Esta
cantiga, da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal, é constituída por duas
sextilhas, formadas por uma quadra seguida de refrão em forma de dístico,
antecedidas por uma rubrica. Esta composição poética, bem como outra do mesmo
trovador, têm a aparência de duas cantigas de amigo vulgares (a figura feminina
comenta os seus amores com as amigas), porém vêm acompanhadas de rubricas que
as contextualizam: foram feitas “a Dom Anrique em nome da rainha Dona Joana, sa
madrasta, porque diziam que era seu entendedor”. Quer isto dizer que estamos
perante cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X,
Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado,
D. Henrique, irmão do rei. Apesar de a acusação poder ser mais fictícia do que
real, ambos os poemas se referem a factos históricos concretos ocorridos no
âmbito do conflito que estalou entre os dois irmãos. De facto, ambos entraram
em litígio pouco tempo depois da conquista de Sevilha, ainda no tempo de
Fernando III, o qual se prolongou durante vários anos. A cantiga remete para um
dos episódios finais da disputa, o recontro que opôs as tropas reais e as de D.
Henrique (senhor de Morón), perto de Lebrija, no qual este último foi
derrotado, derrota que essa que o levou ao exílio, mencionado na outra cantiga
referida. Estes factos tiveram lugar em 1259. Deste modo, não restam dúvidas de
que estamos na presença de duas autênticas cantigas de escárnio, debaixo da aparência
de cantigas der amigo.
O
Infante D. Henrique, irmão de Afonso X, nasceu por volta de 1230 e cedo se
distinguiu no campo militar, por meio do papel que desempenhou no cerco de
Sevilha e na conquista de Andaluzia. Após a morte de Fernando III, o conflito
já latente entre os dois irmãos, motivado pelas grandes doações feitas pelo pai
a D. Henrique, bem como à rainha Joana, estala abertamente. Em 1255, apoiado
por Jaime I de Aragão, D. Henrique enfrenta militarmente Afonso X, mas foi
derrotado pelo exército comandado por D. Nuno Gonçalves de Lara. Na sequência
da derrota, buscou refúgio em Aragão, contudo não obteve o apoiado esperado por
parte de Jaime I. Mais tarde, esteve ao serviço do sultão Al-Mustansir, em
Tunes, entre 1259 e 1266, e, posteriormente, período em que se instalou em
Roma, onde foi nomeado senador (governador da cidade). Feito prisioneiro de Carlos
de Anjou na batalha de Tagliacozzo, em 1268, permaneceu em cativeiro até 1294,
apesar de várias tentativas de Afonso X para obter a sua libertação. Nesse ano,
regressou à Península Ibérica, tendo sido acolhido pelo herdeiro do trono, seu
sobrinho, Sancho IV. A morte prematura deste soberano em 1295 tornou-o um dos
homens mais influentes da época. Deste modo, assumiu o governo do reino a par
de Maria de Molina, mãe do herdeiro presuntivo da coroa, o jovem infante
Fernando. Nomeado seu tutor nas Cortes de Valladolid, defendeu os seus direitos
face às pretensões dos Infantes de la Cerda, igualmente netos de Afonso X. A
sua atuação até 1301 permitiu ao jovem infante subir ao trono como Fernando IV
nesse mesmo ano, ficando pelo meio a assinatura do Tratado de Alcanizes com D.
Dinis, tratado esse que contribuiu para aliviar a pressão na fronteira
ocidental e a fixação das fronteiras entre ambos os reinos. Até à sua morte,
ocorrida em 1303, D. Henrique continuou envolvido na complexa trama política
castelhana que ocorreu ainda em consequência da crise sucessória anterior.
Joana
de Poitiers foi a segunda mulher de Fernando III de Castela. Nascida Joana de
Danmartin, cerca de 1220, era filha de Simon de Danmartin e de Maria de
Ponthieu e de Montreuil e bisneto, por via materna, de Luís VII de França. O
seu matrimónio com Fernando III gerou cinco filhos. Após a morte do marido, em
1252, permaneceu mais alguns anos em Castela, mas a deterioração das suas
relações com Afonso X, seu enteado, potenciadas pelo apoio que deu ao partido
do Infante D. Henrique, na época em rutura com o irmão, levaram-na a regressar
definitivamente a França, cerca de 1259. Aí, casou-se, em segundas núpcias, pol
volta de 1260 ou 1261, com Jean de Nesle, senhor de Falvy et de La Hérelle.
Faleceu em 1279, na cidade de Abbeville.
Rodrigo
Afonso era o filho bastardo de Afonso IX de Leão e meio irmão de Fernando III,
ou seja, tio de Afonso X. Mouron refere-se a Moron de la Frontera, um município
localizado a sudoeste de Sevilha, na província de Andaluzia. A praça pertencia
a D. Henrique, como a cantiga deixa bem explícito, parecendo existir na rubrica
uma imprecisão, já que o recontro terá tido lugar, não em Morón, mas nas proximidades
de Lebrija.
A
rubrica é, portanto, clara: a cantiga é feita por Gonçalo Anes do Vinhal a Dom
Henrique em nome da rainha D. Joana, sua madrasta, porque diziam que era seu “entendedor”,
isto é, seu amante, quando combateu em Moron com D. Rodrigo Afonso, que
comandava o exército real.
O
primeiro verso abre com uma apóstrofe do sujeito poético às amigas, algo
característico da cantiga de amor. Essa apóstrofe serve para lhes confidenciar
que ouviu dizer que os de “Mouron” combateram com o exército do rei. Ouvir
dizer, porque não tem a certeza se é verdade: “e nom poss’end’a verdade saber”.
Os dois
pontos com que encerra o verso 4 anunciam o refrão, no qual o «eu» poético se
mostra preocupado com a sorte do seu amigo, cuja sorte desconhece (“se é viv’o
meu amigo”), o mesmo a quem fez a oferta de uma touca, uma prenda que era dada
muitas vezes pelos apaixonados. No entanto, Carolina Micäelis defende que, neste
verso, se trata de uma touca de viúva, o seu atavio tradicional.
Na
segunda e última estrofe, o sujeito poético põe a hipótese de dar a sua cinta a
quem lhe desse notícias do seu amigo e declara apenas não o fazer por tal lhe causar
mal e ser tido por gabarola ou fingido. Recorde-se que, na primeira estrofe, se
referira outra prenda, a touca, que tinha um grande valor para a mulher, pois
fora um presente dado ao amigo, ou, na leitura de Carolina Michäelis, o símbolo
da sua viuvez. Na primeira hipótese, a touca constitui, portanto, uma prenda de
amor que ele levou consigo, dada por ela, como emblema do seu amor. Assim
sendo, a peça de vestuário tanto pode simbolizar a relação amorosa de ambos,
como, de acordo com outra interpretação, representar uma referência à condição
de viúva de Joana de Poitiers.
Em suma,
a touca é uma peça de indumentária feminina, característica da Península
Ibérica e presente sobretudo na cantiga de amigo. Possui uma função simbólica
associada a outras “dõas” que os enamorados trocavam entre si como indício do
seu compromisso amoroso. Há, porém, críticos que lhe atribuem um valor
relacionado com o estado civil da mulher, casada ou viúva. Além disso, a touca
surge associada a outros elementos femininos.
Etimologicamente,
a palavra não parece derivar do latim e é próprio da Península Ibérica
(galego-português, castelhano e basco). Devendo ter-se estendido ao resto da
Europa na época medieval. Corominas y Pascual defendem que a sua possível
origem radica na forma persa «tak», isto é, «véu», «lenço», «xaile», enquanto
Ramón Lorenzo remete a origem etimológica o termo «tauca», que remontaria a uma
língua pré-romana, embora não determine qual. Contrariando a afirmação inicial,
autores recentes remetem para o latim vulgar «toca», derivado de «toccus», que
significava uma cobertura ou peça de vestuário para a cabeça, e associam a sua
origem ao gótico «tukko», que remetia para um tipo de pano ou cobertura. Com o
tempo, a palavra foi assimilada por outras línguas europeias, conservando o
sentido de um acessório para cobrir a cabeça, geralmente feito de tecido.
Aparecem
documentadas as formas «tauca» e «touca», indistintamente, em testamentos e doações
medievais escritos em latim, mas apenas «touca» em textos medievais em
galego-português em prosa, como, por exemplo, a Crónica Troiana. Nas Cantigas
de Santa Maria, de Afonso X, regista-se a presença de «touca» enquanto
referência a uma prenda oferecida à Virgem Maria por parte de uma devota e como
vestimenta de uma mulher com amores adúlteros, representando, portanto, em
ambos os casos, a condição de mulher casada.
Relacionada
com «touca», encontra-se também na época medieval a forma composta «touquinegra”
(< touca + negra), uma designação feminina pouco usada, que foi colher a sua
designação à forma de vestir das mulheres que envergam hábitos nos conventos.
Por exemplo, o trovador Afonso Eanes do Coton insere-as numa das suas cantigas
de escárnio enquanto sinónimo de «monja» e «freira». Aludindo à sua amada,
escreve o trovador o seguinte:
E a dona que m’assi faz andar
casad’é, ou viuv’ou solteira,
ou touquinegra, ou monja ou freira…
A mesma imagem metonímica é empregada por Berceo em vários
dos seus textos, quando alude a uma monja que vivia num santuário com uma “touca
negrada”.
No caso
dos cancioneiros galego-portugueses, a presença do termo «touca» é escassa,
sendo usada somente por cinco trovadores, a saber, Pero de Sevilha, Pero Garcia
Burgalês, Gonçalo Anes do Vinhal, Pero Gonçalves de Portocarreiro e João Garcia
de Guilhade.
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