▪ Este
poema é uma espécie de esclarecimento em relação à questão do fingimento
poético enunciada em “Autopsicografia”: não há mentira no ato de criação
poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do “sentir”, da
racionalização.
▪ De
facto, o poema tem todo o aspeto de ser uma resposta a possíveis reações à
teoria da criação poética expressa em “Autopsicografia”. Esta ideia é
confirmada pelos dois versos iniciais do poema: “Dizem que finjo ou minto /
Tudo que escrevo.”. O sujeito nulo indeterminado (“Dizem”) sugere
que houve reações (erradas e negativas) à sua teoria da criação poética
expandida naquele poema, às quais o «eu» responde com um claro e incisivo “Não”.
▪ De seguida,
apresenta o motivo por que “fingir” não significa “mentir”.
l Título
▪ O
título procura traduzir a ideia de que o poema constitui uma resposta, um
esclarecimento a uma dúvida surgida: é “Isto” que se pretende dizer. Note-se,
por outro lado, que o poema parece constituir uma realidade exterior e motivasse
o distanciamento necessário para o exercício da razão.
l Assunto:
tal como Autopsicografia, este poema
funciona como uma espécie de arte poética, na qual o poeta expõe o seu conceito
de poesia como intelectualização da emoção.
l Tema:
o fingimento poético.
l Estrutura
interna
• 1.ª parte (1.ª estrofe)
▪
Aparentemente, alguém indeterminado (“Dizem”) terá acusado o poeta de mentir: “Dizem
que finjo ou minto / Tudo que escrevo.”. De facto, o poema parece constituir
uma resposta a supostas críticas provenientes de possíveis interpretações de “Autopsicografia”.
▪ No
entanto, ele refuta essa acusação, afirmando que o ato de criação poética se
caracteriza pela sinceridade e espontaneidade (“simplesmente”),
pois sente “com a imaginação”. Quando escreve poesia, o poeta não mente; pelo
contrário, é sincero: ele usa a imaginação, a razão, intelectualiza as emoções
e os sentimentos e regista-os no poema através de um ato racional. Imaginar em
poesia não significa mentir, faltar à verdade. Fingir é sentir com a
imaginação, enquanto mentir é sentir apenas, usar unicamente o coração, os sentimentos
e emoções. Na perspetiva dos outros, há o fingimento como mentira, que se opõe
ao fingimento como resultado da articulação entre a imaginação e a emoção (esta
é a perspetiva do sujeito poético) – fingir não é mentir.
▪ As
emoções são a matéria-prima, a matéria poética que, só depois de
pensadas/imaginadas, se materializam em poesia, fruto de um trabalho
intelectual. Isto significa que estão aqui em confronto duas conceções opostas
no que diz respeito ao ato de escrever poesia: uma defende que o poeta se
confessa quando escreve; a outra defende que a poesia é um produto da
imaginação e da inteligência.
▪ Por
outro lado, reforça a ideia de que a criação poética implica apenas a emoção
intelectualizada, a que foi filtrada pela inteligência, ou seja, as
emoções/sensações são somente matéria poética “em bruto”, que devem ser, em
primeiro lugar, ficcionadas/imaginadas e só posteriormente materializadas no
poema.
▪ Quando
afirma que sente com a imaginação, está a associar duas faculdades humanas de
naturezas diferentes. As emoções que exprime no poema são o produto de um ato
racional: o de imaginar. É este o sentido da antítese presente nos versos
3 a 5: “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração”.
▪ Assim
sendo, o papel do coração e da imaginação no ato de criação poética é muito
claro: o coração é o ponto de partida para a imaginação, ou seja, o poeta parte
do que sente, mas recria o sentimento através da razão, afastando-se, desta
forma, do que inicialmente sentiu.
• 2.ª parte (2.ª estrofe)
▪ O
sujeito poético clarifica, neste passo do poema, a natureza do ofício do
poeta. Assim, este vive num mundo (“falha ou finda”) que o deixa
insatisfeito, mas tem consciência de que existe outro mundo, outra realidade
melhor (“linda”): é o mundo da poesia, de contornos idealistas.
▪ A
segunda estrofe assenta numa comparação, através da qual o sujeito
poético afirma que as emoções, sejam elas negativas – de frustração ou
insucesso (“o que falha ou finda) –, sejam positivas – os sonhos, as vivências,
os anseios, os insucessos –, ou seja, a realidade que vive e experiencia, constituem
um terraço, situado “Sobre outra cousa ainda”, mais bela, algo que considera
perfeito e que o fascina, que é a realidade imaginada, isto é, a poesia, o
produto da intelectualização dessas emoções (arte e a sua dimensão estética). O
terraço é a divisão que separa o plano da realidade (o mundo sensível) e o
plano da imaginação (mundo intelectual), é o patamar que encobre a beleza real
(existente no mundo intelectual).
▪ O
terraço, no fundo, é uma divisória entre o mundo físico e o mundo da realidade
perfeita que é a poesia. A comparação sugere que as emoções são idênticas a um
terraço, que se situa sobre uma “outra cousa” mais linda, ou seja, a escrita
poética. Esta realidade racionalizada – a intelectualização do sentimento –
encerra a beleza do ato de criação poética.
• 3.ª parte (3.ª estrofe)
▪ O
poeta escreve distanciado das emoções (“escrevo em meio / Do que não está ao pé”
– vv. 11-12), livre da dimensão sensível para encontrar a emoção estética. O
poeta trabalha, através da razão, as emoções expressas no poema e cabe ao
leitor senti-las. Escrever poesia é “imaginar”; sentir é tarefa que cabe ao
leitor.
▪ A
criação poética só se concretiza através do distanciamento da realidade emocional,
do “coração”, do “terraço” e do mundo material, e da libertação de todas as
perturbações emocionais (“Livre do meu enleio”), através do fingimento (“Sério
do que não é”).
▪ O
poeta situa-se entre (“em meio”) dois mundos – o da realidade física e o da
poesia – e deve libertar-se do que o rodeia para compor o poema. Desta forma,
pode ascender ao mundo das formas puras e belas, ou seja, ao mundo da poesia (versos
11 e 12). Ele sente essa necessidade de se afastar do que “está ao pé”, visto
que, sendo a escrita um ato artístico e solitário até, exige o recurso à
imaginação, sendo necessário afastar-se do que “está ao pé”, ou seja, das
sensações imediatas, dos sentimentos, pois estes enleiam, enganam.
▪ De
facto, para escrever poesia, o poeta deve afastar-se das aparências, das
imperfeições (“enleio”) da sua realidade e saber que este não é o mundo da
poesia, que é perfeito.
▪ No
verso final do poema (onde estão presentes a interrogação, a ironia
e a exclamação), o sujeito poético reforça a sua teoria: o
distanciamento do poeta relativamente ao coração, às emoções, no ato de
criação, pela intelectualização das sensações, introduzindo um novo
interveniente – o leitor –, a quem está reservado o papel de sentir as emoções
suscitadas pela leitura do poema.
▪ Este
verso, de certa forma, atribui um estatuto de inferioridade à figura do leitor,
comparativamente ao poeta. Por isso, ironicamente, afirma que o leitor se
limita a sentir, como se fosse incapaz de usar a razão. Este sentirá qualquer
coisa de completamente diferente do que o poeta sentiu. O poeta recusa a função
central do sentimento e da emoção no trabalho de criação poética. Por outro
lado, valorizam-se o efeito provocado no leitor e a importância da
interpretação do ato de leitura. Em suma, o poeta não sente, deixa
isso para os que leem, para quem não é poeta.
▪ Em
suma, nas palavras de Carlos Reis, “o poeta denuncia [no poema] um
erro: fingir ou mentir parecem designações sinónimas e capazes de
designar o ato de escrever poesia, mas não é assim. Trata-se de recusar
a emoção (“não uso o coração”) e de optar pela imaginação: é desta e
do fingimento que provêm a poesia e os heterónimos. A “outra coisa” (aquilo
de que a poesia fala) está distante do autor real e resulta da construção
fingida e comandada pela imaginação e não pelo sentimento; este,
quando muito, é próprio do leitor e da leitura que ele leva a cabo, mas não
interessa ao poeta, a não ser como fingimento.” (in Leituras Orientadas –
Fernando Pessoa).
l Papel
do leitor e do poeta na poesia
Ao poeta cabe criar, de forma
racional e artística, as emoções que expressará no poema, enquanto ao leitor
cabe sentir as emoções e vivê-las.
l Pessoa
verbal
▪ Em “Autopsicografia”,
é usada a 3.ª pessoa, dado que a teoria da criação poética expendida tem um
valor universal, pois aplica-se a todo e qualquer verdadeiro poeta.
▪ Em “Isto”,
é usada a 1.ª pessoa, visto que o «eu» poético se apresenta como um exemplo de
poeta, num tom confessional e intimista.
l Estrutura
formal
▪ Estrofes: 3 quintilhas
▪ Métrica: versos hexassilábicos
(Di | zem | que | fin | jo ou | min|)
▪ Rima:
- esquema rimático: ababb
- rima cruzada e
emparelhada