
o apelo de Crises pela devolução da sua filha encontra equivalência no retorno
do corpo de Heitor a seu pai – o primeiro apelo (e a resposta negativa ao
mesmo) inicia o conflito e o segundo encerra-o.
A Ilíada finaliza com os
funerais de Heitor, uma forma de concluir a história com um momento de
dignidade e de honra não só dedicado ao herói troiano, mas, no fundo, de todos
os que pereceram durante a guerra.
O que resta do conflito bélico,
nomeadamente o seu desenlace, a queda de Troia, o estratagema usado para tal ou
a morte de Aquiles são relatados noutros textos, como, por exemplo, a Odisseia.
sábado, 2 de outubro de 2021
Resumo do Canto XXIV da Ilíada
Nos dias seguintes, Aquiles continua a profanar o cadáver de Heitor amarrando-o ao seu carro, arrastando-o em torno da tumba de Pátroclo. No entanto, Apolo o corpo de herói troiano para que não se deteriore ou apodreça e afasta cães e necrófagos, enquanto Hera, Atenas e Poseidon impedem que os outros deuses o capturem e devolvam à família.
No décimo segundo dia após a morte
de Heitor, Zeus reúne as divindades e decide que Aquiles devolverá o corpo de
Heitor em troca de um resgate, para que seja adequadamente sepultado. Para que
tal se concretize, Zeus envia Tétis para levar a notícia a Aquiles, enquanto
Íris vai ao encontro de Príamo no sentido de o instruir a constituir o resgate.
Hécuba receia que Aquiles mate o marido, mas o pai dos deuses tranquiliza-a,
enviando uma águia como bom augúrio.
Príamo, guiado por Hermes,
disfarçado de soldado mirmidão, na companhia de um velho servo, dirige.se ao
acampamento aqueu com uma carruagem repleta de tesouros. Quando chegam, sem
serem vistos, à tenda de Aquiles, Hermes revela a sua verdadeira identidade e
deixa Príamo sozinho com o líder dos Mirmidões. Então, o rei dos Troianos
ajoelha-se diante de Aquiles, beija-lhe as mãos e suplica-lhe, em prantos, pelo
corpo do seu filho. Ele pede-lhe que pense no seu próprio pai, Peleu, e no amor
que existia entre ambos. A lembrança do seu próprio progenitor comove o filho
de Tétis, que chora, aceita o resgate e aquiesce em devolver o corpo de Heitor.
Depois de ordenar que o cadáver seja
preparado, Aquiles oferece hospitalidade ao rei da Troia, nomeadamente comida e
cama para passar a noite, e concede uma trégua de doze dias aos Troianos para
realizarem os rituais fúnebres de Heitor. Entretanto, temendo que Príamo possa
ser feito prisioneiro, Hermes vem até ele e acorda-o antes do amanhecer,
alertando-o de que não deve dormir entre o inimigo. Se seguida, com o velho
servo, coloca o filho no seu carro e abandonam o acampamento aqueu sem ser
notado. Cassandra, sua filha, vê-o aproximar-se e toda a cidade se reúne junto
aos portões para receber o seu príncipe. Todas as mulheres choram o corpo de
Heitor, e Andrómaca, Hécuba e Helena entoam canções de luto que evidenciam a
habilidade do morto nas artes da guerra, o favor dos deuses e a sua bondade.
Durante os nove dias seguintes, os Troianos preparam a pira funerária de
Heitor, que é acendida ao décimo dia. O seu corpo é, assim, queimado e os ossos
enterrados, numa caixa de ouro, numa cova rasa.
Análise do Canto XXIII da Ilíada
A raiva que Aquiles dirigira, anteriormente, contra Agamémnon é agora reorientada para Heitor e, tal como antes, também neste passo o líder dos Mirmidões se deixa cegar pela cólera, vingando-se no corpo do comandante troiano e queimando inimigos capturados na pira funerária, juntamente com Pátroclo. Por outro lado, os três últimos cantos da Ilíada seguem um padrão estrutural semelhante aos primeiros vinte. Além do facto já observado de a raiva por Agamémnon ser substituída pela dirigida a Heitor, tal como Aquiles se reconciliou com o rei dos Gregos, também agora se reconciliará com Príamo, o pai do seu inimigo morto.
A profanação do cadáver de Heitor
começou já no canto anterior e prossegue neste. O modo como ela é praticada faz
com que o leitor não simpatize com Aquiles, o que contrasta com a imagem com
que ficamos de Heitor. De facto, este matou Pátroclo, mas não profanou o seu
corpo, ao contrário do que o filho de Tétis fez com o seu e que vai para além
do aceitável e do razoável.
Esta cólera de Aquiles é temperada
por dois acontecimentos deste canto: o sonho com Pátroclo e os jogos fúnebres
em sua honra. Em amos os momentos, o leitor toma contacto com um lado mais
humano e clemente do herói grego. O aparecimento do fantasma de Pátroclo enfatiza
a importância que o sepultamento adequado dos mortos tinha para os Gregos, algo
que um Aquiles irracional recusa a Heitor. Note-se ainda a importância que o
corte da mecha de cabelo do líder dos Mirmidões e a sua colocação na pira
funerária assume nesta fase da obra, pois simboliza que Aquiles prefere morrer
de forma gloriosa na guerra do que regressar a casa em paz e ter uma existência
longa. Por outro lado, o sonho com Pátroclo constitui um caso raro, no poema,
de evento sobrenatural (além da presença das divindades olímpicas) e pode
traduzir uma espécie de diálogo de Aquiles consigo mesmo. O pedido do fantasma
no sentido de ser sepultado em conformidade representa a crença grega segundo a
qual a alma do morto não descansa enquanto este não estiver enterrado. Além
disso, esta aparição em sonhos prepara o caminho para a reconciliação de
Aquiles com Príamo, que se concretizará no Canto XXIV. O falecido representa o
lado mais humano do filho de Tétis.
Os jogos em homenagem de Pátroclo
apresentam-nos um Aquiles sem cólera, mais justo e diplomático, como se pode
constatar quando resolve a contento uma disputa sobre prémios, que se
assemelha, de algum modo, ao incidente que esteve na génese do conflito com
Agamémnon: o herói grego tenta despojar Antíloco, o cocheiro, do prémio que
ganhara nos jogos. Tal como este terminara a competição em segundo lugar, atrás
de Diomedes, também Aquiles terminara na segunda posição, atrás de Agamémnon;
Antíloco, à semelhança do que Aquiles fizera antes, recusa a injustiça e a
humilhação de não ver reconhecidos os seus triunfos. No entanto, contrariamente
ao que sucedera com o conflito entre o filho de Tétis e Agamémnon, esta disputa
em torno de Antíloco é resolvida de forma pacífica e não se reflete de forma
duradoura nas personagens e nas suas relações. Em suma, os jogos fúnebres
constituem um momento de pausa no luto.
Por outro lado, é provável que estes
jogos tenham tido como modelo eventos desportivos reais, como, por exemplo, as
competições olímpicas, que surgiram na mesma época em que a Ilíada terá
sido composta. Especialistas na obra de Homero consideram que as primeiras competições
constituíam uma série típica de jogos: a corrida de cavalos de dois cavalos, o
boxe, a luta livre e a corrida a pé. Outras competições terão constituído
acréscimos posteriores.
Os jogos eram muito importantes na
cultura grega da época, desde logo porque constituíam uma oportunidade de os
competidores alcançarem a fama e a glória, honra e prémios em tempos de paz.
Convém notar que estes jogos configuravam um momento de teste das habilidades
exibidas na guerra, bem como de ostentação de triunfos e feitos.
Além das vitórias nos jogos, a
hierarquia e a habilidade são também homenageadas. Aquiles deseja atribuir o
segundo prémio na corrida de carros ao melhor condutor, que, na realidade,
chegou em último lugar. Nestor é premiado pela sua vida e feitos enquanto
guerreiro. Aquiles, revelando uma diplomacia que não se lhe conhecia, declara
Agamémnon o vencedor do concurso de lançamento de lança sem a competição se ter
efetuado, reconhecendo-se, assim, a sua posição como comandante geral do exército
grego.
Por último, há a assinalar o facto
de estes jogos constituírem uma oportunidade para o leitor ver em ação os
heróis gregos. Deste modo, os eventos colocam-nos perante uma competição mais
civilizada (do que a guerra) e proporcionam-lhes uma despedida condigna. De
facto, apenas Aquiles surge em cena no Canto XXIV, o último do poema.