Entre o narrador e matéria narrativa: notas de leitura de O cortiço
Antonio Marcos Vieira
Sanseverino1
Sem 2dúvida, esta é uma terceira
coisa em relação
à arte do passado e à arte actual, mas valia mais desejar que um
dia melhor a arte desapareça do que ela esquecer o sofrimento, que é a sua expressão
e na qual a forma tem a sua substância. Esse sofrimento é o conteúdo
humano, que a servidão falsifica em positividade.
Theodor Adorno
Resumo: Antonio Candido identifica em O
Cortiço, de Aluísio Azevedo, um descompasso entre a narração e a intriga. O narrador seria um homem branco, livre, brasileiro que olharia com desprezo para negros e portugueses.
Ao preconceito, alia-se
o ponto de vista aderente
à moda científica de fins do século
XIX. Neste artigo,
defendemos que a história do cortiço, em Botafogo, Rio de Janeiro,
apresenta tensões sociais que escapam ao modelo explicativo do narrador. A
partir daí, é feita a análise de três aspectos da obra. Em primeiro lugar, é
detalhada a leitura desse narrador. A seguir, é feita a análise do
protagonista, João Romão, que ascende socialmente através da exploração do
cortiço. Na terceira seção, é
destacada a transformação por que passam Jerônimo e Pombinha. Por fim, a linha
geral da leitura trabalha com a oposição dialética entre a exploração
capitalista de Romão e os moradores do cortiço, que se orientam por costumes e
valores pré-capitalistas.
Palavras-chave: O cortiço; Aluísio Azevedo; dinheiro;
avareza; cultura popular
Abstract: Antonio Candido identifies in O Cortiço, by Aluísio Azevedo, a gap
between narration and intrigue. The narrator would be a free, white, Brazilian
man who would look down on blacks and Portuguese people with contempt.
Prejudice is combined with the point of view adhering to the scientific fashion
of the end of the 19th century. In this paper, we analyze the social tensions
in the story of the tenement, in Botafogo, Rio de Janeiro,
that escape the narrator's explanatory model. Thereafter, three aspects
of the work are analyzed. First, the narrator's reading is detailed. Next, is
analyzed the protagonist, João Romão, who ascends socially through the
exploration of the tenement. In the third section, the transformation that
Jerônimo and Pombinha undergo is highlighted. Finally, the general line of
reading works with the dialectical opposition between the capitalist
exploitation of Romão and the tenants, who are guided by pre-capitalist customs
and values.
Keywords: O cortiço; Aluísio Azevedo; Money;
avaricious; popular culture.
1 A vida de homens
medíocres
A avaliação do Naturalismo continua
bastante controversa. Para Georg Lukács,
a adesão ao movimento implicava a representação “apenas de homens
medíocres, atribuindo-lhes
1 Antônio Marcos Vieira
Sanseverino é professor Associado de Literatura Brasileira no Programa
de Pós-graduação em Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vinculado ao Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas. Realizou doutorado na 1999 em Teoria da
Literatura (PUCRS). Bolsista de produtividade 2 do CNPq. Atualmente atua como
coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Desenvolve
uma pesquisa sobre a atualidade do realismo no Brasil. Atua como docente
nas linhas de pesquisa Literatura, Sociedade e História da Literatura e Estudos
Literários Aplicados, especificamente no campo de ensino da literatura. E-mail:
amvsanseverino@gmail.com
somente ideias, sentimentos e palavras da realidade cotidiana” (LUKÁCS, 2010, p. 170). Para Erich Auerbach, na sua melhor realização em Zola, o naturalismo foi capaz de dar protagonismo ao quarto estado. Aqueles
que antes eram invisíveis ou apenas representados enquanto caricatura cômica
ganham tratamento literário sério (1987). Para Lukács, representava a
degradação do realismo. Para Auerbach, o ponto de realização plena do impulso
realista. Independente da leitura de cada um deles, há um ponto em comum, a
entrada em cena do homem comum.
Jacques Rancière, por sua vez, redimensiona o realismo moderno, mostrando
como no século XIX, no momento mesmo de sua constituição, temos o
questionamento das estruturas tradicionais da narrativa. Ele é o momento
inaugural do regime estético da arte: “O regime estético das artes é aquele que propriamente
desobriga a arte no singular, e
desobriga essa arte de toda e
qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. (2006,
p. 33- 34). Rancière (2010;
2014) mostra como a realidade entra na ficção
para desmontá-la (na quebra
da unidade pela descrição) e no final rompe a lógica do enredo (como no final de O vermelho
e o negro, de
Sthendal). São interrupções e quebras que valem
enquanto elementos que resistem a serem particularidades
exemplares do todo. Na base do realismo, importa destacar a articulação entre
estética e política, na medida em que novos agentes se tornam visíveis na
literatura e permitem uma nova forma de ficcionalização da realidade, ou um conhecimento do mundo em que democraticamente novos agentes ganham
visibilidade:
É um recorte dos tempos e dos espaços, do
visível e do invisível, da palavra e do ruído, que define ao mesmo
tempo o lugar e o que está em jogo na política
como forma de experiência. A política
ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre
o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das
propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2006, p. 17, grifo meu)
Para Rancière, a partilha do sensível define, então, uma ordem dos que
tomam parte e daqueles que são excluídos da comunidade, estabelecendo o que é visível. São articulados três termos: um modo de fazer, a visibilidade desse
fazer e o modo de lhe atribuir
sentido. No regime ético, as imagens têm definido
aprioristicamente a sua origem e sua finalidade, articulada ao âmbito da religião ou da moralidade. No regime poético,
a arte torna-se um fazer separado dos outros, organizado segundo regras
precisas, daqueles que podem ser visíveis, do que é apropriado
dizer, da prioridade da ação para pensar o enredo. No regime estético, a partir
do século XIX, a hierarquia é desfeita.
Nesta ordem, o naturalismo no Brasil abriu espaço para os escritores
lidarem com a realidade social dos pobres, que ficavam invisíveis ou eram
matéria de comédia, como aponta Antonio Candido:
Outras vezes o
atraso nada tem de chocante, significando simples demora cultural. É o que
ocorre com o Naturalismo no romance, que chegou um pouco tarde e se prolongou até nossos dias sem quebra
essencial de continuidade, embora modificando
suas modalidades. O fato de sermos países que na maior parte ainda têm
problemas de ajustamento e luta com o meio, assim como problema ligados
à diversidade racial, prolongou a preocupação naturalista com fatores físicos
e biológicos. Em tais casos o
peso da realidade local produz uma
espécie de legitimação da influência retardada, que adquire sentido para o
criador. (2006, p. 181, grifo meu)
Para Antonio Candido,
a entrada e permanência do Naturalismo nos países
da América Latina se justificam pelo
enfrentamento de uma realidade local. Este texto, “Literatura e
Subdesenvolvimento”, surgiu primeiro na França, em 1970, depois em espanhol,
num projeto de estudo, a literatura na América Latina, em 1972, e, em português,
em 1979. O contexto de publicação é importante, pois ajuda a entender o valor
que o naturalismo ganha no Brasil e, mais especificamente, coloca em
perspectiva ampla os estudos realizados nestes anos. “Dialética da Malandragem”, também
de 1970, redefine
a leitura de Memórias
de um Sargento de Milícias, de
Manuel Antonio de Almeida. A entrada em cena dos homens comuns
no Rio de Janeiro, na ficção de Almeida, implicou um ajuste na forma
do romance. A descontinuidade dos capítulos sobre os Leonardos, pai e filho,
ganha um princípio formal, regido
pela dialética entre ordem e
desordem, segundo Antonio Candido. Em “De cortiço a cortiço”, de 1973, esse
princípio da crítica dialética também é posto em prática. No caso, O cortiço, de Aluísio Azevedo, traz a
história de João Romão, uma trajetória de arrivismo que começa com a exploração
de uma venda, passa pela criação de um cortiço e alcança um grande
empreendimento comercial. Para Candido, o princípio de organização do romance vem
da matéria histórica, um processo de acumulação primitiva.
Se
pudermos marcar alguns aspectos desta interação talvez possamos esclarecer como, em país subdesenvolvido3, a elaboração
de
um mundo ficcional
coerente sofre
3 Antonio Candido mostra uma trajetória da consciência
sobre a própria realidade americana.
Primeiro, no século XIX, uma consciência amena do atraso, no
romantismo, ainda havia crença na pujança natural e, depois, no primeiro
regionalismo, há uma relação de aproximação ou de tensão entre natureza e civilização (dimensão do
estado e da pátria). Esse dilema percorre
a formação da elite brasileira. A consciência do atraso vem apenas depois
de maneira acentuada o
impacto dos textos feitos nos países centrais e, ao mesmo tempo, a solicitação imperiosa da realidade
natural e social imediata. (CANDIDO, 1998, p. 125, grifo meu)
A criação
de um mundo ficcional sofre um duplo influxo, o impacto da produção dos países centrais e, ao mesmo
tempo, a solicitação da realidade. Essa tensão é importante de se destacar através
de outra formulação, esta de Paulo Emílio Sales Gomes: “Não somos europeus nem americanos do Norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo
o é. A penosa construção de nós mesmos
se desenvolve na dialética entre o não ser e ser o outro” (2016, p.150). Mais adiante,
vamos observar esse dilema no narrador do romance. Por ora, cabe relacionar os dois comentários. A rarefeita dialética fez com que os autores
não apenas escrevessem para se
inserirem na cultura europeia. Poderíamos tomar como emblema a figura do
compositor Pestana, do conto “Um homem célebre”, de Machado de Assis. Ele
preferiria ser o centésimo
em Roma do que ser César na Província. De outra parte, essa imperiosa demanda da realidade social leva
a um desejo negativo, de não ser. Novamente, Pestana nos ajuda a perceber isso, a lua de mel com suas polcas durava um
dia, pois sentia que traía seus ídolos (Beethoven, Chopin, Bach...). Essa
tensão está no núcleo do problema que veremos a seguir, na composição do narrador, na ambivalência com que se relaciona com a matéria
local. Ainda a fim de pensar o desenvolvimento do cinema no Brasil, também
em 1973, Paulo Emílio
Sales Gomes faz uma síntese da realidade social brasileira a partir da
dicotomia entre ocupantes e ocupados, uma oposição entre os 30% de letrados
contra os 70% de analfabetos. O Cinema Novo faria parte, então, de uma cultura
de 30% de brasileiros:
Apesar de ter escapado tão
pouco ao seu círculo, a significação do Cinema Novo foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora, contínua
e coerente, da maioria do povo brasileiro disseminada nas reservas e quilombos,
e por outro lado ignorou a fronteira entre o ocupado dos 30% e 70%. Tomado
em conjunto, o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia,
gafieira e estádio
de futebol. (SALES GOMES, 2016, grifo meu)
O interesse não é fazer
um nexo entre o naturalismo de O Cortiço e
os filmes do Cinema
Novo, esforço muito além da proposta do presente artigo.
Importa destacar a visibilidade que é dada aos “ocupantes” no cinema. Deste modo, a crítica de Antonio Candido não se volta para
da Segunda Guerra
Mundial. A partir
dela, é possível retomar, no século XIX, as obras
em que as marcas do atraso
brasileiro já compõem a forma.
o estudo
formal do romance de Aluísio Azevedo, como exercício formal,
mas desentranha um problema atual, próprio dos anos de
1970, de Ditadura Civil-Militar, de modernização conservadora, de inchaço das
grandes cidades brasileiras. Especificamente, interessa pensar a posição e modo
como o intelectual olha para essas “classes perigosas” e, no caso do romance,
como esta posição está configurada no narrador.
Posição do
narrador em O cortiço: o narrador
como personagem
Aluísio Azevedo, no período final
do século XIX, um dos escritores mais representativo
do naturalismo no Brasil, escreveu
folhetins, contos, romances, o que precisasse produzir para sua
sobrevivência como escritor. As obras mais importantes, no entanto, são três: O mulato, 1881; Casa de Pensão, 1884
e O cortiço em 1890. Jean-Ives Mérian, na sua biografia, reproduz um trecho de entrevista em que Aluísio
Azevedo conta seu projeto de um romance cíclico, em cinco volumes, para narrar a história da família de
um comendador, desde a imigração para o Brasil. Antonio Candido mostra que o
projeto gorou e, ao se transformar em O
Cortiço concentrou tudo no bairro de Botafogo, no espaço que compreende o
cortiço e o sobrado.
O cortiço conta a história do
surgimento, desenvolvimento e morte de um cortiço no bairro do Botafogo no Rio
de Janeiro. Consta que o cortiço que inspirou a construção da obra foi o Cabeça de porco.
Pardal Millet, que faz uma crítica acerba
ao livro, conta que os primeiros
apontamentos “foram colhidos em minha companhia, ao fim do ano de 1884, numa
excursão para estudar costumes, na qual saímos disfarçados com a vestimenta popular” (2005, p. 86-87).
Ele veio a ser destruído pelo prefeito Barata Ribeiro, com o intuito de limpar
o Rio de Janeiro desse tipo de antro, esconderijo de vagabundos e prostitutas e
foco de doenças.
Assim, Aluísio buscava suas personagens a partir da observação de tipos
na rua. Não apenas fez uma visita, tentou morar em um cortiço. “Todavia, a
aventura quase terminou mal; ele nunca conseguiu
ser um morador como os outros por causa de sua curiosidade. Muito cedo começaram
a desconfiar que ele fosse um agente da polícia. Corajoso, mas não temerário,
Aluísio preferiu encurtar sua experiência” (MÉRIAN, 2013, p. 475). Não
se trata de analisar a intenção do autor, mas essa informação biográfica
contribui, desde já, para entender a
posição do narrador do romance. Vale lembrar que a primeira rebelião dos
moradores foi contra a polícia. Montada uma barricada no portão, improvisada,
eles lutavam para não deixar os “morcegos” entrarem. Os policiais eram arbitrários e violentos com os pobres.
Quando entraram, de
fato levaram destruição às casas. Assim, o intelectual se interessa pelos
pobres, vai pesquisá-los, mas seu olhar é externo.
O romance, publicado no início da República, ecoou as notícias e opiniões nos jornais,
preocupados com o problema dos cortiços. Além disso, antecipou, em quatro anos,
a destruição do Cabeça de Porco. De certo modo, há uma tendência
ambígua de contar a vida dos pobres e, ao mesmo tempo, criticá-los pelo
comportamento vulgar, pela violência nos conflitos, pela promiscuidade, como se
fossem realmente membros das classes perigosas. Ainda assim,
e aí está a força do romance, a matéria narrativa resiste às posições do narrador. Há mais, na
história narrada, do que supõe a vã ciência do narrador. De certo modo, o
esforço de incorporar a matéria brasileira se traduziu na forma, na medida em
que os conflitos sociais forçaram
sua entrada na ficção. Curiosamente, a dimensão mimética
se desloca da captação fiel de um tipo humano para a recuperação das
pequenas histórias que atravessam o romance e principalmente para a dissonância
entre o narrador (figurando os intelectuais da Nova Geração, adeptos da
ciência) e a vida dos moradores do cortiço. Mais do que o diálogo com a obra de
Zola, existe a adoção do ponto de vista europeu, como se fosse uma forma de
adoção da modernidade, um caminho para modernização do Brasil.
Voltando à intriga,
a abertura do romance apresenta
João Romão, que, aos vinte e cinco anos, ganha de seu antigo chefe o lugar de trabalho, “uma suja
e obscura taverna”, e um conto e quinhentos mil réis, depois
que este último
volta para Portugal. Amiga-se a Bertoleza, negra, que havia perdido seu homem e trabalhava como
quitandeira para pagar seu jornal de 20 mil réis. Romão forja a carta de
alforria de Bertoleza e, “com as economias da amiga”, compra o terreno contíguo
à venda. Aí, com o dinheiro da (ex-)escrava, começa a se formar o cortiço.
Eles, além da venda, vão montando a estalagem em que se alugavam casas e tinas
para lavadeiras. A venda já se transformara em um armarinho que vendia de tudo. Nesse aspecto, há que se ressaltar a ambição, o delírio,
a loucura, que tomavam conta do personagem. Queria enriquecer, e olhava tudo
com olhos cobiçosos. Enfim, é uma história de sucesso comercial, fundada na
ambição e na ausência de princípios morais, tornando lícito realizar qualquer
ato para conseguir dinheiro, roubar, enganar...
Miranda é um comerciante de tecido que passa a morar ao lado
de João Romão em um sobrado. Muda-se porque D. Estela, sua mulher odiada,
o traía com os caixeiros de sua loja. Os
dois têm uma filha, pálida
e de aspecto doentio, chamada
Zulmira. O contraste
entre Miranda e João
Romão é claro, e fica marcado pela disputa territorial. Os dois disputam
o espaço entre a casa e a
venda. Como era de posse de Romão, este realiza ali seu “ideal”, a estalagem, ele realmente começa
“a ganhar em grosso” depois que comprou
e passou a explorar a pedreira. O conceito dado por Miranda, cortiço (cabeça-de-porco), traz o
caráter depreciativo que mostra essas habitações de pobres, como problema, como
mal que lhe estraga a moradia, porque implicava misturar-se com gente que não era de sua classe. O nome estalagem, dado por Romão, mostra sua enganação, sua capacidade de forjar, de enganar, fazendo
parecer o cortiço a uma estalagem, pois seu único
interesse era pecuniário, o lucro que traria o projeto.
Um elemento destacado do sucesso de Romão é a transformação do ambiente.
Com o surgimento de uma fábrica de massas italianas, e a pedreira, temos
índices de uma urbanização
mais acelerada. É a este povo que Romão volta-se e de quem tira o dinheiro.
Outro ponto, aparentemente desviante, é o casamento de Miranda e Estela. Ele,
traído pela mulher, não se separa, pois depende
da herança dela para manter
seu negócio. Dormindo
em quartos separados, odiando-se, sem se falar ou se procurar, eles conseguiram atingir uma felicidade sexual, como um amor clandestino, baseado nas visitas
silenciosas do marido ao quarto dela. Foram dez anos assim, até que ele começa a diminuir
a frequência de suas visitas, e ela, necessitada de sexo, volta a procurar os
caixeiros da casa comercial.
Esse é o eixo principal da intriga, pois é Romão que atua para realizar
sua paixão pelo dinheiro e, depois, se transforma quando busca o reconhecimento
social da elite fluminense, reconhecimento facultado por seu enriquecimento. É
interessante, nesse resumo, o estabelecimento de um eixo principal, que trata
da acumulação e da ascensão de Romão. Ele deixa de lado outras histórias que
compõem o romance, que envolvem, de um lado, a vida íntima do sobrado: as
traições de Estela, as artimanhas do parasita (Botelho), as aventuras de
Henrique, estudante agregado. De outro, o cortiço.
As culturas com as quais
este livro se preocupa não são organizadas pelo mercado mas dominadas por ele, estamos diante da
possibilidade de adotar a mesma postura crítica delas. [...] As sociedades no limiar do desenvolvimento capitalista interpretam- no necessariamente com crenças e práticas não capitalistas.” (TAUSSIG,
2010, p. 32- 33, grifo meu)
Michael Taussig, nos anos de 1970, viveu na América
Latina, Colômbia e Bolívia, onde pesquisou a presença do diabo em
comunidade de trabalhadores. A partir de sua análise, a hipótese é de que as
comunidades, ainda não capitalistas, usavam o pacto do diabo para significar aqueles
que buscavam produzir
mais e enriquecer. Era uma riqueza estéril,
que gerava solidão e perda de humanidade. Para nós, tal hipótese
é pertinente, quanto à posição de Romão em relação à
estalagem. Evidentemente, o cortiço é propriedade de João Romão, que explora
seus moradores no aluguel e nas compras
em sua venda. Ainda assim,
há uma vida que organiza internamente traços comunitários.
São inúmeras situações em que os conflitos domésticos extrapolam o âmbito da
casa para se tornar não apenas tema de conversa, mas também uma questão a ser
resolvida por todos. Melhor seria dizermos “todas”, pois o centro da vida
comunitária gira tem torno das mulheres, das lavadeiras em especial, e os
homens vêm a reboque. A espera da menstruação de Pombinha, por exemplo, é
assunto compartilhado por todas as mulheres, sem que isso gere constrangimento à menina. As brigas de casal, como a de Bruno
e Leocádia, geram às vezes atuação das mulheres para proteger a esposa e evitar maiores agressões. E assim seguem
exemplos da rotina de trabalho e do dia de descanso, o domingo, dia de troca de
roupa, dia de festa, dia de música e dança.
Ao contrário de Romão ou de Miranda, outro português, Jerônimo, chega com
sua mulher, Piedade, para morar no cortiço e trabalhar na pedreira de Romão.
Forte e trabalhador, ele vai se transformar depois
que se apaixona por Rita Baiana, a mulata que “sintetiza” o Brasil.
Ele vai deixar o vinho do porto pela cachaça, o caldo pela feijoada... Ele se
transforma, se abrasileira. Ele ganha a disputa por Rita, depois de matar o
mulato, Firmo, a pauladas. Além dessa história, há outras que atravessam o
romance e têm lógica própria, diversa do princípio comercial de Romão.
Feita a apresentação sumária d’O
cortiço, cabe comentar a voz narrativa, que, onisciente, domina todo o
universo narrado, mostrando ao leitor todos os lugares ocupados pelos
personagens, cenas simultâneas e o passado de cada novo indivíduo posto dentro
da narrativa. O narrador, com autoridade e segurança, cria uma mediação geral:
a natureza, base comum que unifica a todas as personagens, na medida em que
todas estão submetidas aos mesmos impulsos naturais. Desse modo acontece uma
naturalização do processo social. Para citar alguns exemplos, Jerônimo, de raça
superior, atrai Rita Baiana; o ciclo de prostituição continua a se repetir:
Leonie, Pombinha, Senhorinha (filha de Jerônimo e Piedade). Aparentemente, estamos
perante um narrador
que não fala de si, que conta a história
de outros, incorporando o discurso científico da época para apresentar ao público leitor
aqueles habitantes dos
cortiços fluminenses.
Antonio Candido recupera
um dito humorístico da época para questionar a posição deste narrador: “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir e pau para trabalhar”
(1998, p. 128). Há aí “uma feroz equiparação do homem ao animal”, o homem
trabalhador. Trata-se de um ponto de vista bem definido,
“no qual a sua problemática de classe muito
particular está condensada – mas não explicada – a partir de um ponto de vista também particular além de abjeto.
(SCHWARZ, 1999, p. 35). Candido traz um elemento extraliterário para dentro do
romance, a fim de caracterizar a posição do narrador. A partir daí, acontece a
operação crítica que reconfigura o sentido da obra. A capacidade de
representação da obra literária se desloca
da crença naturalista (apresentação direta da realidade, “documentos vivos”) para a mediação.
A dimensão realista
não deixa de estar na matéria
narrada, quando apresenta a situação dos
cortiços fluminenses, a rivalidade de brasileiros com imigrantes portugueses, o
problema do trabalho, a situação de ex-escravos e por aí vai. A realidade brasileira é incorporada à obra,
mas há o ponto de vista de quem faz.
No que respeita à mimese, o ensaio procede
de maneira diferenciada, que em si mesma
objeta às oposições sumárias em voga. O sistema de prevenções embutidas
no enfoque narrativo será uma imitação
da realidade? Pareceria
adequado chamá-lo um decalque
inconsciente, a migração
de reflexos de classe dominante para o campo literário, onde atuam como princípio ordenador, desempenhando seu papel ideológico de apresentar
perspectivas particulares como verdades gerais. (SCHWARZ, 1999, p. 38, grifo do
autor)
Assim, o narrador, mesmo escondido na máscara da impessoalidade, numa
terceira pessoa, é apresentado na posição intelectual que adota o ponto de
vista da classe dominante. Nesse caso, a mimese funciona como “decalque
inconsciente”. O interesse da forma está na “dissonância reveladora” (SCHWARZ,
1999, p. 41). Edu Otsuka também investe nesse descompasso para mostrar que “a distorção ideológica não decorre
somente das oposições
entre raças e nacionalidades, mas se manifesta também no plano dos
procedimentos narrativos” (OTSUKA, 2009, p. 184). De modo interessante, essa linha crítica traz para leitura de
uma obra que se apresenta como naturalista os procedimentos de leitura de Theodor Adorno,
quando pensa o romance contemporâneo.
E exatamente nisso
Dostoiévski é avançado. Não é apenas porque o positivo e o tangível, incluindo
a facticidade da interioridade, foram
confiscados pela informação e
pela ciência que o romance foi forçado a romper com esses preceitos e a
entregar- se à representação da essência e de sua antítese distorcida, mas
também porque, quanto mais densa e
cerradamente se fecha a superfície do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um véu. Se o romance quiser permanecer fiel a sua herança
realista e dizer realmente como as coisas
são, então ele precisa renunciar
a um realismo que, na medida em que reproduz
a fachada, apenas auxilia na
produção do engodo. (ADORNO, 2003, p. 57, grifo meu)
Aluísio Azevedo não renuncia “a sua herança
realista”. Ao contrário, pretende construir um
documento, a partir de pesquisa empírica e de contribuições da ciência que
permitiram a construção do romance.
Curiosamente, o crítico,
ao deslocar para leitura de sua obra da mimese realista para um princípio do
romance moderno, traz à tona uma falha compositiva, um descompasso e uma
dissonância. O princípio da leitura da ruptura com pretensão de dizer as coisas
como elas realmente seriam.
Vale recuperar, ainda que rapidamente, a recepção na época. A Gazeta de Notícias, sábado, 15 de
fevereiro, de 1890, publica na íntegra o Código de posturas, em que a seção 7
trata de “Cortiços, estalagens e casinhas para operários e classes menos
favorecidas”. Trata-se de um código publicado no mesmo ano de lançamento do
romance, que previa uma série de restrições
para os cortiços e, mais,
a previsão de sua demolição
no prazo de um ano a contar da
data de publicação. Em 27 de abril, desse mesmo ano, é anunciada para logo a
publicação do livro de Aluísio Azevedo.
Na segunda-feira, 19 de
maio, aparece uma crítica
ao livro não assinada. A avaliação é positiva
e conta a história de que Aluísio teria a intenção de escrever um livro sobre
um comendador, que seria Miranda, mas que desviou e agregou a história de João
Romão e seu Cortiço, rivalidade que acaba com o casamento do bodegueiro com a
filha do Barão. Há dois aspectos a serem destacados aqui. Primeiro, esse leitor
afasta Aluísio de Zola (“Não me falem de Zola”), porque
Rita Baiana (pimenta
e cantáridas) impregna
todo o livro e o autor “embebeu as páginas de O cortiço de uma sensualidade pungente”.
Outro aspecto que merece
destaque é a aceitação tranquila e natural
de que Rita estaria atraída (mesmo!), “impulso
fisiopsíquico”, por um “português representante de raça superior”. Essa aceitação parece indicar o
‘leitor moderno’ que aceita a realidade crua desde o ponto de vista da ciência.
Depois de elogiar a observação viva do cortiço – lavadeiras em suas tinas,
mascates, promiscuidade inevitável – e os retratos, enquanto desenhos de
figuras – machona, Henrique, Leonor, Botelho, entre outros –, diz:
Nem todo mundo o [o cortiço]
apreciará; há pessoas que logo nas primeiras linhas da segunda página sentirão
como o choque de uma pedra contra as rodas de um bond. Estes é melhor que aí fechem o livro.
Mas quem apreciar um estilo seguro,
uma ação que, nos meandros
em que envereda, vais sempre argumentando, quem estiver convencido de que a arte nada tem com a
moralidade, leia este livro. Há de concluir que O cortiço é um livro vigoroso e Aluísio Azevedo romancista de pulso (GAZETA DE
NOTÍCIAS, Rio de Janeiro,
19 de maio de 1890, p. 1).4
Depois de apresentar elogiosamente o livro, um crítico, de autoria não
identificada, distingue dois tipos de recepção. Há aqueles que terão efeito de
choque e não poderão ler a obra, podem ser mulheres ou conservadores, ou decorosos,
que não aceitam o povo da rua, ou o público feminino,
ou... E há aqueles que percebem a separação entre arte e moralidade. Estes últimos perceberão vigor da obra e
pulso do autor. Considerando o perfil da crítica da época, há um elogio da dimensão moderna da
obra, de sua capacidade viril de enfrentar um tema difícil e de representar a realidade das
“classes menos favorecidas da época”.
Depois em 22, 24 e 26 de maio, há crítica de Pardal Maillet,
que não vou resenhar aqui. Os preconceitos da obra não aparecem
destacados, pois ficam (ao que tudo indica) invisíveis para o leitor que
compartilha de uma posição similar. O que me interessa destacar é que o
processo de narração é valorizado por sua modernidade: separação entre moralidade
e arte; observação da realidade e da rua, espaço para classes desfavorecidas;
vigor do romancista de pulso. O preconceito não fica visível.
Este breve estrato mostra o quanto a recepção da época parte do
pressuposto que o romance está representando as coisas como elas são. E o narrador o faz de modo despudorado, na vulgaridade das cenas de sexo, na vida do cortiço
ou na menstruação de Pombinha.
O efeito poderia ser violento
para o leitor. A única ressalva,
feita por Pardal Mallet, é que Aluísio fazia uso excessivo de sua
imaginação, afastando-se do documento humano. De certo, há reconhecimento da
realidade fluminense, mas, em nenhum momento, há desconfiança quanto à posição
do narrador.
Até aqui, vimos
o lugar do naturalismo no Brasil, a força de obras que trazem os homens
comuns, seriamente representados, para protagonizar as obras de ficção. Isso é
importante por dar visibilidade e trazer a primeiro plano
aqueles que ficavam
apenas como pano de fundo.
Ao mesmo tempo, pela leitura de Candido, comentada por Schwarz, fica
evidente a posição em falso do romance
naturalista. Apesar da fachada distante
do narrador externo,
seria possível
4 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_03&PagFis=711.
identificar não apenas seus preconceitos como ainda sua posição
de classe. Agora, a partir
dos atritos entre narração e matéria narrada, vamos analisar João Romão,
a figura central do romance.
O avarento e a (ex-)escrava, João romão
e Bertoleza
O Cortiço está organizado em
vinte e três capítulos. Na entrada da obra, na primeira frase, lemos o nome de João Romão. De modo acelerado, é resumida sua história até então. Dos treze aos vinte cinco anos foi
empregado de um vendeiro português. Não sabemos nada dele antes disso, apenas
que é português. Ele parece ser filho de ninguém. Em resumo, o romance começa quando,
aos vinte e cinco anos, depois de doze anos de servidão, um português se torna
proprietário de uma “suja
e obscura taverna nos refolhos
do bairro de Botafogo” (AZEVEDO,
2012, p. 65), possuído pelo delírio de enriquecer.
Daí para frente é um movimento contínuo
de enriquecimento, fazendo uso de qualquer expediente para ganhar mais
dinheiro.
No terceiro parágrafo, aparece Bertoleza, que “também trabalhava forte” (id., ib.) e que vai ser companheira de Romão até o
fim. Ela “representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante” (id., p. 69). Em toda fase de ascensão do
português, Bertoleza cozinhava, atendia, cuidava da casa, era amante. Os dois trabalhavam lado a lado, sem descanso, sem domingos, numa vida de
restrição. Tudo que ganhava(m) ia para o banco. Agora, vale observar
ainda que João Romão usou as “economias da amiga” para comprar
o terreno e expandir sua venda. Um pouco mais de um ano, depois
de falsificar a carta de alforria
para Bertoleza, o narrador enuncia como se Romão tivesse feito a “aquisição da
crioula”. O dinheiro que seria para o jornal,
para pagar o dono de Bertoleza, permitiu
o investimento inicial para comprar um terro atrás da
venda, onde construiu as três primeiras casinhas, “o ponto de partida do grande
cortiço de São Romão” (id., p. 70).
Essa primeira relação
é fundamental para analisar o livro. Note-se
que a tendência crítica é a de atentar
para a trajetória do vencedor. O que é importante, mas interessa observar
que sua aliança com a
(ex)escrava é fundamental para a trajetória de ascensão social. Perto do final,
depois da transformação de Romão,
ela escuta a conversa do ex-vendeiro com Botelho, parasita da casa de Miranda, sobre a
necessidade de se livrar de Bertoleza para poder se casar com Zulmira.
Bertoleza fica indignada.
–
Você está muito enganado, Seu
João, se cuida que se casa e me atira à toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas
tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e
sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde
pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada
no meio da rua,
como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!
– Mas, filha de Deus, quem te
disse que eu quero atirar-te à toa?... perguntou o capitalista.
– Eu escutei o que você conversava, Seu João! A mim não me cegam assim só! Você
é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento com a menina de Seu Miranda!
– Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!...
Não hei de ficar solteiro toda a vida, que não nasci para podengo! Mas
também não te sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava
aqui com o Seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e...
– Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso
de um descanso! Para isso mourejei
junto de você enquanto Deus Nosso Senhor
me deu força e saúde!
– Mas afinal que diabo queres tu?!
– Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o
que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso
trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu!
– Mas não vês que isso é um
disparate?... Tu não te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o
que for bem entendido e não loucuras! Descansa que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos
vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento!
–
Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava
mal servir-se de meu corpo e aguentar
a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo;
agora não presta pra mais nada, e atira-se
com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se
enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu
rosto?... Quer casar, espere então que
eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!
João Romão perdeu por fim a
paciência e retirou-se da sala, atirando à amante uma palavrada porca.
(AZEVEDO, 2012, p. 349-340, grifo meu)
A citação é longa, mas é importante para deslocar o ponto de vista da análise.
A fala de Bertoleza não é caricatural. É a fala da companheira traída
pelo amante, que usufruiu de sua companhia,
de seus cuidados, de seu trabalho, de seu corpo.
Romão quer deixá-la
para se casar com Zulmira. Bertoleza tinha a expectativa de usufruir o
que os dois haviam ganhado juntos. Ela tem plena consciência de seu trabalho e
de seu ganho. Romão, depois de sua viravolta, se afasta de Bertoleza e se vê
como solteiro, como alguém que precisa de um casamento conveniente. É
interessante notar que o diálogo se dá, na nova casa, na frente de Botelho. O
parasita da casa de Miranda, que perdera tudo e vivia de favor, entra em cena
no romance criticando a lei do ventre livre. Ele se escandalizou com o modo com
ela lhe falou. É dele que vem a sugestão
para que Romão entregue Bertoleza
ao herdeiro do antigo dono. Seu escândalo mostra o quão
inusitado era uma negra falar de igual para igual com um homem branco,
cobrando-lhe por suas atitudes. Bertoleza seria uma ameaça.
A narração tende a aderir às angústias do protagonista da obra, Romão,
que não consegue dormir, pois ascendeu socialmente, mudou sua aparência, sua roupa, seus hábitos para poder circular na elite fluminense.
O vínculo com Bertoleza revelava não apenas a origem de sua história, como
ainda a parceria durante toda trajetória de ascensão. Para ele, Bertoleza
revelaria sempre sua origem
baixa, seria “uma oposição negra”. Tanto é assim, que, no último capítulo, nem há referência ao cortiço. Este já
havia sido extinto e convertido em Avenida São Romão. O final traz a solução para
relação cordial do senhor e da escrava, do português e da negra, de Romão e de
Bertoleza. Como nunca fora de fato alforriada, apesar de se acreditar livre,
Bertoleza é entregue ao filho e herdeiro de seu antigo dono. Como lembra Assis
Duarte, Romão seguiu a “doxa patriarcal: ‘branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata
para fornicar” (DUARTE, 2009,
p. 6). Este ditado popular
complementa o outro, dos três pês (português, preto e burro, pão pra comer,
pano pra vestir e pau pra trabalhar). Assim, de um lado, a desconfiança quanto
ao narrador é complementada pelo preconceito racial e de gênero. Vale lembrar que
quando os dois se amigaram, o narrador comenta que Bertoleza ficou “feliz em
meter-se de novo com um português, porque,
como toda cafuza,
Bertoleza não queria
sujeitar- se a negros e procurava instintivamente o homem de raça
superior a sua” (AZEVEDO, 2012, p. 66). Assim, no escândalo de Botelho ecoa a
voz do próprio narrador, quando ela atesta sua igualdade a Romão. Ela se
equipara a Zulmira, não aceita a marcação da diferença, como rebaixamento e como infantilização. O interessante é atentar para a adesão
ao ponto de vista do narrador, aderente ao vencedor. Sempre
é interessante atentar aos resumos dos romances, no caso de O cortiço, Bertoleza
tende a sumir
sem quase deixar
rastros. Seu suicídio,
ao final, pode ser lido como gesto de resistência,
de alguém que prefere a morte a voltar para a escravidão.
Além de Bertoleza, Romão pode ser contrastado com outros personagens. A
relação mais óbvia é Miranda, com quem disputou o terreno entre a venda e o
sobrado. João Romão não quis vender e, a partir daí, criou-se uma rivalidade que percorre a obra. Miranda,
despeitado com a independência de Romão, decide buscar um ideal, busca um título de nobreza.
Quando, meses depois, Romão lê a notícia de que o vizinho fora agraciado pelo governo português
com o título de Barão de Freixal, o vendeiro “invejava agora Miranda
invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera
o marido de Estela, quando,
por sua vez, o invejara
a ele” (id., p. 197). Neste momento
Romão é caracterizado como “sovina”,
“animal”, “atrofiado pela cobiça”, “desgraçado que nunca
jamais amara senão ao dinheiro” (id., p. 197).
À noite, quando se estirou
na cama, ao lado de Bertoleza, para dormir, não pode conciliar o sono. (...) E
em volta do seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de
grandezas, que ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente,
em ondas de seda e rendas, veludo e pérolas, colos e braços de mulheres
seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinho cor de ouro. (...)
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava de papo para o ar, estrompada de
serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.
(AZEVEDO, 2012, p. 198-199)
A partir da notícia do baronato de Miranda, aquele que sempre lhe
parecera inferior, João Romão sofre uma transformação lenta e radical. Ele não
consegue entender as razões de sua inveja, mas gradualmente ele altera seu
comportamento para alcançar as grandezas sonhadas. Ao final, a descrição de sua casa comercial e a promessa
de casamento com Zulmira
mostram que ele alcançou seu objeto.
Seguindo mais uma vez a leitura de Antonio Candido,
em O Cortiço, temos um romance que apresenta a acumulação
primitiva de capital. Já vimos
que nesse processo a exploração
do dinheiro e da força de Bertoleza foram fundamentais para o início de seus
negócios. Em todo processo, ele fora um asceta que vivia para ganhar dinheiro.
Vale observar que não se trata de trabalho regular, eticamente pautado, que
poderia ser visto em Jerônimo. Para enriquecer, Romão trabalhou, mas também
enganou no peso, roubou material de construção, barganhou o salário de seus
empregados. Ele representa ativamente o tempo do capital em contraste com o
tempo repetitivo dos habitantes do cortiço (OTSUKA, 2009). Aproveitando a
indicação podemos avançar na caracterização para interpretar a transformação
operada em Romão.
Marx cita Balzac uma
observação da função capitalista do dinheiro em oposição ao antigo acúmulo:
A exclusão do dinheiro da circulação seria precisamente o contrário de
sua utilização como capital, e a acumulação de mercadorias no sentido do entesouramento seria uma
pura tolice. Assim, em Balzac, que tão profundamente havia estudado todos os
matizes da avareza, o velho usurário Gobseck coxeia já quando começa a formar
um tesouro de mercadorias acumuladas.
Mas o caminho que leva
Balzac a essa “profunda compreensão das condições reais” que Marx reconhece em outro lugar discorre na direção oposta
da análise econômica. Como a uma criança,
ele se fascina com a espantosa imagem
e as tolices do usurário. O emblema deste é o tesouro
de que infantilmente se rodeia. Somente historicamente se converteu em tolice, o rudimento
pré-capitalista no coração do flibusteiro da da circulação. É esta classe
de fisionomia cega, de literatura não teoricamente orientado, a
que satisfaz a teoria dialética e capta a principal tendência histórica.
Nenhuma relação legítima entre arte e conhecimento é estabelecida quando a arte
toma de empréstimo teses da ciência, ilustra-as, e antecipa a ciência
alcançá-la adiante. (ADORNO, 1991, p. 129, grifo meu) 5
Curiosamente, o narrador de O
Cortiço se aproxima mais desse gesto infantil, descrito por Adorno,
com “a espantosa imagem e as tolices
do usurário”. Assim, as imagens
de Romão, capaz de comer os
restos de comida dos trabalhadores para economizar, entre outros gestos,
traduzem, aparentemente, o típico avarento, que apenas acumula dinheiro e tem
gosto em guardá-lo. Sua ação,
no entanto, mostra
nitidamente a passagem
do dinheiro para o capital.
Ele guarda o que ganha no banco, para seguir a tendência da expansão ilimitada
de seu capital, que se
define nessa dinamicidade.
A partir desse nexo apresentado por Adorno, temos um caminho para
entender o trabalho de transformação de Romão. Ele altera sua aparência, passando
a se barbear e deixando apenas o bigode. Troca suas
roupas. Passa a tomar o próprio vinho, reservado para si, numa mesa com toalha.
Aprende a dançar num clube. Passa a assinar mais jornais. Passa a ler
folhetins... Ele faz o aprendizado de um novo ethos para se distinguir dos habitantes do cortiço,
“nesta coexistência íntima do explorado e do explorador” (CANDIDO, 1998, p.
126). Fica evidente que sua trajetória ascensional se completa quando o
enriquecimento é marcado na passagem de uma classe para outra.
A explicação mais óbvia, que não
deixa de ser verdadeira, diz respeito ao desejo de ser reconhecido em sua riqueza,
pelo poder que o dinheiro
acumulado lhe facultava. No dia em que
leu a notícia no jornal,
Romão expulsou violentamente Marciana (o que dará origem
à vingança da Bruxa)
e teve um comportamento mais violento do que o normal. Alterado,
ele chega a gritar
que ali, dentro do cortiço, ele era o monarca. Um grito de poder que funciona
como denúncia de seu próprio limite, circunscrito ao espaço do cortiço. Agora,
o segundo passo da interpretação parte da identidade de Romão com a dinamicidade do Capital, de seu movimento de expansão ilimitado. Quando ele lê a notícia
do baronato, percebe que há uma esfera em que
não pode entrar. Sua inveja indica a necessidade de alterar a aparência,
disfarçar o trabalho, para que o capital possa ampliar seu espaço de
circulação. Ao final, sua casa comercial prosperava com lucros assombrosos.
5 Tradução minha.
No entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali prosperava forte em grosso, aos contos de réis, com a mesma febre com que
dantes, em torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vinténs choviam
dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente
do armazém carroças e carroças com fardos e caixas
trazidos da alfândega, em “que se liam as iniciais de João
Romão; e rodavam- se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre,
e grandes partidas de barricas
de cerveja e de barris de manteiga e
de sacos de pimenta. E o armazém, com as suas portas escancaradas sobre o
público, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sair de novo,
aos poucos, com um lucro lindíssimo, que no fim do ano causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e
armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender a retalho. (AZEVEDO, 2012, p. 342-343)
A descrição segue
mostrando um negócio
pujante. O que interessa destacar
é que Romão passou a dirigir o negócio, realizado por outras pessoas,
cujos nomes nem precisam ser referidos. Sua marca,
JR, está nos fardos importados que passam pela alfândega e são vendidos não apenas diretamente ao público,
como também distribuído para outras
vendas de Botafogo. Voltando à explicação, Romão precisava
se transformar para continuar expandido. Ao ver Miranda agraciado com o
Baronato, o ex-vendeiro vê um mundo a ser conquistado, mas que ainda lhe era
inacessível.
Para fechar essa seção, poderíamos pensar no modo como as outras personagens
compreendem o papel do dinheiro, como ganham o seu sustento e como lidam com
ele. Jerônimo fazia uma poupança para o futuro
de sua filha, empregado exemplar
na pedreira. Rita Baiana, enquanto tivesse dinheiro,
fazia festas e deixava de lado o trabalho de lavadeira. Miranda dependia do
dinheiro que Estela trouxera junto com o casamento. Poderíamos seguir a trilha
do dinheiro para entender melhor a trajetória de Romão e dos demais
personagens, mas interessa
finalizar com a caricatura do avarento. Libório, com aparência de mendigo,
morava numa das casinhas
do cortiço. Todos
desconfiavam de um tesouro escondido, mas nunca tinham visto. Os outros moradores riam
dele, riam da voracidade com que comia até se engasgar a refeição ofertada, gratuitamente,
por Rita Baiana. No dia do segundo incêndio, Romão segue Libório, quando este corre para seu quarto. Ali o velho avarento faz uma trouxa
com as garrafas em que guardava
dinheiro e mais dinheiro. Ele percebe o interesse de Romão, agarra-se
a trouxa e não deixa o português ajudá-lo. Caído no chão,
não consegue segurar
o fardo que é arrancado por Romão. Libório morre,
Romão fica com seu dinheiro. Ao contar o dinheiro, o ex-vendeiro se
espanta não apenas com a quantia de mais de quinze contos de réis. Ele se
indigna com os oito contos de notas já prescritas. O restante foi usado para iniciar as obras do novo cortiço.
Em síntese, Libório (velho
avarento) é o dinheiro morto,
escondido e que perde a validade, enquanto Romão é o dinheiro
vivo, que se transforma em capital e se mantém
vivo na expansão ilimitada.
Duas Revoluções
(Jerônimo, Pombinha)
Depois de lidarmos com o arrivismo de João Romão, que encarna o movimento
do capital, que, mesmo limitado, busca expansão sem limites. Movendo-se no tempo da produção,
no tempo homogêneo e vazio, o português
volta-se para projetos
futuros, deixando para trás os instrumentos já obsoletos. Bertoleza
era o resíduo antigo a ser
eliminado. Dentro do cortiço, a sociabilidade parece apontar para outra
vivência do tempo, próprio da comunidade. As lavadeiras, reunidas em volta das
tinas, conversam, contam histórias, cantam, compartilhando o trabalho, sem
deixar de acompanhar a vida dentro do cortiço.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono;
ouviam-se amplos bocejos, fortes
como o marulhar das ondas; pigarreava-se
grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente
do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os
bons-dias; reatavam-se conversas
interrompidas à noite; a pequenada cá fora
traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros
abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que
altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar
de galinhas. De alguns quartos saiam
mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio,
e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. (AZEVEDO, 2012,
p. 95, grifo meu)
No capítulo III, pela primeira
vez, a vida dentro do cortiço é apresentada, quando acorda
para um dia de trabalho. É uma apresentação das ações rotineiras que estruturam
o cotidiano dos moradores do cortiço. Depois disso, vem a ida às bicas,
a fila nas latrinas e “rumor crescia, condensando-se; já se não
destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo cortiço”
(id., p. 96). Entraram os mercadores – pão, leite
(tirado da vaca na hora), carne fresca, quinquilharias, peixes... Apenas,
depois disto, é que aparece um grupo de lavadeiras, que se colocam lado a lado
a trabalhar. Elas são apresentadas pelo narrador: Leandra, a “Machona”,
portuguesa feroz; Augusta Carne Mole,
brasileira e branca, mulher de Alexandre, mulato e soldado da polícia; Leocádia,
portuguesa pequena e socada, mulher do ferreiro
Bruno; Paula, a Bruxa;
Marciana, mulata antiga,
séria e asseada;
Isabel, portuguesa séria
que sacrificara tudo pela
educação da filha, Pombinha, “a flor do cortiço; “fechando a fila das
lavadeiras”, Albino, lavadeiro, que vivia entre as mulheres.
“De todos os casulos saíam os homens
para suas obrigações” (id., p.
204).
A apresentação do cortiço se completa como se fosse
montado o cenário,
enquanto palco para o
desdobrar das ações. Vale atentar para alguns aspectos. Temos aí uma vida
coletiva. O narrador tende a descrever como uma “fermentação sanguínea”, uma colmeia,
em que se mostra o “prazer
animal de existir”. São já demais
conhecidas da crítica,
a linguagem naturalista usada pelo narrador para dar uma dimensão animal a estes homens,
a estas mulheres. No entanto, há algo que na matéria narrada apresentada fica
sem comentário. As vidas pessoais e familiares são atravessadas (e articuladas)
na coletividade. Assim, uma situação pessoal é debatida e vivida como um
acontecimento de todos. Não é fofoca, é uma atuação solidária. A fila das
lavadeiras, e do lavadeiro, mostra uma diversidade não apenas nacional
(brasileiras e portuguesas), ou étnica (brancas e mulatas, mas sem negras). Há
uma diversidade familiar. Machona, sozinha, cuida
de seus filhos,
três, provavelmente de pais diferentes. Augusta, mulher do soldado,
é uma plácida mãe que aparece sempre,
ao longo de toda história, com um filho no
colo. Leocádia, casada,
sem filhos, vai trair o marido e, depois de engravidar, ambiciona tornar- se ama de leite... Poderíamos seguir, mas o que importa
indicar é que cortiço traz uma dimensão comunitária.
Se também levarmos em consideração que, na sociedade
medieval, as relações coletivas prevaleciam sobre as familiares e que a maioria das tarefas realizadas pelas servas (lavar, fiar,
fazer a colheita e cuidar dos animais nos campos comunais) era realizada em cooperação com outras mulheres,
nos damos conta de
que a divisão sexual
do trabalho, longe de ser uma fonte
de isolamento, constituía uma fonte de
poder e de proteção para as mulheres.
Era a base de uma intensa sociabilidade e solidariedade
feminina que permitia às mulheres enfrentar os homens, embora a Igreja
pregasse pela submissão e a Lei Canônica santificasse o direito do marido a
bater em sua esposa. (FEDERICCI, 2017, p. 28)
Silvia Federici, em Calibã e a
Bruxa (2017), mostra como essa
forma de vida comunitária precisou ser destruída para o capitalismo se
implantar. Ela se volta para a caça às bruxas, para mostrar como foi importante
minar essa solidariedade feminina para que elas se submetem-se aos homens,
ficassem restritas ao trabalho doméstico (invisível e não remunerado) e
cuidassem da reprodução necessária para o capitalismo. Em outros termos, a
família moderna (e o modelo higiênico) foi se formando com o desenvolvimento do
capitalismo. A produção da família nuclear rompe os laços de solidariedade e
proteção.
Em Cidade Febril (2009), Sidney Chalhoub recupera
a destruição do cortiço Cabeça
de Porco em 26 de janeiro
de 1893. Barata Ribeiro, prefeito
designado, comanda a equipe de policiais e
bombeiros na demolição. Assistida e aplaudida por empresários (do ramo
imobiliário), médicos, políticos, imprensa, “a destruição do Cabeça de Porco
marcou o fim de uma era” (CHALHOUB, 2009, p. 17), a erradicação dos cortiços,
como antros de bandidos, sujeira disseminadora de doenças, local de perversão
dos costumes – “os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade”
(id., p. 29). E ainda:
O resultado
dessas duas operações mentais é o processo de configuração dos pressupostos da Higiene como uma
ideologia: ou seja, como um conjunto de princípios que, estando destinados a conduzir o país ao
“verdadeiro”, à “civilização”, implicam em despolitização
da realidade histórica, a legitimação apriorística das decisões quanto às
politicas públicas a serem aplicadas no meio urbano. (CHALHOUB, 2009 p. 35,
grifo meu)
Os pressupostos da higiene construíram a visão exterior do cortiço e nos
ajudam a entender ainda mais o paradoxo narrativo que funda O cortiço. Aluísio construiu um narrador
onisciente que olha de fora, usa uma linguagem preconceituosa e ideologizada, mas ainda assim traz as histórias de dentro do
cortiço. Como se viu antes, não se trata de um modo simples, ou de uma vida
espontânea e natural, mas de uma forma comunitária com diversos modelos
familiares. Acolhia diversos pobres, mas não aceitava a entrada da polícia.
É neste ambiente que duas transformações ocorrem, duas revoluções, como
diz o narrador do romance. Jerônimo torna-se um brasileiro. Pombinha toma
consciência de seu corpo e das relações entre homens e mulheres depois da
relação sexual com Léonie. De certo modo, que vem de fora do cortiço e mudam a
partir do convívio. Jerônimo passa a morar ali quando passa a trabalhar
na pedreira de Romão. Pombinha
vem para o cortiço, depois
da morte do pai e do
empobrecimento da família, mas ela é uma moça letrada, diferente do resto.
Comecemos pela revolução de Jerônimo.
Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo
os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza;
mas, de repente,
o cavaquinho do Porfiro,
acompanhado pelo violão
do Firmo, romperam
vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de
toda aquela gente despertasse logo, como se
alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se
outras notas, e outras, cada vez mais ardentes
e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente,
a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de
amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia
de doer, fazendo estalar de gozo.
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de
plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais
e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos
do delicioso perfume
que os mata de volúpia.
[...]
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre
as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez
em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada
de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe
cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o
suco da primeira fruta provada
nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma
do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal
da primeira mulher,
da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.[...]
E Jerônimo via e escutava,
sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz
ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda;
era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara
nas matas brasileiras; era a palmeira
virginal e esquiva
que se não torce a nenhuma outra
planta; era o veneno e era o açúcar
gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira,
a lagarta viscosa, a muriçoca
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno
do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras
embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir
dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela
música feita de gemidos de prazer, uma larva
daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa
fosforescência afrodisíaca. (Azevedo, 2012, p. 153, grifo meu)
A citação é longa, pois mostra o momento em que a revolução acontece, e a
alma de Jerônimo vai-se “pelos olhos enamorados”. A descrição, ao final, de
Rita Baiana já foi muito comentada pela crítica, desde sua primeira recepção.
Ela é a encarnação lírica do todo, “o grande mistério”, “a síntese”, que traduz
a experiência nova do português que atravessa seus sentidos (a visão, a dança; o olfato, a baunilha; o paladar, as frutas; a audição,
a música; o tato, a calor do
sol) e aguça de modo quase incontrolável seu desejo sexual. Cabe ressaltar ainda dois aspectos.
Primeiro, vale atentar para o gesto de Jerônimo que se larga, que descansa as
mãos sobre as cordas de seu instrumento e, esquecido de si, frui a música
desconhecida. É importante ressaltar que se trata de um domingo à noite,
período de descanso, em que o ócio abre ao trabalhador uma oportunidade de
festa comunitária.
E agora o segundo aspecto, a música que leva o português à transformação.
O chorado baiano, com violão e cavaquinho, despertou o sangue
da gente no cortiço. Neste domingo, folga do
trabalho, a reunião para comer e beber se completa com a música,
que envolve e desperta o corpo. É
interessante como todos se entregam à dança. Em Terpsícore, Machado de Assis constrói um conto em que o
protagonista, Porfírio, se apaixona
por Glória quando a vê dançar.
Glória tinha
feições irregulares e comuns; mas o riso dava-lhe alguma
graça. Nem foi pela
cara que ele se enamorou
dela; foi pelo corpo, quando
a viu polcar, uma noite,
na rua da Imperatriz. Ia passando, e parou defronte
da janela aberta de uma casa onde se
dançava. Já achou na calçada muitos curiosos.
[...] Da rua, Porfírio cravou
nela uns olhos de
sátiro,
acompanhou-a em seus movimentos lépidos e graciosos, sensuais, mistura de cisne
e de cabrita. (ASSIS, 2008, p. 245)
A música mestiça,
a polca (e aqui poderíamos lembrar de Pestana...), e a dança
se integram numa experiência estética que envolve por inteiro Porfirio,
assim como aconteceu com Jerônimo,
e desperta o olhar cobiçoso
do sátiro. É interessante deslocar
para a música para mostrar que o narrador
novamente enfatiza o vínculo de Rita com a natureza,
mas a sua narrativa parece
contar outra história. No caso, Jerônimo fica encantado pela festa comunitária
e mais encantado ainda com a rainha da festa, com a dança de Rita Baiana. Mais
do que síntese do Brasil, ela sintetiza um tipo de formação cultural
e social que se mostra
no cortiço. Depois disso, ele foi adotando
os usos e costumes brasileiros (café, cachaça, farinha
de mandioca, pimenta,
fumo...), “tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento de
suas forças físicas” (AZEVEDO,
2012, p. 171) e, assim,
“A revolução afinal
foi completa”. O narrador descreve como um processo que vai da crisálida à borboleta, chamando
isso de “abrasileiramento”. Novamente, encontramos aqui a confusão entre a dimensão
social e cultural,
presente na vida dos pobres
do cortiço, como se fora um traço
brasileiro. Note-se
que há uma relação entre a diminuição do trabalho e da contenção do corpo,
de um lado, e a vida prazerosa, de outro,
como se fosse
uma polaridade em que cada lado, trabalho
ou prazer, exigisse submissão completa a seus princípios. Quanto ao “abrasileiramento”, vale destacar que a
modernização desejada pelos
republicanos da nova geração, da qual Aluísio
fazia parte, marcava os traços de origem colonial
que precisavam ser suprimidos para se
alcançar o padrão cosmopolita, higiênico, de cidade e costumes modernos. O fim dos cortiços, o fim de uma era. A outra revolução aconteceu com
Pombinha, que vai se tornar, ao final, uma prostituta. A entrega ao
prazer do corpo levou Jerônimo a ser abrasileirar, abandonar o casamento para
ficar com Rita Baiana, esquecer a educação da filha, mas ainda assim mantinha o
comportamento patriarcal. Quando isso acontece com uma mulher, Pombinha, isso
levaria à prostituição.
Martha de A. Esteves (1990)
analisa um conjunto
de processos criminais
de atentado ao pudor
na Belle Époque
brasileira. Para o presente artigo,
interessa atentar para duas dimensões. Primeiro, o discurso jurídico
está afinado com o processo de “modernização” do comportamento da elite
brasileira. Assim, as mulheres devem se portar com cuidado, quando andarem na rua, evitarem
saírem acompanhadas e priorizarem a vida doméstica
(cuidado da casa, do marido e dos filhos).
O prazer com o próprio corpo, o divertimento na cidade, as leituras
– tudo deveria estar submetido
à prioridade da família burguesa.
A partir desse parâmetro, nos julgamentos, há uma tendência de supor a transgressão feminina
pelo simples fato de andar
na rua. Se forem homens, podem abusar das mulheres, podem andar com
prostitutas e frequentar lugares suspeitos. As mulheres pobres, por sua vez
(lavadeiras, costureiras, atendentes, etc.), precisavam circular na rua, sozinhas, tendo
a priori uma situação vulnerável e, principalmente,
suspeita. Mesmo a prostituição feminina não era condenada, mas deveria se
controlada. Em outros termos, os homens precisavam de prostitutas para manter a
integridade do casamento, mas a prostituição deveria ser higienizada,
restrita a alguns lugares
e a mulheres examinandas.
“O ser
prostituta envolvia então não só ter muitas relações sexuais, mas ter
determinados comportamentos (como andar só, fantasiar-se, sair à noite)
e até pensamentos (intenção de
voltar para dormir). Ao falar sobre isso, vem-me frequentemente à lembrança a
tese, já citada, de Magali Engel sobre a prostituição no século XIX. Na
verdade, segundo a autora, as medidas de combate à prostituição não se propunham, em última análise,
a erradicá-la. Os médicos tinham, sim, a proposta de
isolamento do seio da sociedade.” (ESTEVES, 1990, p. 52)
Assim como os pobres foram expulsos do centro da cidade para os morros,
para que a cidade se modernizasse, as prostitutas deveriam evitar o convívio
com os cidadãos, ficando restritas a um único espaço. Em O Cortiço, Léonie, prostituta de luxo, visita a família de
Alexandre, o soldado da polícia, e Augusta Carne Mole. É uma situação curiosa
em que o convívio não apenas é harmônico, como ainda admirado por todos os
moradores que ficam encantados com as vestes ricas da cortesã. Será ela a
responsável pela iniciação de Pombinha.
Primeiro, Léonie convida Pombinha e sua mãe para visitá-la em um domingo.
Com a mãe dormindo, Léonie
leva a moça para seu quarto e força uma relação sexual.
No dia seguinte, Pombinha menstrua.
Com efeito, um dia depois de
violentada, mas ao mesmo tempo despertada sexualmente pela cocotte, a mocinha
adormece no capinzal ao fundo do cortiço e sonha que está numa "floresta vermelha
cor de sangue", deitada na
corola de enorme rosa vermelha,
fascinada pelo sol, que desce como borboleta
de fogo e solta sobre ela
uma nuvem de poeira dourada". Pombinha acorda, sentindo "a puberdade
sair-lhe afinal das entranhas em uma onda vermelha e quente". (CANDIDO,
1998, p. 152)
Antonio Candido, além de destacar
a novidade da cena, o quanto o narrador fez uso da imagem do sol, como poder
dissolvente dos costumes tanto para Pombinha quanto para Jerônimo. Em ambos os casos, a transformação estaria
ligada ao calor brasileiro, ao efeito do sol. No caso
de Pombinha, adormecida no gramado, atrás do cortiço, o sol compõe um sonho
erótico em que ele leva a moça ao prazer
sexual. Quando desperta, percebe que menstruou, que se transformou em mulher. Interessa destacar um momento
posterior a essa transformação, quando Pombinha está escrevendo uma carta para
Bruno, que deseja o retorno de Leocádia.
– Diga-lhe que... se ela
quiser tornar pra minha companhia... que pode vir... Eu esqueço tudo!
Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou
o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a
duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa
das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas
vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço,
sobressaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro.
Porque, só depois que o sol
lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de
sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os
poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu
corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava
e surpreendia. Não a
comovera tanto a revolução física. Como que naquele
instante o mundo inteiro
se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as
lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a
fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir
humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.
Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em que
desabotoou, tinha de ser fatalmente vítima da própria
inteligência. À mingua
de educação, seu espírito trabalhou à revelia,
e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça
ignorante e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e
sentir.
Que estranho poder
era esse, que a mulher
exercia sobre eles, a tal ponto, que os
infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e
suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma ideia bem clara da sua própria força e do seu
próprio valor.
Sorriu.
E no seu sorriso
já havia garras. (AZEVEDO, 2012, p. 236-237,
grifo meu)
Depois da revolução física, vem “de improviso” o esclarecimento. São dois
termos fortes que o narrador emprega, “revolução” e “esclarecida”, que ajudam a
entender a ambivalência de sua narração. De certo modo, ele lamenta, ao dizer
que a “pobre flor do cortiço” foi “fatalmente vítima da própria
inteligência” e atribui tal distorção ao meio. Ao mesmo tempo, assim como antes aconteceu com Bertoleza, Pombinha
toma consciência de “sua
própria força e de seu próprio valor”.
O prazer sexual
e a menstruação não a transformam apenas em mulher, apta a casar,
segundo os costumes da época,
fazem com que ela perceba
seu valor, sua igualdade
de valor em relação aos homens. Na cena, ela percebe que Bruno, o ferreiro, se mostra frágil,
desfaz tudo que disse para implorar pelo retorno de Leocádia. Assim,
aquilo que para o narrador é
uma degradação, na percepção da moça é um gesto emancipatório. Depois disso, ela não aguenta
o casamento, tem casos adúlteros e, então, se une a Léonie para se tornar uma cortesã. No universo
do romance, seria o caminho
para um mulher pobre que se emancipa e não quer se submeter ao poder
patriarcal.
Verdadeiro materialista
histórico não é aquele que segue ao longo do tempo linear infinito uma vã
miragem de progresso contínuo, mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar
o tempo, pois
conserva a lembrança de que a pátria originária do homem é o prazer. É este o tempo experimentado nas revoluções autênticas, as quais, como
recorda Benjamin, sempre foram vividas
como uma interrupção da cronologia; porém, uma revolução da qual brotasse,
não uma nova cronologia, mas uma mudança
qualitativa do tempo (um cairologia), seria a mais grávida de consequências
e a única que não poderia ser absorvida no refluxo da restauração. Aquele que,
na epoché do prazer, recordou-se da
história como a própria pátria original, levará verdadeiramente em cada coisa
esta lembrança, exigirá a cada instante
esta promessa: ele é o verdadeiro
revolucionário e o verdadeiro vidente, livre do tempo não no milênio, mas agora. (AGAMBEN, 2005, p. 128)
Ao comentar o conceito de tempo e de história
em Walter Benjamin, Giorgio Agamben
destaca a capacidade do prazer em parar o tempo. Trata-se de uma interrupção,
que traz uma mudança qualitativa na experiência do tempo. Sem estender a
análise, é interessante que o romance traga para a esfera
individual, e condene,
as revoluções individuais, em que Jerônimo se desliga do trabalho alienado,
depois de descobrir um prazer do corpo, que antes lhe era desconhecido e em que
Pombinha descubra seu valor, depois de experimentar o prazer no próprio corpo.
Note-se que, apesar dessas mudanças, os dois buscam um lugar na sociedade patriarcal.
Para encerrar este artigo,
cabe trazer a primeiro plano uma figura menor, Paula, a Bruxa.
Seguia-se a Paula, uma
cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar febres
por meio de rezas e feitiçarias.
Era extremamente feia, grossa,
triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como
dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade.
Chamavam-lhe “Bruxa”. (AZEVEDO, 2012, p. 100)
A Bruxa surgiu à janela da
sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla
velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida
e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de
fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as
queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que
ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.
Ia atirar-se cá para fora, quando se
ouviu estalar o madeiramento
da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num
montão de brasas. (AZEVEDO, 2012, p. 294)
Na primeira citação, Paula é descrita como uma figura marcada pela
idiotia e chamada de Bruxa, por ser capaz de curas, rezas e feitiços. Ao longo
do romance, ela receita para doenças. Tenta fazer isso para Jerônimo, que nada
aceita dela, pois deseja apenas os cuidados de Rita. Faz, depois, um feitiço
para que o homem de Piedade, com a cabeça virada por outra. Tirou cartas para
Bruno, dizendo que Leocádia ainda amava-o. Deu abortivos para Bertoleza para que ela
não tivesse filhos. Já na segunda
citação, o narrador apresenta a figura
caricatural da Bruxa, com seu “caráter fantástico de fúria saída do inferno”,
quando ela, em meio às chamas, satisfeita por ter conseguido se vingar de João
Romão, depois que este expulsou Marciana, é jogada no meio da rua.
Por meio da
caça às bruxas, portanto, um novo código
social e ético foi imposto, e isso tornou qualquer
fonte de poder independente do Estado e da Igreja suspeita de diabolismo e
provocou o medo do inferno – o medo do mal absoluto sobre a terra. O
fato de ter sido comumente assumido que a personificação do diabo era uma mulher
teve profundas consequências para a condição das
mulheres no mundo capitalista que a caça às bruxas ajudou a construir. Dividiu
as mulheres. Ensinou a elas que, ao se
tornarem cúmplices da guerra contra as “bruxas” e aceitarem a liderança dos
homens quanto a isso, obteriam
a proteção que as salvaria
do carrasco ou da fogueira. Ensinou-as, acima de tudo, a aceitar
o lugar a elas designado
no desenvolvimento da sociedade capitalista, pois, uma vez que fosse aceito
que poderiam se tornar servas
do diabo, a suspeita de diabolismo acompanharia a mulher por todos os instantes de sua vida. (FEDERICI, 2019, grifo meu)
Silvia Federici mostra
o lugar da caça às bruxas na formação do capitalismo. Ao pensar
o fim de Paula, a Bruxa,
podemos considerar o lugar emblemático que ela ocupa
com o fim do cortiço. Sua vingança não foi efetiva,
pois, pragmático, Romão
havia feito um seguro e, com o dinheiro roubado de Libório, pode construir
a Avenida São Romão. Seu gesto, no entanto, sinaliza a revolta contra a
violência com que o português explorava os moradores do cortiço. Ao mesmo
tempo, os cadáveres da Bruxa e do Libório mostram o fim da era dos cortiços,
que levou consigo a curandeira (e o espírito comunitário) e o velho avarento
(apegado ao dinheiro improdutivo). Os pobres foram empurrados para fora da cidade, para viverem na periferia, sem deixar de trabalhar para a elite
urbana.
Cabe ainda uma última palavra
sobre o narrador do romance.
Já foi visto que o valor da obra passa pela percepção da
dissonância, construída na tensão entre a narração e a matéria narrada, seja na palavra
do narrador, como mostra Candido,
seja na intriga, como mostra Otsuka. Interessa pontuar a conjunção
entre o racismo presente no dito dos três pês – Português, preto e burro; pão pra comer,
pano pra vestir
e pau pra trabalhar (CANDIDO, 1998, p. 128) e a doxa patriarcal – ‘branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”
(DUARTE, 2009, p. 6). Eles ajudam
a construir um perfil do narrador do romance de Aluísio Azevedo.
Ele traz para dentro de si o olhar da elite europeizada para dentro do
romance, o olhar de quem é incapaz de perceber os conflitos sociais advindo da
modernização, seja na acumulação primitiva,
seja na alteração das relações interpessoais. Ao mesmo tempo,
o impulso naturalista leva a buscar documentos na
rua, a matéria do cotidiano fluminense. Assim, as histórias de Bertoleza,
Jerônimo, Pombinha e Paula contam mais do que o narrador supõe, mas exigem do
leitor romper com a adesão ao ponto de vista dos vencedores.
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