Português: Análise da cantiga "As mias jornadas vedes quaes som", de Afonso Anes do Cotom

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "As mias jornadas vedes quaes som", de Afonso Anes do Cotom

    Afonso Anes do Cotom é um trovador provavelmente de origem galega, integrante do círculo do Infante Afonso, futuro Afonso X, autor de 19 poesias trovadorescas, além de três de autoria duvidosa, dentre as quais “As mias jornadas vedes quaes som”, uma composição incompleta que se situa a meio caminho entre a cantiga de amor mais ou menos jocosa e a sátira às regras do amor cortês, nomeadamente a do segredo sobre a identidade da mulher amada. O poema, o que chegou até nós pelo menos, contém rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático abbacca, e versos decassílabos (As | mi | as | jor | na | das | ve | des | quaes | som |) e eneassílabos (meus | a | mi | gos | me | te | d’i | fe | meu |).
    Através de uma apóstrofe dirigida aos amigos (“meus amigos”), o sujeito poético convida-os a tomar conhecimento das etapas da sua viagem, que apresenta uma estrutura circular, visto que começa e termina em Castro, provavelmente Castronuño, uma povoação a sul de Valladolid, embora também se possa referir a uma pequena localidade chamada Castro de Fuentidueña, a sul de Burgos, na província de Segóvia, ou Castro Urdiales. A viagem do sujeito poético incluiu passagens por Burgos (capital da província do mesmo nome, em Castela-Leão, e uma das mais importantes paragens do Caminho de Santiago), Palença (cidade e província de Castela-Leão, a norte de Valladolid) e Carrion (Carrión de los Condes, município da província de Palencia, no Caminho de Santiago). A enumeração de lugares sugere que se tratou de um percurso árduo e contínuo que implicou esforço físico e, quiçá, emocional. Metaforicamente, esta viagem pode representar a jornada que é a vida e os desafios que esta implica. Como consequência dessa viagem, o sujeito poético tem uma aparência de felicidade, tal não passa exatamente disso – aparência –, pois, na realidade, sente-se muito triste. Ou seja, há aqui uma dualidade entre a aparência externa e o sentir autêntico interior, o que denuncia talvez a necessidade de manter uma imagem pública distinta do sentimento real.A segunda estrofe esclarece a razão do sofrimento do trovador: uma «dona”, uma mulher. O uso do nome «dona» remete-nos para a linguagem da cantiga de amor, bem como para um dos traços centrais do código de amor: a não identificação da mulher amada, desde logo porque era casada. A forma verbal «andar» sugere não tanto movimento físico, mas o estado emocional do «eu». De seguida, enumera as possíveis condições sociais da mulher: casada, viúva ou solteira ou monja (os três nomes enumerados referem-se à mesma figura, a da freira; o nome «touquinegra» designa uma freira que veste uma touca negra, uma designação bastante comum na Idade Média). Ironicamente, o trovador satiriza, com essas enumerações, as regras do amor cortês, nomeadamente a referente ao segundo sobre a identidade da mulher amada. Qualquer mulher poderia ser aquela que o trovador elogiava nas suas cantigas, independentemente do seu estado civil, um esquema que se repetia nas várias composições poéticas, com diferentes figuras femininas. Ou seja, o poeta compunha sucessivas cantigas em que exaltava a(s) mulher(es) e manifestava a «sua» coita por não ser correspondido amorosamente por ela(s), num esquema repetitivo. Note-se que até as mulheres que deveriam ser intocáveis ou inacessíveis, como as religiosas, pode ser objeto de desejo ou de sofrimento.
    O verso 11 parece constituir um alerta irónico do «eu» dirigido aos amigos, no sentido de se guardarem, de se precaverem. A influência e o sofrimento causado pela dona são tão intensos que mesmo aqueles que creem estar seguros devem estar atentos e precavidos. E usa como exemplo a sua própria situação: “e ar se guarde quem s’há por guardar, / ca mia fazenda vos dig’eu sem falha” (vv. 11-12). A concluir a estrofe, o sujeito poético suplica a Deus que o ajude e lhe valha, mas que não o faça relativamente a “quem mi mal buscar”, perífrase que refere a mulher que o faz / faça sofrer. Ora, o verso 14 desobedece às regras do amor cortês, ao código da “fin’amors”, segundo o qual o trovador deveria respeitar e servir sempre a «senhor», sem a desrespeitar ou causar mal.
    O primeiro verso da terceira estrofe, o último completo que chegou até nós, anuncia que o trovador nada mais irá revelar sobre a mulher que lhe causa dor e sofrimento, sendo que, na realidade, nada destapou sobre ela.

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