Português: Análise da cantiga "A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda"

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Análise da cantiga "A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda"

    Esta cantiga satírica de mestria, da autoria de Aires Peres Vuitorom, é constituída por 42 versos, inicialmente ditados em versos curtos de sete sílabas, de acordo com a disposição dos manuscritos, no entanto Carolina Michaelis deu-lhe a forma de versos longos de quinze sílabas, mantendo, porém, um espaço ao meio do verso, correspondente à cesura, editando o poema duas colunas.
    A rubrica da composição poética classifica-a como uma cantiga de maldizer e contextualiza-a na época em que ocorreu a guerra civil (provavelmente foi composta na sua fase final) que opôs os irmãos D. Sancho II e D. Afonso, ou seja, cerca de 1247, ou talvez um pouco antes, provavelmente no círculo do Infante Afonso de Castela (o futuro Afonso X), que interveio no conflito em defesa de D. Sancho, tendo vindo em seu socorro, entrando com as suas tropas pela Beira. Concretamente, a rubrica identifica o objeto da sátira: um violento libelo contra os alcaides que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso II de Portugal, e a defesa do alcaide de Celorico, que se manteve fiel a D. Sancho II.
    O el-rei Dom Afonso referido na rubrica é o futuro Afonso III, segundo filho de Afonso II de Portugal e de D. Urraca de Castela, nascido entre 1211 e 1217. Como o legítimo herdeiro do trono era o seu irmão, D. Sancho, aquele decidiu viajar para França e colocar-se ao serviço de Luís IX (filho de Branca de Castela, sua tia) em 1234. Aí, Afonso destacou-se no campo militar, nomeadamente na batalha de Saintes, contra o rei inglês Henrique III. Ainda em França, casou com uma obre chamada Matilde, a viúva herdeira do condado de Bolonha (Boulogne-sur-Mer). Graças ao prestígio alcançado na corte francesa, para além da sua posição na linha sucessória, D. Afonso foi abordado por uma delegação de clérigos e nobres portugueses, após o seu irmão, o rei D. Sancho II, ter sido declarado rex inutilis, pelo papa Inocêncio IV, em 1245, tornando-se, nessa altura, «curador e defensor do reino», após jurar restituir a ordem pública e o respeito pelos direitos eclesiásticos. Deste modo, regressou a Portugal em 126 para travar uma guerra civil contra os partidários do irmão, que durou até 1248. A extensão do conflito ficou a dever-se ao facto de D. Sancho II manter apoios fortes entre setores da nobreza, bem como o do Infante Afonso de Castela.
    A guerra terminou definitivamente após a morte de D. Sancho II, em Toledo, onde se encontrava exilado, tendo Afonso III assumido o trono. Para pacificar a nação, depois da guerra civil a ter dividido de alguma forma, o novo rei liderou uma expedição contra o Algarve, concluindo a conquista do reino a Sul com a tomada de Faro em 1249, situação quês espoletará um conflito com Afonso X, que defendia ter direitos na região em virtude dos avanços castelhanos a oriente do rio Guadiana. A contenda terminou de forma favorável a Portugal, por meio da celebração de um tratado entre Afonso III e Afonso X, o qual previa o casamento do monarca português com Beatriz, filha bastarda do rei castelhano. Curiosamente, no momento em que foi celebrado o acordo, o soberano português ainda era casado com Matilde de Bolonha, facto que o Bolonhês terá descartado por causa dos seus interesses políticos, mas que só ficou solucionado alguns anos mais tarde, depois da morte da condessa. O reinado foi marcado por um reequilíbrio do reino e por algumas reformas administrativas, algumas das quais provocaram atritos com a alta nobreza. Morreu em, 1279, tendo-lhe sucedido D. Dinis, o seu primogénito.
    Exilado em Castela, um nobre português chamado Airas Vuitorom discordava do rumo político que Portugal tinha seguido após a deposição de D. Sancho II. De facto, o trovador fez parte de um grupo de nobres portugueses que se tinham exilado em Castela. Nesta cantiga, dirige-se, com fina ironia, contra os alcaides da Beira que haviam entregado os seus castelos ao Conde Bolonha, mais tarde D. Afonso III. Os nobres que se contavam entre os seus apoiantes, nomeadamente os alcaides, tinham-se rebelado conscientemente contra D. Sancho II, motivados unicamente pelos seus interesses. A rapidez com que Afonso III se assenhoreou desses castelos evidencia a cooperação dos alcaides, que não ofereceram qualquer resistência, até porque não era possível tomar um castelo de pedra a não ser através de um cerco prolongado. Toda a argumentação do trovador centra-se em mostrar que os alcaides traidores tinham quebrado os seus compromissos de fidelidade vassálica, traindo, assim, o ideal cavaleiresco da época, de nobreza. Deste modo, o trovador estrutura o poema na contraposição de modelos e contramodelos de vassalidade. Os contramodelos correspondem a Soeiro Bezerra e aos demais alcaides traidores, sendo cada um referido numa estrofe, indiretamente por meio da menção ao castelo que foi entregue (Leiria, Monsanto, etc.), ou nominalmente (Martins Dias, Airas Soga, etc.).
    Os dois versos iniciais do mote, profundamente irónicos, oferecem problemas de edição e interpretação. O primeiro faz referência à “lealdade da Bezerra”, isto é, ao alcaide Sueiro Bezerra e à sua família, que detinha a tenência de muitos dos castelos da Beira e que constituem as figuras centrais da cantiga, ou seja, os principais traidores. De acordo com esta interpretação, portanto, a expressão alude à linhagem dos Bezerras, por ser essa uma das famílias acusadas de traição que, neste caso, será mais a falta dela. Por outro lado, estará o trovador a enfatizar as nuances antroponímicas geradas pelo apelido Bezerra, como animal de caráter rebelde, arisco e simultaneamente inconsequente? Ou estará Airas Vuitorom a jogar com a figura bíblica da bezerra de ouro, símbolo da ganância? Por seu turno, José D’Assunção Barros (in A cantiga como armadura de guerra…) associa o nome «bezerra», no segundo sentido, à bezerra enquanto animal que simboliza a cobardia. E como ler a expressão “pela Beira muito anda”? Por um lado, estamos perante um topónimo que constitui uma referência geográfica – a Beira (atualmente, é uma região portuguesa do centro nordeste interior, cuja capital é Viseu; na época, porém, o termo designaria mais especificamente a zona portuguesa de fronteira com Leão e Castela) – à zona do país onde se sitiavam os castelos de resistência a tomar pelo Conde. Por outro lado, será sinónimo de «andar à beira de», «andar nos limites», ou seja, na marginalidade vassálica. Seja qual for a interpretação, a Beira era, de facto, a região de Portugal onde ocorreram as traições vassálicas.
    O segundo verso abre com o uso irónico do plural «nós»: “bem é que a mantenhamos». Na segunda parte do verso, o trovador introduz uma outra ideia central da composição poética: a crítica à interferência da Igreja, do Papado, em assuntos temporais: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Antes de prosseguir a análise, convém recordar que a edição e fixação destes dois versos levanta problemas, o que tem dado azo a leituras muito diversas. Neste texto, é seguida a edição presente no sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Porém, existem outras: “À lealdade da Bezerra que pela Beira muito anda / ben é que a nostr’adenhamos, pois que no-lo Papa manda”; “A lealdade da Bezerra pela Beira muito anda: / bem é que a nostra vendamos, pois que no-lo Papa manda”.
    Regressando à análise da cantiga, o nome maiusculado «Papa», que surge no final do verso 2, refere-se a Inocêncio IV, o qual, em 1245, assinou a bula de deposição de D. Sancho II, intitulada Grandi non immerito, que o declarava rex inutilis. Com efeito, na guerra civil iniciada em 1245, a Igreja fora uma das responsáveis diretas pela ascensão de Afonso III ao trono, visto que, na esteira das determinações do Concílio de Trento, era permitido ao poder eclesiástico interferir no poder temporal, daí Inocêncio III ter nomeado o Conde de Bolonha «curador de Portugal». Os alcaides traidores que entregaram os seus castelos ao Bolonhês argumentavam precisamente que preferiam ser fiéis à Igreja do que ao rei deposto por receio de excomunhão, como o trovador explicita na oitava estrofe: “melhor é ser traidor, que morrer excomungado”. Por outro lado, esses alcaides traidores defendiam-se das acusações, aludindo à própria fundação de Portugal. De facto, aquando da constituição do reino, D. Afonso Henriques, para assegurar, com o beneplácito da Igreja, a autonomia, legitimidade e independência de Portugal, recém-formado, tinha prestado homenagem vassálica (homenagem lígia) ao papa Inocêncio II em 1143, acabando por ser reconhecido como rei português pelo papa Alexandre III em 1179, através da bula Manifestis probatum. Seguindo esta linha de raciocínio, o papa era o «senhor lígio» do reino, pelo que todos os portugueses deviam à Igreja uma fidelidade maior do que ao próprio rei. Sendo assim, aceitar a determinação do papa acerca de D. Sancho II e do Conde Bolonha não constituía qualquer traição ao código feudo-vassálico; pelo contrário, tratava-se de o respeitar no contexto da homenagem lígia. O argumento enunciado nas linhas anteriores está implícito nalguns versos da cantiga: “pois que no-lo Papa manda” – v. 1; “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa”.
    No terceiro verso, o trovador nomeia diretamente Sueiro Bezerra, acusando-o de ser traidor (“que tort’é”) por “vender Monsanto”, uma metáfora que denuncia a entrega do castelo que lhe tinha sido confiado em Monsanto a D. Afonso III sem qualquer resistência. Sueiro Bezerra era filho de Gonçalo Viegas de Ribadouro e de uma senhora chamada Teresa, o que fazia dele descendente de uma das maiores linhagens portucalenses. Tinha quatro irmãos, entre eles, Gonçalo Bezerra, que D. Pedro define como “mui boo cavaleiro”. Sueiro Bezerra é citado nas Inquirições de 1258 e 1288, enquanto detentor de propriedades ligadas à quintã que possuía no termo de Tarouca. O verso está escrito em latim (é uma citação das palavras que, no Evangelho de S. Mateus, Jesus disse a Pedro): “Quen tu legares en terra erit ligatum in celo” (“O que tu ligares na terra será ligado no céu”). No entanto, na cantiga, essas palavras constituem uma alusão irónica aos laços que uniam um vassalo ao seu senhor. A afirmação de Sueiro Bezerra, em discurso direto, forma o argumento por si apresentado para negar que a entrega do castelo em Monsanto corresponda a um ato de traição: “por en diz ca nom é torto de vender hom’o castelo”.
    O uso de latim – por vezes macarrónico – na cantiga serve os propósitos bem definidos do trovador. De facto, a inserção da sentença latina dos versículos bíblicos, presente em todas as coplas, constitui a forma como a Igreja legitimaria os atos dos alcaides e a assunção do novo poder em conformidade com as determinações do Concílio de Lyon, que determinava a obediência ao «nobre conde de Bolonha». Os argumentos esgrimidos pela Igreja foram cuidadosamente moldados às suas intenções e assentes em premissas viciadas, o que os tornaria inválidos. Por outro lado, convém ter presente que o latim era a língua usada na escrita de textos eclesiásticos, pelo que o seu uso constituía uma forma de ironizar a Igreja e de questionar o monopólio da mesma quanto ao sagrado, além de dar nota da sua própria erudição. Além disso, o uso do discurso direto em latim isola a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor dos atos de traição. Note-se, ainda, que toda a cantiga é um desfile irónico de situações e personagens, que se sucedem umas às outras, na defesa maliciosa das opções dos alcaides e das deliberações pontifícias sobre e entrega do governo ao futuro Afonso III. Dessa galeria, constam, como veremos, o Papa – personagem invocada no texto quatro vezes –, um arcebispo, um bispo e dois prelados, bem como os alcaides de Monsanto, Marialva, Leiria, Faria, Santarém, Covilhã, Sortelha e Sintra.
    O verso 7 (que forma uma anáfora com o anterior: “Por en”) refere a entrega de outro castelo, o de Marialva, situado na Mêda, distrito da Guarda. Como argumento de defesa contra a acusação de traição, surge nova citação latina, em discurso direto, dita pelo arcebispo, certamente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, uma das figuras centrais no processo de deposição de D. Sancho II: “ – Estote fortes in bello et pugnate cum serpente.”, isto é, “permanece firme na guerra e luta com a serpente” (a serpente é a metáfora do Mal). Ora, estas palavras dizem exatamente o contrário daquilo que o alcaide teria feito. A ironia prossegue no verso 10, pois é a partir dessa citação em latim que o alcaide nega ter cometido um ato de traição e ser mentiroso: "por en diz que nom é torto quem faz traiçom e mente”.
    O visado seguinte é o alcaide de Leiria, Martim Fernandes de Urgeses, anterior alcaide da Guarda. Ele era filho de Fernão Peres de Urgeses e de Teresa Martins de Riba de Vizela e descendia de uma pequena linhagem ligada por laços de vassalagem aos Riba de Vizela e à coroa por vínculos de criação. Foi casado, em primeiras núpcias, em 1244, com Chamoa Gomes, filha do alcaide de Celorico, Gomes Peres da Ribeira, e, mais tarde, com Estevaninha Martins de Ataíde. Terá falecido na segunda metade da década de 1260. Aires Peres Vuitorom e o conde D. Pedro, no seu Nobiliário, apresentam do alcaide do castelo de Leiria a imagem de um traidor à causa do monarca deposto, no entanto a questão da traição pode não ser tão linear, dado que D. Afonso III foi obrigado a investir militarmente contra o castelo e terá sido ainda obrigado a entregar contrapartidas ao alcaide, que terá vivido numa Leiria assolada por conflitos dentro e fora das muralhas da cidade. Pois bem, Martim Fernandes de Urgeses considera que fez o certo ao entregar o castelo a D. Afonso III (“O que vendeu Leirea muito tem que fez dereito”) argumentando que cumpriu as ordens do papa (argumento da autoridade papal, que se sobrepunha à do próprio rei), confirmados pelo “Esleito”, isto é, o “eleito”, uma referência ao arcebispo de Braga, eleito e ainda não confirmado, ou ao novo bispo de Coimbra, que substituíra o anterior, D. Tibúrcio, que desempenhou um papel fulcral na deposição de D. Sancho II e faleceu em 1246. Segue-se, no verso 13, nova citação em latim, em discurso direto: “– Super istud caput meum et super ista mea capa”, isto é, “Por cima desta minha cabeça e por cima desta minha capa”, uma referência ao papa (a «cabeça» da Igreja) e ao arcebispo eleito (a quem pertence a capa). José Manuel Bustamante considera que este verso alude à cerimónia do «impositivo manuum”m ou seja, “imposição de mãos”, comum a vários sacramentos e, sobretudo, à Confirmação e à Penitência, que envolve a colocação das mãos de uma pessoa (um sacerdote, um ministro, etc.) sobre outra com um propósito espiritual ou ritualístico que simbolizava a transmissão de autoridade espiritual ou a bênção  ou cura de enfermos. Em sua, a argumentação que justifica a entrega do castelo e nega as acusações de tração e de mentira é a autoridade eclesiástica, quer a papal quer a do bispo: “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa” (v. 14). Desta forma, em estrofes e versos sucessivos, o trovador critica a interferência da Igreja nas questões temporais.
    A estrofe seguinte denuncia o alcaide de Faria, que «vendeu» o castelo ao Conde de Bolonha para «remiir seus pecados, / se mais tevesse mais daria.». Em seu auxílio, são citadas, em latim, as palavras de dois prelados, que, tal como nas coblas anteriores, apresentam a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor do(s) ato(s) de traição: “ – Tu autem, Dominem, dimitte aquel que se confonde”, ou seja, “Tu, Senhor, perdoa aquele que se desgraça.”
    A crítica abate-se, na cobla seguinte, sobre o alcaide da Covilhã, Martim Dias, que entregou o seu castelo ao futuro Afonso III, tal como todos os anteriores, e o de Sortelha, Pero Dias, uma fortificação situada no concelho do Sabugal, distrito da Guarda. Em seu socorro, surgiram as palavras, em latim, do próprio futuro rei, D. Afonso III: “– Centuplum accipiatis (de mão do Padre Santo)”, ou seja, “Recebereis o cêntuplo”, «repetindo» as ditas por Jesus Cristo aos seus discípulos. Ora, esta citação (“Centuplum accipiatis”) é um poderoso argumento de autoridade, pois saiu da boca da divindade. Quem ousará questioná-la? Na sequência, o trovador transcreve, também em discurso direto, a fala de Fernam Dias, que entregou igualmente o seu castelo, concretamente o de Monsanto, e que se mostra satisfeito pela recompensa anunciada no verso 21 (“Centuplum accipiatis”), considerando que a merece exatamente por ter cometido o ato de traição: “– Bem m’éste, porque oferi Monsanto.” (v. 22).
    Por sua vez, Roi Bezerro (filho de Sueiro Bezerra) ofereceu o castelo de Trancoso (“Ofereceu Trancos’, ao Conde, Roi Bezerro”). Desta vez, a sentença latina é proferida pelo pai do alcaide, o próprio Sueiro Bezerra, e é dita “per sacar seu filho d’erro”. Note-se que esta expressão parece contradizer o resto da cantiga, já que o progenitor só poderia apoiar o gesto do filho de entregar o castelo ao Conde de Bolonha. Esta aparente contradição pode ser explicada de diferentes formas: a expressão significa que o filho deveria, antes de o fazer, ter consultado o «padre» (no duplo sentido, o pai / um padre, como ironicamente afirma no verso seguinte); a leitura do verso anterior não é correta e corresponderá a algo do género: “[E nom] ofereceu”, já que, de facto, parecem faltar duas sílabas métricas a esse verso; a expressão quer dizer livrar o filho do erro de ser acusado de traição. Segue-se, então, a citação parcialmente em latim, proferida por Sueiro Bezerro, para isentar o filho do erro: “– Non potest filia mea sine patre sua facere quidquam: / salvos son os traedores, pois bem isopados ficam!”, quer dizer, “Não pode a minha filha fazer nada sem o seu pai” (João, 5, 19). Observe-se a ironia do trovador ao feminizar voluntariamente o filho, chamando-lhe filha, para aludir à cobardia de Roi / Rui Bezerro. Nas palavras de Rodrigues Lapa, “usando muito de propósito a forma feminina, quer Vuitorom significar e flagelar a cobardia mulherenga do filho (= filha) de Soeiro Bezerra.” (LAPA, 1981, p. 131). No verso 26, o progenitor prossegue a defesa do filho, declarando que os traidores alcançam a salvação, pois são benzidos com o hissope (instrumento usado para aspergir água benta).
    No caso do alcaide do castelo de Sintra, a sua traição é apresentada como o cumprimento do código de cavalaria, através de um vocabulário feudo-vassálico: “O que ofereceu Sintra fez come bom cavaleiro”. Nestes momentos da cantiga e da cada estrofe de uso do discurso indireto, é apresentada a argumentação falaciosa dos traidores a D. Sancho II, não em latim ou latim macarrónico, mas em galego-português. O vocabulário que remete para as relações de vassalagem entre senhores e suseranos pretende justificar a traição vassálica, enquanto o vocabulário devocional para “justificar o pecado”. Note-se que estes dois discursos, o da indignidade e falsa humildade dos alcaides e o da “pomposa” hipocrisia eclesiástica, andam de mãos dadas, pois o primeiro cita o segundo em sua própria defesa e justificação. No caso vertente do alcaide de Sintra, a sua argumentação baseia-se nas palavras do legado papal, provavelmente o arcebispo de Braga, um dos nomeados pelo papa (o outro foi D. Tibúrcio) para a execução da bula de deposição: “– Sagitte potentis acute”, isto é, “Flechas potentes e afiadas” (citação retirada do Salmo 129, 4, em que David refere as língiuas venenosas: “Sagittae acutae cum carbonibes desolationes”). Pode interpretar-se este passo da seguinte forma: o legado disse um versículo dos Salmos ao alcaide e as suas palavras foram “flechas potentes e afiadas”, ou seja, o legado falou-lhe com a sua língua venenosa. O verso 30 clarifica o motivo pelo qual os alcaides agiram de forma traiçoeira: eles argumentavam que era preferível permanecer fiel à Igreja do que ao rei deposto, justificando a sua traição com o receio da excomunhão – “melhor é de ser traedor ca morrer excomungado”.
    Quando o Conde de Bolonha chegou a Celorico da Beira, encontrou a oposição do respetivo alcaide (“Pachec’entom o cuitelo tirou”), Fernão Rodrigues Pacheco, que se recusou a entregar o castelo. De facto, de acordo com a Crónica de 1419, ele só o entregou após ter tomado conhecimento da morte de D. Sancho II em Toledo. O referido texto informa-nos também acerca de uma lenda sobre a tenaz resistência do alcaide: enquanto a fome flagelava os sitiados, uma águia deixou cair uma truta no castelo, e ele, acompanhando-a com bom pão e bom vinho, mandou entrega-la ao Conde, de forma a demonstrar-lhe que poderia aguentar o cerco. É possível que, após a morte do rei, tenha participado na conquista de Sevilha (1247 – 1248), visto que o seu nome consta do Repartimiento da cidade. Em 1251, vamos encontra-los na corte de Afonso III e, em 1258, em Celorico, como prestameiro do rei. Foi casado com Constança Afonso de Cambra, sobrinha de Martim Anes de Riba de Vizela, matrimónio que confirma a sua ligação a esta poderosa linhagem e explica o facto de ser alcaide de Celorico da Beira, uma vez que os Riba de Vizela estavam fortemente implantados na região da Beira Alta. Por outro lado, a sua posição na guerra civil entre os dois irmãos compreender-se-á se tivermos em conta a aliança aos Ribas de Vizela, fiéis apoiantes de D. Sancho II.
    Voltando à cantiga, depois da sequência de alcaides que se «venderam» e entregaram os castelos, o trovador dá conta da chegada do Conde de Bolonha a Celorico da Beira, onde depara com um alcaide que, num gesto aguerrido de resistência, empunha o seu cutelo e, ignorando a ordem da Igreja transmitida pelas palavras do bispo, que o censura e lhe ordena que enfie a espada na bainha (“– Mitte gladium in vagina”), mimetizando as palavras que Cristo dirigiu a Pedro (João, 18, 1), que queria cortar a orelha de um legionário, quando da sua prisão (não é de descurar que a frase assume também um sentido claramente obsceno), enfrenta quem lhe pretende tomar o poder, proclamando: “– Alhur, Conde, peede u vos digam: Crescas!”, isto é, “Ide a outro lugar, Conde, e espeidorrai-vos com medo onde vos chamem à luta” (“Crescas” será, provavelmente, uma interjeição medieval que traduziria um grito de guerra). O caso do alcaide de Celorico da Beira constitui uma exceção, visto que foi o único da lista que mostrou lealdade a D. Sancho II, num mar de traidores, falsos e hipócritas. Assim, o trovador, através da figura de Fernão Rodrigues Pacheco, enaltece todos aqueles que se mantiveram fiéis a D. Sancho II, o que equivale a dizer, a todos os que se mantiveram fiéis aos vínculos de vassalagem e que resistiram indómitos às investidas do Conde e dos seus seguidores. O que está em causa é um certo ideal de nobreza, bem como a deterioração da rede de relações, de compromissos e códigos que norteavam a sociedade medieval e que uma nova nobreza, movida pelos seus interesses pessoais, desejosa de protagonismo e supremacia social, procurava conquistar o seu espaço e as suas ambições, escudando-se nas deliberações do Concílio de Lyon.
    A estrofe seguinte refere outra figura, a de Dom Airas Soga, sobre a qual pouco ou nada se sabe, o qual teria maldito “a ua velha noutro dia”. Trata-se de um verso de difícil interpretação, pois desconhece-se o seu contexto, não obstante continuar a relacionar-se com a não-rendição d alcaide de Celorico. Respondeu-lhe Pero Soares (tratar-se-á de Pero Soares de Briteiros, primo direito de Rui Gomes de Briteiros, trovador português nascido em 1190 e falecido em 1249) com um versículo em latim macarrónico (“um vesso per clerezia”): “– Non vetula bombatricom scandit confusio ficum”, ou seja, “a velha vergonha [pudor] não monta as hemorroides bombásticas” [ruidosas]. José Pedro Machado relaciona este verso com a imagem da figueira (“ficum”) estéril dos evangelhos, enquanto Bustamante sugere como hipótese remota que contenha uma referência ao castelo de Figueira de Castelo Rodrigo.
    Em suma, entre os versos 31 e 38, o alcaide de Celorico da Beira simboliza o ideal de nobreza por causa da sua atitude de se conservar leal a D. Sancho II e não entregar o castelo ao Conde de Bolonha. No último verso referido, é contraposto o que ele representa – o modelo de cavaleiro – e os contramodelos, simbolizados por Sueiro Bezerra: “Non foi Soeiro Bezerra alcaide de Celorico”.
    Na última estrofe, o trovador diz que os alcaides traidores, que entregaram os seus castelos, encontraram a salvação, pois foi-lhes mostrado por escrito que agiram corretamente. Note-se que há aqui uma mudança, visto que, nas estrofes anteriores, estes textos eram falados, ao passo que agora assumem a forma escrita. E o que diz esta última citação? “Por cima do fogo eterno e do poder divino” constituirá, eventualmente, uma referência indireta à bula papal que determinou a deposição de D. Sancho II, usando, não o texto concreto da bula, mas o sentido geral dos textos do Ordo excommunicandi e do Ordo da reconciliandum apostatam, schismaticum vel hereticum, tal como aparece no Pontificale Romanum. Em sua, “salvo é quem trae castelo a preito que o isopem, ou seja, os traidores que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha foram todos salvos porque abençoados com água benta. Dito de outra forma, estamos na presença de um libelo acusatório contra a quebra dos compromissos de fidelidade vassálica, contra a traição e a cobardia, ainda que a coberto da resolução do Papa. Por outro lado, assenta na dicotomia entre a traição e a excomunhão e, nesta derradeira estrofe, o trovador denuncia, sarcástica e ironicamente, a posição da Igreja no conflito por causa da absolvição geral de todos aqueles que deram os castelos.
    Assim, de acordo com os autores do sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/, esta cantiga constitui um “violento manifesto contra os que permitiram a deposição de D. Sancho II, de quem Vuitorom foi um ardente defensor: por um lado, os alcaides dos castelos referidos ao longo da composição (particularmente da Beira), que, como indica a rubrica, os entregaram ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso III, quebrando assim, para o trovador, o juramento de lealdade para com o seu legítimo senhor e rei; por outro lado, e muito claramente, os altos dignitários da Igreja que imediatamente legitimavam a traição, quando não a incitavam (e que desempenharam, de facto, um importante papel no conflito).”. Além disso, a cantiga não só ataca diretamente os partidários de D. Afonso III, como também, indiretamente, o novo rei de Portugal, questionando a sua legitimidade ao trono. Todavia, curiosamente, esta composição poética poderia ser usada pelo monarca para favorecer o seu projeto de centralização do poder, já que ela critica um grupo de nobres por traírem o seu rei (D. Sancho II) e, além disso, fixa normas de fidelidade vassálica importante para todos os soberanos que se viam confrontados com insurreições da nobreza.
    Por outro lado, a cantiga aborda outra questão que estava na ordem do dia: o embate entre o poder temporal e o poder eclesiástico, com o qual tiveram de se confrontar, por exemplo, D. Dinis ou D. Afonso X de Castela e que se consubstanciaram em conflitos com o papa ou entre o projeto centralizador e a autonomia da Igreja local. É isto que justifica a postura de Afonso X, o Sábio, de fomentar a criação e a difusão das cantigas como “A lealdade da Bezerra”. Este escárnio político prenhe de ironia envileve os que teceream a deposição de D. Sancho II, nomeadamente, os alcaides da Beira que entregaram os castelos ao Conde de Bolonha, e o clero que procurava legitimar, ou até promover, a traição através de versículos da Bíblia, citados uns, veladamente sugeridos outros. Note-se, para a construção imagética que é feota dos alcaides e dos nobres partidários do Bolonhês, o uso reiterado dos verbos «vender», «oferecer» e «dar» (8 ocorrências em 10 estrofes), que servem para o trovador os acusar de traição, quer pela via da venda, suborno ou entrega aparentemente desinteressada dos castelos, violando os deveres de vassalagem a quem lhos entregou – D. Sancho II. Ou seja, ele desmascara-os, denunciando o facto de terem, conscientemente, assumido essa postura motivados somente pela defesa dos seus interesses pessoais perante um novo poder, isto é, uma posição de rebeldia para com o legítimo rei.

Bibliografia:
BARROS, J.A., “A cantiga como armadura de guerra…”.
LAPA, M.R., Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1981.
MATTOSO, J., Fragmentos de uma Composição Medieval. Lisboa: Estampa, 1987.

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