O assunto do soneto é simples: o sujeito poético,
certo dia, viu a mulher amada a chorar, por isso ele mesmo subitamente começou também
a verter lágrimas. Logo após esta descrição, que ocupa as duas quadras, no
primeiro terceto, interpreta o pranto da mulher como uma manifestação de
benevolência para com ele próprio, todavia não tem a coragem de acreditar
nisso, visto que, se se provasse ser verdade, correria o risco de enlouquecer.
No segundo terceto, o poeta, dissociando-se do sujeito lírico, chama a atenção
do leitor (“Olhai”) para o poder sobrenatural de Amor, dado que é capaz de
gerar lágrimas a partir de lágrimas. No primeiro caso, o choro é apenas sinal
de compaixão, enquanto, no segundo, é sinónimo de uma felicidade tanto imortal
quanto ilusória.
No primeiro
verso, o sujeito poético afirma que o Amor desenha e imprime na alma a imagem
do rosto humano, algo que remete para uma teoria de Aristóteles que foi
desenvolvida por Marsilio Ficino, segundo a qual a memória guarda a imagem que
viu uma vez, sendo capaz, a partir daí, de a evocar. Ora, este incipit
constitui uma variação do soneto V de Garcilaso de la Veja, cuja primeira
quadra reza o seguinte:
Escrito ‘stá en mi alma vuestro
gesto,
y cuanto yo escribir de vos
deseo:
vos sola lo escribistes; yo lo
leo,
tan solo, que aun de vos me
guardo en esto.
Estes versos sugerem que o «eu» poético contempla a imagem
da sua amada na solidão, porém, apesar de o ser amado estar ausente, aquele
está perturbado, como se a mulher estivesse diante de si.
O verso
inicial do soneto de Camões é retomado e enriquecido, nos seguintes, por uma
sequência metafórica de cariz petrarquista: as “vivas faíscas” são os olhos da
mulher amada, o “puro cristal [que] se derretia” representa as lágrimas, as “vivas
rosas” e a “alva neve” aludem às cores da sua face (às maçãs do rosto e ao tom
da pele). Este conjunto de metáforas de sabor petrarquista mostram uma mulher a
chorar. As rosas e a neve (noutros poemas e com outros autores, encontramos
lírios, flores brancas, leite) representam as cores das faces, enquanto o
cristal assinala, inicialmente, a brancura da tez e, posteriormente, depois do
processo de liquidificação, passa a designar, metaforicamente, a água das lágrimas
derramadas pelos olhos, numa espécie de transformação alquímica. Ou seja, o
cristal situa-se acima dos olhos, que são o fogo, que, por meio da arte da
destilação, o destila e faz cair nos vidros (os olhos), nas rosas e nos lírios
das faces.
Começa
a revelar-se aqui o modo como este soneto indicia o enorme êxito que teve na
época a literatura dos emblemas, iniciada por Andrea Alciato, cuja obra Emblemata
foi publicada em 1534, em Paris. Pouco depois, obteve grande eco na Península
Ibérica e, no início do século XVII, as recolhas de emblemas na Europa atingem
o auge com Daniël Hensius e Othoni Vaenius. Um emblema é formado por uma imagem
visual, por cima da qual se lê uma divisa, normalmente uma frase curta, por
baixo da qual existe um pequeno texto explicativo. Inserindo-se dentro desta
corrente, este soneto camoniano pode ser analisado como uma glosa a colocar sob
um emblema virtual. No caso, tratar-se-ia muito provavelmente de um alambique,
uma figuração que o encontramos também no emblema n.º 95 de Vaenius, que
representa Cupido a chorar, ajoelhado perante um alambique em cima de uma
fogueira.
O verso
5, na esteira da doutrina neoplatónica, segundo a qual o amor se transforma no
ser amado, com ele se identificando, afirma que o sujeito poético não se atreve
a olhar-se a si próprio. Ora, seguindo a teoria platónica, tal significa que
contemplar a mulher amada é a mesma coisa que contemplar-se a si próprio, algo
que, além de ser psicologicamente
difícil, acarreta o risco de cegueira, porque, de acordo com o
petrarquismo, a mulher amada é identificada com o sol. A mulher, no esplendor
da sua beleza, refulge como um sol, daí que o «eu» não ouse olhá-la.
Apesar
de, normalmente, não se atrever a olhar a mulher amada, o sujeito lírico acaba
por o fazer “por se certificar do que ali via” (v. 6), ou seja, para se
certificar dos bons fundamentos da sua própria visão, mas, quando se apercebe
que ela está a chorar, os seus próprios olhos convertem-se em fonte de lágrimas,
sofrendo uma metamorfose que também encontramos em Petrarca. É exatamente o que
acontece a quem procura olhar o sol, uma comparação recorrente em Petrarca.
Assim, o «eu» poético começa a chorar de repente, o que lhe serve de desabafo,
visto que as lágrimas aliviam a dor, tornando-a mais suportável.
No
primeiro terceto, o sujeito poético interroga-se qual seria a causa do pranto
da mulher amada. O seu próprio sentimento de amador diz-lhe que as lágrimas
dela seriam um sinal da sua benevolência para com ele. Se aquele que ama
acreditar nessa explicação, arrisca-se a enlouquecer por excesso de felicidade
(é o “imortal contentamento” – v. 14). O “primeiro efeito” referido no verso 11
são as lágrimas da mulher, que precedem as do amador.
O
segundo terceto corresponde à conclusão de um silogismo. Nas palavras de Faria
e Sousa, a figura feminina, ao chorar, por piedade amorosa e não por uma amor
desprovido do decoro da honestidade, derrama lágrimas de grande contentamento
para o amante, pois eram um favor vindo dela, proveniente de um amor honesto e
piedoso. Perante o processo de liquefação do cristal e, sobretudo, a origem
paradoxal da dupla corrente de lágrimas que é derramada, o autor dirige-se ao
leitor, apelando para a sua capacidade de se deslumbrar (através do imperativo “Olhai”:
vede, pois, que espetáculo). Atente-se num estratagema literário usado por
Camões: o poeta não é responsável por aquilo que escreve, mas é Amor que redige
em vez dele, ao mesmo tempo que grava na sua alma o rosto da amada. Este motivo
literário tem a sua origem em Ovídio (“[Amor] Ille Mihi primo dubitanti scribere
dixit: ‘Scribe [...]”); reaparece em Petrarca (“Più volte Amor m’avea già
detto: Scrivi, / scrivi quel che vedesti in lettre d’oro”), retomado por Boscán
(“Gran tiempo ha que amor me dice: escrive, / escrive lo que’n ti yo tengo ‘scrito
/ de letra que jamás será borrada” e nas Rime de Petro Bembo. Este estabelece
um diálogo com Amor em pessoa, que, no final do soneto, o manda escrever o que
encontrará gravado no seu próprio coração, bem como o que poderá ler nos olhos
da sua amada.
Este
conceito retomado por Petro Bembo foi definido filosoficamente por Platão, para
o qual o efeito produzido pelas sensações na nossa memória pode comparar-se com
a ação de alguém que escreve na nossa alma, onde existe uma placa de cera
pronta para receber as impressões produzidas por tudo aquilo que vimos, ouvimos
ou pensámos. A mesma noção é explanada por Aristóteles: quando os sentidos
percebem um objeto (por exemplo, uma rosa) o sentido comum agrupava todas as
sensações (cheiro, cor, etc.) numa sensação composta. A rosa deixa uma “impressão”
nos nossos sentidos, que Aristóteles comparava com um selo que se imprimia
sobre uma tábua de cera, deixando marcada a sua forma, mas não a sua matéria. A
imaginação recebe essa sensação composta, a partir da qual forma uma imagem ou
«fantasma». A imaginação (chamada “o olho da alma”) é capaz de reviver essa
imagem quando o objeto percebido está ausente. Esta faculdade não é somente
reprodutora, mas também criadora ou “pintora de imagens”, mesmo que possa
produzir intencionalmente imagens de coisas inexistentes ou que nunca
sucederam. Levado pelo desejo violento do objeto amado, o sujeito fica com a
sua forma gravada na fantasia, que permanece na memória, assim dela se
recordando continuamente. Destes dois fenómenos decorre um terceiro, visto que
do desejo violento e da recordação, à qual o pensamento continuamente regressa,
nasce o impulso passional.
Em suma,
dissociado do «eu» poético, o autor chama a atenção de leitor para o poder
sobrenatural de Amor (personificação), pois é capaz de gerar lágrimas a partir
de lágrimas. Umas são provenientes da mulher e constituirão uma manifestação da
sua compaixão (“de lágrimas de honesta piedade” – v. 13) e as outras tradutoras
de uma felicidade imortal (“lágrimas de imortal contentamento” – v. 14).
Este
soneto exemplifica uma atitude tipicamente maneirista: primeiro, é descrita uma
mulher a desfazer-se em lágrimas, de forma enigmática. Cada detalhe fisionómico
está associado a uma metáfora de sabor petrarquista. Depois, no final do
soneto, é o próprio autor que assinala, de forma complacente, a singularidade
do fenómeno descrito.
Note-se,
a finalizar, que este poeta é atribuído a Luís de Camões, no entanto subsistem
dúvidas acerca da sua autoria.
Bibliografia:
.
Rita Marnoto;
.
Maurizio Perugi.