Este
soneto e o texto “Já Bocage não sou” têm um denominador comum: o contrito
arrependimento perante a vida passada. A uma existência intensa e desregradamente
vivida, sucede uma fase de resignação e esperança cristãs. No balanço da
existência, o homem contrito, escravo dos vícios e das paixões que o arrebatam,
mostra consciência do pecado e abertura ao transcendente. Esta composição é,
precisamente, uma das várias onde o sujeito poético expõe um profundo
sentimento de religiosidade e contrição.
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Tema: o arrependimento do passado por parte do sujeito poético.
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Estrutura interna
Nos primeiros 6
versos, o sujeito poético descreve a ilusão da vida passada, utilizando para
tal o pretérito perfeito e imperfeito. Através de repetidas
frases exclamativas (vv. 3 e 6), expressa o seu arrependimento, visto
que, durante quase uma vida inteira, acreditou na sedutora demanda do prazer,
dissipando a existência em sucessivas e ruidosas paixões, que apenas lhe
trouxeram uma felicidade ilusória (vv. 5-6), representada na metáfora “inúmeros
sóis”. As ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva do homem que
se deixou aprisionar pelos prazeres.
Alterando a cadência
anterior, a acentuação sáfica introduzida no final da segunda quadra sublinha o
contraste passado/presente. Continuando a evocação do passado, o sujeito
poético retira uma conclusão vital sobre a sua existência: a busca do prazer
foi uma perdição, que conduziu a sua vida para o abismo e para o amargo sentimento
do desengano. A felicidade verdadeira não estava na miragem enganadora em que
acreditava.
▲ 2.ª
parte (vv. 12-14) – Presente (tempo da razão): súplica a Deus – acto de contrição
e arrependimento do sujeito poético:
Já no presente
(conjuntivo optativo: ganhe, saiba) e até com projecção para o futuro
(roube), com a iminência da morte, eufemisticamente referida (v.
12), o sujeito poético formula uma sentida prece. De facto, no segundo terceto,
, na reforçada invocação a Deus, expressa um manifesto e lapidar desejo
de arrependimento: “Saiba morrer o que viver não soube” (v. 14). De notar ainda
o paralelismo antitético dos dois últimos versos, expressos pelas formas
verbais (ganhar/perder e morrer/viver), a salientar o
contraste entre o passado de dissipação e o presente de arrependimento. Mas
esta afirmação contrita do arrependimento perante as faltas passadas é
formulada com uma indesmentível teatralidade, a demonstrar a vocação
dramatúrgica de Bocage.
Esta divisão do texto
remete para dois estados de espírito do sujeito poético: um, referente ao
passado e constituído por sentimentos como o entusiasmo, a paixão, o orgulho; o
outro, o presente, caracterizado pela decepção, tristeza, arrependimento e
esperança de encontrar a paz na morte.
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Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
O poema é constituído
por duas quadras e dois tercetos, num total de 14 versos (soneto) decassílabos
heróicos e sáficos (vv. 13-14). Os versos sáficos, além de um ritmo
ternário, são normalmente mais melancólicos. O ritmo ternário põe em
destaque três elementos importantes: momento/perderam/anos, morrer/viver/soube.
A rima obedece
ao esquema ABBBA/ABBA/CDC/DCD, sendo portanto interpolada e emparelhada nas
quadras e cruzada nos tercetos. Toda a rima é consoante (“insana”/”humana”),
grave ou feminina (“arrastava”/”sonhava”), rica (“insana”/”humana”) e pobre (“arrastava”/”sonhava”).
O ritmo é
predominantemente binário e sugere a correria louca do sujeito poético em busca
das paixões. As aliterações dos fonemas /s/ e /p/ sugerem, a primeira,
dissipação e, a segunda, o movimento agitado das paixões. A repetição das vogais
abertas /á, é/ sugere a sedução que as paixões exerciam sobre ele. Por
último, nota para o transporte existente nos versos 1-2, 3-4, 5-6 e 7-8.
2.
Nível morfossintático
As
formas verbais, na 1.ª parte, distribuem-se pelo pretérito perfeito,
que exprime o que o sujeito poético fez, e pelo pretérito imperfeito,
que subentende uma reflexão, marca o contraponto entre o que é o sujeito
actualmente e o que já foi. Estas formas verbais ligadas ao passado são
acompanhadas pela primeira pessoa porque estão directamente ligadas aos passos
que ele deu. A forma evaporei pressupõe a proximidade da morte, pois o
que já se evaporou já desapareceu; a forma acreditava sugere afastamento
da realidade. Na 2.ª parte, predomina o presente do conjuntivo em
tom de imperativo marcando uma ideia de futuridade, sugerindo a
formulação de um desejo, como se o sujeito poético quisesse dar uma lição
àqueles que levam uma vida como a dele. Estas formas verbais de presente/futuro
aparecem na terceira pessoa porque exprimem o arrependimento no momento da
reflexão; o sujeito poético evita referir a primeira pessoa por causa do seu
desalento; é uma espécie de aniquilamento do EU para que obtenha a salvação.
Os
nomes (tropel, ruído, prazeres, sócios) e os adjectivos (insana,
cego, mísero, falaz, escrava, sedenta) apontam para um certo desgaste do
sujeito poético, derivado da sua vida de conflitos.
As
interjeições sugerem decepção, enquanto os pronomes pessoais e possessivos
exprimem o tom confessional do poema.
3.
Nível semântico
As exclamações
traduzem a decepção e o desengano do sujeito poético. A apóstrofe do
verso 9 identifica a causa dos seus males: os prazeres, enquanto a do verso 12
exprime o desejo/lição que pretende formular: um desejo de arrependimento e de
morrer com dignidade.
Por outro lado, o
poema assenta em duas antíteses. A primeira assenta no contraste
luz/sombra, sendo que a luz simboliza a vida, neste caso vivida ao sabor das
paixões, enquanto a sombra está ligada à morte, pois, no fim da vida,
reflectindo sobre a mesma, dá-se conta de que essa luz que o seduziu era falsa.
Daí o desejo da morte. A segunda antítese decorre desta primeira: vida/morte, e
atinge a máxima intensidade no verso 14: “Saiba morrer o que viver não soube.”,
onde claramente afirma o desejo de morrer com dignidade, já que em vida,
moralmente, se enganou e desviou do caminho recto.
A repetição “Ah!,
cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava” (v. 3) enfatiza o estado de alma do
sujeito poético, a falsidade e o engano em que vivia, enquanto a metáfora
“inúmeros sóis” (v. 5) representa a felicidade ilusória que as paixões lhe
trouxeram, ou seja, as ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva
do homem que se deixou aprisionar pelos prazeres. A iminência da morte é eufemisticamente
referida no verso 12: “Quando a morte à luz me roube...”.
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Características
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Conclusão
Estamos
perante um soneto egocêntrico, centrado em torno do poeta, onde se verifica uma
dicotomia entre passado e presente, que permite evidenciar a temática do
arrependimento, perante o tropel de paixões e o seu orgulho, que parecem ser os
seus maiores pecados e dos quais o poeta pretende redimir-se à beira da morte,
ao desejar uma boa morte. Daí falar-se em tom de contrição e arrependimento. As
suas faltas foram cometidas insanamente, chegando ao ponto de querer
divinizar-se, ao querer ser imortal.
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