Afonso
Anes do Cotom é um trovador provavelmente de origem galega, integrante do
círculo do Infante Afonso, futuro Afonso X, autor de 19 poesias trovadorescas,
além de três de autoria duvidosa, dentre as quais “As mias jornadas vedes quaes
som”, uma composição incompleta que se situa a meio caminho entre a cantiga de
amor mais ou menos jocosa e a sátira às regras do amor cortês, nomeadamente a
do segredo sobre a identidade da mulher amada. O poema, o que chegou até nós
pelo menos, contém rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático abbacca,
e versos decassílabos (As | mi | as | jor | na | das | ve | des | quaes | som
|) e eneassílabos (meus | a | mi | gos | me | te | d’i | fe | meu |).
Através
de uma apóstrofe dirigida aos amigos (“meus amigos”), o sujeito poético
convida-os a tomar conhecimento das etapas da sua viagem, que apresenta uma
estrutura circular, visto que começa e termina em Castro, provavelmente
Castronuño, uma povoação a sul de Valladolid, embora também se possa referir a
uma pequena localidade chamada Castro de Fuentidueña, a sul de Burgos, na
província de Segóvia, ou Castro Urdiales. A viagem do sujeito poético incluiu
passagens por Burgos (capital da província do mesmo nome, em Castela-Leão, e
uma das mais importantes paragens do Caminho de Santiago), Palença (cidade e
província de Castela-Leão, a norte de Valladolid) e Carrion (Carrión de los
Condes, município da província de Palencia, no Caminho de Santiago). A
enumeração de lugares sugere que se tratou de um percurso árduo e contínuo que
implicou esforço físico e, quiçá, emocional. Metaforicamente, esta viagem pode
representar a jornada que é a vida e os desafios que esta implica. Como
consequência dessa viagem, o sujeito poético tem uma aparência de felicidade,
tal não passa exatamente disso – aparência –, pois, na realidade, sente-se
muito triste. Ou seja, há aqui uma dualidade entre a aparência externa e o
sentir autêntico interior, o que denuncia talvez a necessidade de manter uma
imagem pública distinta do sentimento real.A
segunda estrofe esclarece a razão do sofrimento do trovador: uma «dona”, uma
mulher. O uso do nome «dona» remete-nos para a linguagem da cantiga de amor,
bem como para um dos traços centrais do código de amor: a não identificação da
mulher amada, desde logo porque era casada. A forma verbal «andar» sugere não
tanto movimento físico, mas o estado emocional do «eu». De seguida, enumera as
possíveis condições sociais da mulher: casada, viúva ou solteira ou monja (os
três nomes enumerados referem-se à mesma figura, a da freira; o nome
«touquinegra» designa uma freira que veste uma touca negra, uma designação
bastante comum na Idade Média). Ironicamente, o trovador satiriza, com essas
enumerações, as regras do amor cortês, nomeadamente a referente ao segundo
sobre a identidade da mulher amada. Qualquer mulher poderia ser aquela que o
trovador elogiava nas suas cantigas, independentemente do seu estado civil, um
esquema que se repetia nas várias composições poéticas, com diferentes figuras
femininas. Ou seja, o poeta compunha sucessivas cantigas em que exaltava a(s)
mulher(es) e manifestava a «sua» coita por não ser correspondido amorosamente
por ela(s), num esquema repetitivo. Note-se que até as mulheres que deveriam
ser intocáveis ou inacessíveis, como as religiosas, pode ser objeto de desejo
ou de sofrimento.
O verso
11 parece constituir um alerta irónico do «eu» dirigido aos amigos, no sentido
de se guardarem, de se precaverem. A influência e o sofrimento causado pela
dona são tão intensos que mesmo aqueles que creem estar seguros devem estar
atentos e precavidos. E usa como exemplo a sua própria situação: “e ar se
guarde quem s’há por guardar, / ca mia fazenda vos dig’eu sem falha” (vv.
11-12). A concluir a estrofe, o sujeito poético suplica a Deus que o ajude e
lhe valha, mas que não o faça relativamente a “quem mi mal buscar”, perífrase
que refere a mulher que o faz / faça sofrer. Ora, o verso 14 desobedece às
regras do amor cortês, ao código da “fin’amors”, segundo o qual o trovador
deveria respeitar e servir sempre a «senhor», sem a desrespeitar ou causar mal.
O
primeiro verso da terceira estrofe, o último completo que chegou até nós,
anuncia que o trovador nada mais irá revelar sobre a mulher que lhe causa dor e
sofrimento, sendo que, na realidade, nada destapou sobre ela.
Sem comentários :
Enviar um comentário