Português: Análise da cantiga "Amigas, eu oí dizer", de Gonçalo Anes do Vinhal

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Amigas, eu oí dizer", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga, da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal, é constituída por duas sextilhas, formadas por uma quadra seguida de refrão em forma de dístico, antecedidas por uma rubrica. Esta composição poética, bem como outra do mesmo trovador, têm a aparência de duas cantigas de amigo vulgares (a figura feminina comenta os seus amores com as amigas), porém vêm acompanhadas de rubricas que as contextualizam: foram feitas “a Dom Anrique em nome da rainha Dona Joana, sa madrasta, porque diziam que era seu entendedor”. Quer isto dizer que estamos perante cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X, Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado, D. Henrique, irmão do rei. Apesar de a acusação poder ser mais fictícia do que real, ambos os poemas se referem a factos históricos concretos ocorridos no âmbito do conflito que estalou entre os dois irmãos. De facto, ambos entraram em litígio pouco tempo depois da conquista de Sevilha, ainda no tempo de Fernando III, o qual se prolongou durante vários anos. A cantiga remete para um dos episódios finais da disputa, o recontro que opôs as tropas reais e as de D. Henrique (senhor de Morón), perto de Lebrija, no qual este último foi derrotado, derrota que essa que o levou ao exílio, mencionado na outra cantiga referida. Estes factos tiveram lugar em 1259. Deste modo, não restam dúvidas de que estamos na presença de duas autênticas cantigas de escárnio, debaixo da aparência de cantigas der amigo.
    O Infante D. Henrique, irmão de Afonso X, nasceu por volta de 1230 e cedo se distinguiu no campo militar, por meio do papel que desempenhou no cerco de Sevilha e na conquista de Andaluzia. Após a morte de Fernando III, o conflito já latente entre os dois irmãos, motivado pelas grandes doações feitas pelo pai a D. Henrique, bem como à rainha Joana, estala abertamente. Em 1255, apoiado por Jaime I de Aragão, D. Henrique enfrenta militarmente Afonso X, mas foi derrotado pelo exército comandado por D. Nuno Gonçalves de Lara. Na sequência da derrota, buscou refúgio em Aragão, contudo não obteve o apoiado esperado por parte de Jaime I. Mais tarde, esteve ao serviço do sultão Al-Mustansir, em Tunes, entre 1259 e 1266, e, posteriormente, período em que se instalou em Roma, onde foi nomeado senador (governador da cidade). Feito prisioneiro de Carlos de Anjou na batalha de Tagliacozzo, em 1268, permaneceu em cativeiro até 1294, apesar de várias tentativas de Afonso X para obter a sua libertação. Nesse ano, regressou à Península Ibérica, tendo sido acolhido pelo herdeiro do trono, seu sobrinho, Sancho IV. A morte prematura deste soberano em 1295 tornou-o um dos homens mais influentes da época. Deste modo, assumiu o governo do reino a par de Maria de Molina, mãe do herdeiro presuntivo da coroa, o jovem infante Fernando. Nomeado seu tutor nas Cortes de Valladolid, defendeu os seus direitos face às pretensões dos Infantes de la Cerda, igualmente netos de Afonso X. A sua atuação até 1301 permitiu ao jovem infante subir ao trono como Fernando IV nesse mesmo ano, ficando pelo meio a assinatura do Tratado de Alcanizes com D. Dinis, tratado esse que contribuiu para aliviar a pressão na fronteira ocidental e a fixação das fronteiras entre ambos os reinos. Até à sua morte, ocorrida em 1303, D. Henrique continuou envolvido na complexa trama política castelhana que ocorreu ainda em consequência da crise sucessória anterior.
    Joana de Poitiers foi a segunda mulher de Fernando III de Castela. Nascida Joana de Danmartin, cerca de 1220, era filha de Simon de Danmartin e de Maria de Ponthieu e de Montreuil e bisneto, por via materna, de Luís VII de França. O seu matrimónio com Fernando III gerou cinco filhos. Após a morte do marido, em 1252, permaneceu mais alguns anos em Castela, mas a deterioração das suas relações com Afonso X, seu enteado, potenciadas pelo apoio que deu ao partido do Infante D. Henrique, na época em rutura com o irmão, levaram-na a regressar definitivamente a França, cerca de 1259. Aí, casou-se, em segundas núpcias, pol volta de 1260 ou 1261, com Jean de Nesle, senhor de Falvy et de La Hérelle. Faleceu em 1279, na cidade de Abbeville.
    Rodrigo Afonso era o filho bastardo de Afonso IX de Leão e meio irmão de Fernando III, ou seja, tio de Afonso X. Mouron refere-se a Moron de la Frontera, um município localizado a sudoeste de Sevilha, na província de Andaluzia. A praça pertencia a D. Henrique, como a cantiga deixa bem explícito, parecendo existir na rubrica uma imprecisão, já que o recontro terá tido lugar, não em Morón, mas nas proximidades de Lebrija.
    A rubrica é, portanto, clara: a cantiga é feita por Gonçalo Anes do Vinhal a Dom Henrique em nome da rainha D. Joana, sua madrasta, porque diziam que era seu “entendedor”, isto é, seu amante, quando combateu em Moron com D. Rodrigo Afonso, que comandava o exército real.
    O primeiro verso abre com uma apóstrofe do sujeito poético às amigas, algo característico da cantiga de amor. Essa apóstrofe serve para lhes confidenciar que ouviu dizer que os de “Mouron” combateram com o exército do rei. Ouvir dizer, porque não tem a certeza se é verdade: “e nom poss’end’a verdade saber”.
    Os dois pontos com que encerra o verso 4 anunciam o refrão, no qual o «eu» poético se mostra preocupado com a sorte do seu amigo, cuja sorte desconhece (“se é viv’o meu amigo”), o mesmo a quem fez a oferta de uma touca, uma prenda que era dada muitas vezes pelos apaixonados. No entanto, Carolina Micäelis defende que, neste verso, se trata de uma touca de viúva, o seu atavio tradicional.
    Na segunda e última estrofe, o sujeito poético põe a hipótese de dar a sua cinta a quem lhe desse notícias do seu amigo e declara apenas não o fazer por tal lhe causar mal e ser tido por gabarola ou fingido. Recorde-se que, na primeira estrofe, se referira outra prenda, a touca, que tinha um grande valor para a mulher, pois fora um presente dado ao amigo, ou, na leitura de Carolina Michäelis, o símbolo da sua viuvez. Na primeira hipótese, a touca constitui, portanto, uma prenda de amor que ele levou consigo, dada por ela, como emblema do seu amor. Assim sendo, a peça de vestuário tanto pode simbolizar a relação amorosa de ambos, como, de acordo com outra interpretação, representar uma referência à condição de viúva de Joana de Poitiers.
    Em suma, a touca é uma peça de indumentária feminina, característica da Península Ibérica e presente sobretudo na cantiga de amigo. Possui uma função simbólica associada a outras “dõas” que os enamorados trocavam entre si como indício do seu compromisso amoroso. Há, porém, críticos que lhe atribuem um valor relacionado com o estado civil da mulher, casada ou viúva. Além disso, a touca surge associada a outros elementos femininos.
    Etimologicamente, a palavra não parece derivar do latim e é próprio da Península Ibérica (galego-português, castelhano e basco). Devendo ter-se estendido ao resto da Europa na época medieval. Corominas y Pascual defendem que a sua possível origem radica na forma persa «tak», isto é, «véu», «lenço», «xaile», enquanto Ramón Lorenzo remete a origem etimológica o termo «tauca», que remontaria a uma língua pré-romana, embora não determine qual. Contrariando a afirmação inicial, autores recentes remetem para o latim vulgar «toca», derivado de «toccus», que significava uma cobertura ou peça de vestuário para a cabeça, e associam a sua origem ao gótico «tukko», que remetia para um tipo de pano ou cobertura. Com o tempo, a palavra foi assimilada por outras línguas europeias, conservando o sentido de um acessório para cobrir a cabeça, geralmente feito de tecido.
    Aparecem documentadas as formas «tauca» e «touca», indistintamente, em testamentos e doações medievais escritos em latim, mas apenas «touca» em textos medievais em galego-português em prosa, como, por exemplo, a Crónica Troiana. Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, regista-se a presença de «touca» enquanto referência a uma prenda oferecida à Virgem Maria por parte de uma devota e como vestimenta de uma mulher com amores adúlteros, representando, portanto, em ambos os casos, a condição de mulher casada.
    Relacionada com «touca», encontra-se também na época medieval a forma composta «touquinegra” (< touca + negra), uma designação feminina pouco usada, que foi colher a sua designação à forma de vestir das mulheres que envergam hábitos nos conventos. Por exemplo, o trovador Afonso Eanes do Coton insere-as numa das suas cantigas de escárnio enquanto sinónimo de «monja» e «freira». Aludindo à sua amada, escreve o trovador o seguinte:

E a dona que m’assi faz andar
casad’é, ou viuv’ou solteira,
ou touquinegra, ou monja ou freira…

A mesma imagem metonímica é empregada por Berceo em vários dos seus textos, quando alude a uma monja que vivia num santuário com uma “touca negrada”.
    No caso dos cancioneiros galego-portugueses, a presença do termo «touca» é escassa, sendo usada somente por cinco trovadores, a saber, Pero de Sevilha, Pero Garcia Burgalês, Gonçalo Anes do Vinhal, Pero Gonçalves de Portocarreiro e João Garcia de Guilhade.

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