O triunfo do liberalismo foi acompanhado
por mutações decisivas no panorama cultural português: novas ideias, novos
gostos, novos nomes. A mudança foi intensa e rápida nas cidades; as serras
continuaram analfabetas, mas agitadas agora pelo caciquismo, pela estrada e
pelo comboio, pelo regresso de algum emigrante bem-sucedido que restaura a
igreja e constrói um chalé.
Os árcades pré-românticos – Cruz e
Silva, Filinto Elísio, Nicolau Tolentino, Tomás Gonzaga, Bocage – morreram
todos antes de 1820. Morreram a tempo, porque os seus versos refinados, pretensiosos
e difíceis não teriam sido apreciados depois da revolução como o foram antes
dela. Era uma literatura de elites a que não falta valor: observação humorista
dos ridículos de uma burguesia que despontava, confissão dos primeiros anelos
românticos velados ainda pelo pudor da linguagem muito elaborada, carregada de
termos e de alusões mitológicas que só os iniciados podiam perceber. Mesmo
Bocage, o que de todos eles mais viveu a rua, usava expressões como “Zéfiros abafado, plácidas camenas, margens do
Letes”,
para dizer coisas simples como “vento,
poesia, morte”. Era, portanto, uma geração que não exprimia o ideal
nascente, embora pessoalmente os homens que a compunham fossem liberais e
tivessem dedicado copiosos poemas aos anseios de liberdade.
Os grandes vultos eram agora outros.
Acima de todos, Garrett e Herculano, que são os nomes que hoje recordamos: mas
ao lado deles havia uma falange muito numerosa de escritores que deixaram
extensa produção. Tinham assentado praça no exército liberal, bateram-se, foram
vencidos, emigraram, voltaram a bater-se, saíram vencedores. Durante a
emigração tinham absorvido as formas e os conceitos básicos de processos
culturais muito mais avançados do que o nosso. Quando Garrett e Herculano, que
seriam em Portugal os corifeus da primeira geração romântica, estiveram em
Inglaterra, já tinham morrido todos os grandes poetas da segunda geração romântica
inglesa. Mas eles aprenderam-lhes a lição e trouxeram para Portugal, nas mochilas
de soldados, os ingredientes do Romantismo.
O Romantismo é a expressão literária
e plástica da consciência burguesa. Acredita no progresso, porque o progresso
foi a mola económica da burguesia; entoa o canto da liberdade, porque para o
burguês parece evidente que a liberdade não é senão o exercício do poder por
ele próprio; exalta o sentimento contra a barreira das convenções, porque o
sentimento é ele e as convenções são as sobrevivências das barreiras sociais
que ainda se opõem à sua caminhada triunfal; inventa a alma do povo, ou o espírito
nacional, porque se considera o legítimo representante desses mitos; reinventa
a história porque a história lhe permite reconstituir um pergaminho colectivo e
apresentar-se como sendo ele o verdadeiro nobre, o representante das gerações
que, durante séculos, desbravaram o caminho da liberdade.
O piano e também o pechisbeque são
pontos de passagem da sociedade velha para a sociedade nova; o primeiro foi,
além disso, um importante instrumento de cultura por meio do qual se difundiu
nas famílias burguesas o gosto aristocrático da música que, no século anterior
se cultivava só nas capelas e nos palácios. Em 1848, um jovem pianista, que
tinha aprendido música numa capela, associou-se a um capitalista e fundou em
Lisboa a casa Sasseti, cujo negócio era a música. O piano era um instrumento
caríssimo que não se fabricava em Portugal. Entre 1848 e 1899, ano em que
morreu, Sasseti importou muitos milhares de pianos; a sua empresa foi uma das
poucas que sobreviveram a tudo e chegaram até hoje. Ao princípio, o piano só
entrou nas casas dos barões, mas não tardou muito a transformar-se numa espécie
de sinal distintivo da classe média e a sua difusão é um bom indício da rapidez
com que essa classe média se desenvolveu a partir do meado do século. O pechisbeque
é outra dimensão, muito típica da cultura material dos burgueses. A palavra vem
de um operário inglês, Pinchbeck, que descobriu a forma de, misturando cobre e
zinco, obter uma liga que tinha uma cor parecida com a do ouro. A função do
pechisbeque foi exactamente essa: parecer o que não era, permitir à mediania
imitar a opulência. Teve uma carreira fulgurante: dos botões das librés e das
lanternas das caleches passou ao interior da casa, enchendo-a de ferragens
brilhantes, molduras, “appliques”, e acabou em pulseiras cravejadas de pedras
falsas. Além do pechisbeque metal, houve muitos outros: as paredes de mármore
fingido, a escultura de gesso, a seda de papel que forrava as salas, os tapetes
persas fingidos. A casa do burguês recordava as antigas casas dos nobres. Para
o fim do século, os grandes burgueses sentiram mesmo necessidade de se
distinguir dos pequenos e começaram a desencantar pelos sótãos da província e
nos pardieiros que tinham comprado quando da venda dos bens da Igreja velhos
arcazes e armários que falavam de um passado ilustre e mesmo telas com retratos
desconhecidos, que adoptavam como antepassados. E eram-no, se não deles, pelo
menos da sociedade que eles iam reconstituindo.
O fim das guerras civis e a
inauguração de um período em que, não obstante os sobressaltos verificados, o
regime liberal se estabiliza e uma nova sociedade encontra os seus mecanismos
de equilíbrio, marca o aparecimento de padrões de vida do tipo romântico que se
convertem no gosto dominante. Três grandes símbolos, funcionando embora em
diferentes níveis, todos eles complementares, contribuíram poderosamente para
esta nova realidade cultural: o Teatro D. Maria II, o Passeio Público e o
Palácio da Pena.
Ponto programático de um vasto plano
de reformas visando criar um teatro nacional, que teve em Garrett o principal
impulsionador, a construção da casa de espectáculos do Rossio foi iniciada em
1842, segundo o projecto do italiano F. Lodi, e inaugurada quatro anos depois.
Mas a sociedade que agora passa a
frequentar o teatro declamado encontrou perto dele um novo hábito elegante
acorrendo ao Passeio Público, jardim que, embora remodelado com gradeamentos,
lagos e repuxos, permanecera um local deserto até que D. Fernando de
Saxe-Coburgo lhe conferisse uma actualidade romântica. Com o exemplo do rei
consorte, artista amador e coleccionador esclarecido, muito se modificou no
sentido das vivências quotidianas. E foi a este príncipe germânico, vindo de um
pequeno ducado da Turíngia, que coube uma das mais fecundas intervenções na
arte portuguesa, não apenas pelos artistas que apoiou, como sobretudo pelo
palácio que ergueu no grandioso cenário de Sintra, já celebrado por Byron.
A fundação de duas academias, uma em
Lisboa e a outra no Porto, foi uma das aspirações finalmente concretizadas pelo
liberalismo, em 1836, devidas a Passos Manuel e ao Setembrismo, depois de
vários anos de arrastado processo. Dificuldades de toda a ordem faziam prever
uma vida difícil a estas instituições, comprometendo as esperanças de uma
renovação profunda da arte em Portugal. Dentre as imposições estatutárias,
figurava a da realização de exposições trienais, o que fomentava um outro tipo
de integração das obras no espaço cultural do país e estimulava o exercício regular
da actividade crítica, difundida por uma imprensa em crescimento.
Carlos
Moura, “A Arte em Portugal”, in História de Portugal