Português: 30/07/25

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Análise do poema "Isto"


▪ Este poema é uma espécie de esclarecimento em relação à questão do fingimento poético enunciada em “Autopsicografia”: não há mentira no ato de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do “sentir”, da racionalização.
 
▪ De facto, o poema tem todo o aspeto de ser uma resposta a possíveis reações à teoria da criação poética expressa em “Autopsicografia”. Esta ideia é confirmada pelos dois versos iniciais do poema: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo.”. O sujeito nulo indeterminado (“Dizem”) sugere que houve reações (erradas e negativas) à sua teoria da criação poética expandida naquele poema, às quais o «eu» responde com um claro e incisivo “Não”.
 
▪ De seguida, apresenta o motivo por que “fingir” não significa “mentir”.
 
 
l Título
 
▪ O título procura traduzir a ideia de que o poema constitui uma resposta, um esclarecimento a uma dúvida surgida: é “Isto” que se pretende dizer. Note-se, por outro lado, que o poema parece constituir uma realidade exterior e motivasse o distanciamento necessário para o exercício da razão.
 
 
l Assunto: tal como Autopsicografia, este poema funciona como uma espécie de arte poética, na qual o poeta expõe o seu conceito de poesia como intelectualização da emoção.
 
 
l Tema: o fingimento poético.


l Estrutura interna
 


1.ª parte (1.ª estrofe)
 
▪ Aparentemente, alguém indeterminado (“Dizem”) terá acusado o poeta de mentir: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo.”. De facto, o poema parece constituir uma resposta a supostas críticas provenientes de possíveis interpretações de “Autopsicografia”.
 
▪ No entanto, ele refuta essa acusação, afirmando que o ato de criação poética se caracteriza pela sinceridade e espontaneidade (“simplesmente”), pois sente “com a imaginação”. Quando escreve poesia, o poeta não mente; pelo contrário, é sincero: ele usa a imaginação, a razão, intelectualiza as emoções e os sentimentos e regista-os no poema através de um ato racional. Imaginar em poesia não significa mentir, faltar à verdade. Fingir é sentir com a imaginação, enquanto mentir é sentir apenas, usar unicamente o coração, os sentimentos e emoções. Na perspetiva dos outros, há o fingimento como mentira, que se opõe ao fingimento como resultado da articulação entre a imaginação e a emoção (esta é a perspetiva do sujeito poético) – fingir não é mentir.
 
▪ As emoções são a matéria-prima, a matéria poética que, só depois de pensadas/imaginadas, se materializam em poesia, fruto de um trabalho intelectual. Isto significa que estão aqui em confronto duas conceções opostas no que diz respeito ao ato de escrever poesia: uma defende que o poeta se confessa quando escreve; a outra defende que a poesia é um produto da imaginação e da inteligência.
 
▪ Por outro lado, reforça a ideia de que a criação poética implica apenas a emoção intelectualizada, a que foi filtrada pela inteligência, ou seja, as emoções/sensações são somente matéria poética “em bruto”, que devem ser, em primeiro lugar, ficcionadas/imaginadas e só posteriormente materializadas no poema.
 
▪ Quando afirma que sente com a imaginação, está a associar duas faculdades humanas de naturezas diferentes. As emoções que exprime no poema são o produto de um ato racional: o de imaginar. É este o sentido da antítese presente nos versos 3 a 5: “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração”.
 
▪ Assim sendo, o papel do coração e da imaginação no ato de criação poética é muito claro: o coração é o ponto de partida para a imaginação, ou seja, o poeta parte do que sente, mas recria o sentimento através da razão, afastando-se, desta forma, do que inicialmente sentiu.
 
 
2.ª parte (2.ª estrofe)
 
▪ O sujeito poético clarifica, neste passo do poema, a natureza do ofício do poeta. Assim, este vive num mundo (“falha ou finda”) que o deixa insatisfeito, mas tem consciência de que existe outro mundo, outra realidade melhor (“linda”): é o mundo da poesia, de contornos idealistas.
 
▪ A segunda estrofe assenta numa comparação, através da qual o sujeito poético afirma que as emoções, sejam elas negativas – de frustração ou insucesso (“o que falha ou finda) –, sejam positivas – os sonhos, as vivências, os anseios, os insucessos –, ou seja, a realidade que vive e experiencia, constituem um terraço, situado “Sobre outra cousa ainda”, mais bela, algo que considera perfeito e que o fascina, que é a realidade imaginada, isto é, a poesia, o produto da intelectualização dessas emoções (arte e a sua dimensão estética). O terraço é a divisão que separa o plano da realidade (o mundo sensível) e o plano da imaginação (mundo intelectual), é o patamar que encobre a beleza real (existente no mundo intelectual).
 
▪ O terraço, no fundo, é uma divisória entre o mundo físico e o mundo da realidade perfeita que é a poesia. A comparação sugere que as emoções são idênticas a um terraço, que se situa sobre uma “outra cousa” mais linda, ou seja, a escrita poética. Esta realidade racionalizada – a intelectualização do sentimento – encerra a beleza do ato de criação poética.
 
 
3.ª parte (3.ª estrofe)
 
▪ O poeta escreve distanciado das emoções (“escrevo em meio / Do que não está ao pé” – vv. 11-12), livre da dimensão sensível para encontrar a emoção estética. O poeta trabalha, através da razão, as emoções expressas no poema e cabe ao leitor senti-las. Escrever poesia é “imaginar”; sentir é tarefa que cabe ao leitor.
 
▪ A criação poética só se concretiza através do distanciamento da realidade emocional, do “coração”, do “terraço” e do mundo material, e da libertação de todas as perturbações emocionais (“Livre do meu enleio”), através do fingimento (“Sério do que não é”).
 
▪ O poeta situa-se entre (“em meio”) dois mundos – o da realidade física e o da poesia – e deve libertar-se do que o rodeia para compor o poema. Desta forma, pode ascender ao mundo das formas puras e belas, ou seja, ao mundo da poesia (versos 11 e 12). Ele sente essa necessidade de se afastar do que “está ao pé”, visto que, sendo a escrita um ato artístico e solitário até, exige o recurso à imaginação, sendo necessário afastar-se do que “está ao pé”, ou seja, das sensações imediatas, dos sentimentos, pois estes enleiam, enganam.
 
▪ De facto, para escrever poesia, o poeta deve afastar-se das aparências, das imperfeições (“enleio”) da sua realidade e saber que este não é o mundo da poesia, que é perfeito.
 
▪ No verso final do poema (onde estão presentes a interrogação, a ironia e a exclamação), o sujeito poético reforça a sua teoria: o distanciamento do poeta relativamente ao coração, às emoções, no ato de criação, pela intelectualização das sensações, introduzindo um novo interveniente – o leitor –, a quem está reservado o papel de sentir as emoções suscitadas pela leitura do poema.
 
▪ Este verso, de certa forma, atribui um estatuto de inferioridade à figura do leitor, comparativamente ao poeta. Por isso, ironicamente, afirma que o leitor se limita a sentir, como se fosse incapaz de usar a razão. Este sentirá qualquer coisa de completamente diferente do que o poeta sentiu. O poeta recusa a função central do sentimento e da emoção no trabalho de criação poética. Por outro lado, valorizam-se o efeito provocado no leitor e a importância da interpretação do ato de leitura. Em suma, o poeta não sente, deixa isso para os que leem, para quem não é poeta.
 
▪ Em suma, nas palavras de Carlos Reis, “o poeta denuncia [no poema] um erro: fingir ou mentir parecem designações sinónimas e capazes de designar o ato de escrever poesia, mas não é assim. Trata-se de recusar a emoção (“não uso o coração”) e de optar pela imaginação: é desta e do fingimento que provêm a poesia e os heterónimos. A “outra coisa” (aquilo de que a poesia fala) está distante do autor real e resulta da construção fingida e comandada pela imaginação e não pelo sentimento; este, quando muito, é próprio do leitor e da leitura que ele leva a cabo, mas não interessa ao poeta, a não ser como fingimento.” (in Leituras Orientadas – Fernando Pessoa).
 
 
l Papel do leitor e do poeta na poesia
 
Ao poeta cabe criar, de forma racional e artística, as emoções que expressará no poema, enquanto ao leitor cabe sentir as emoções e vivê-las.
 
 
l Pessoa verbal
 
▪ Em “Autopsicografia”, é usada a 3.ª pessoa, dado que a teoria da criação poética expendida tem um valor universal, pois aplica-se a todo e qualquer verdadeiro poeta.
 
▪ Em “Isto”, é usada a 1.ª pessoa, visto que o «eu» poético se apresenta como um exemplo de poeta, num tom confessional e intimista.
 
 
l Estrutura formal
 
▪ Estrofes: 3 quintilhas
 
▪ Métrica: versos hexassilábicos (Di | zem | que | fin | jo ou | min|)
 
▪ Rima:
- esquema rimático: ababb
- rima cruzada e emparelhada
 
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