Português: "Se depois de eu morrer"

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Se depois de eu morrer"

               Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
               Não há nada mais simples
               Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
               Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

               Sou fácil de definir.
               Vi como um danado.
               Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
               Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
               Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
               Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
               Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
               Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

               Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
               Fechei os olhos e dormi.
               Além disso, fui o único porta da Natureza.

     Este poema pertence ao conjunto denominado Poemas Inconjuntos (o nome traduz o caráter desgarrado e sem fio condutor das composições que constituem a obra) e viu a luz do dia em 8 de novembro de 1915.

     O sujeito poético começa por se referir à sua biografia, afirmando que a sua vida possui somente duas datas: a do nascimento e a da morte. Todos os restantes dias são meus. Quer isto significar que apenas aquelas datas pertencem ao exterior, ao mundo que o rodeia: a do nascimento porque não o podia evitar; a da morte porque também esta constituirá uma data alheia que ele não pode controlar, à semelhança do nascimento. As restantes datas, os restantes dias pertencem-lhe por exclusivo e não fazem parte de qualquer biografia tradicional, pois a sua existência nada teve de comum, em nada se pareceu com a de um homem com uma vida normal.

     Na segunda estrofe, declara-se «fácil de definir». E concretiza a ideia proclamando que viu «como um danado» (comparação), assumindo-se mais uma vez como o poeta do olhar, das sensações visuais, que predominam sobre todas as outras («Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.» - verso 9), um observador da realidade, em suma. Além disso, não amou com sentimento, nem se deixou contaminar por grandes ambições ou sonhos grandiosos. Por outro lado, compreendeu a realidade das coisas e a diferença que existe entre elas, numa enorme diversidade, sem ligação entre si, ou seja, sem lhes atribuir um significado. Ou seja, o sujeito poético compreende com os olhos (com os sentidos), não com o pensamento. Isto impediu que ele tivesse uma vida semelhante à dos restantes, pois ele limitou-se a contemplar a realidade exterior, sem lhe atribuir outro significado que não o que lhe chegava através dos olhos.

     A estrofe final

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