Português: Análise do poema "Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga”, de Bocage

domingo, 18 de agosto de 2024

Análise do poema "Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga”, de Bocage

n Assunto: evocação da noite e de uma paisagem horrenda, consolo do sujeito poético.
 
 
n Tema: a obsessão da morte.
 
 
n Estrutura interna

1.ª parte (2 quadras) – O sujeito poético dirige-se à noite (personificada – vê, ouve, sente):

            O primeiro verso assume grande importância dentro da mensagem, pois revela a presença de uma entidade abstracta (“Noite”) que adquire uma força concreta e humana, tendo papel de destaque dentro das relações do sujeito (“amiga”) – note-se a personificação – e fazendo a maiúscula inicial adivinhar o seu protagonismo. Conduz a uma identificação da noite com a morte – note-se a metáfora – o que deixa antever uma situação de sofrimento e desespero por parte do sujeito poético, pela invocação de duas entidades ligadas à escuridão, à solidão, à fuga; sugere o estado de pessimismo, dramatismo em que o EU se encontra. No desenrolar do poema, conclui-se ser a noite o momento mais ansiado pelo sujeito lírico, em quem deposita a esperança de encontrar algum consolo, alguma compreensão – daí o lamento através da interjeição Oh, que imprime um tom de tristeza, de lamento, de desabafo ao poema, encontrando-se reiterada no verso 9.
            O sujeito, num apelo que dirige à Noite, sua confidente e amiga, pede-lhe protecção, conforto e amparo para suportar o seu sofrimento (“Dá-lhes [aos desgostos] pio agasalho no teu manto”) na sua companhia, pois a noite, pelo sossego e possibilidade de fuga que permite, é ideal para conviver com alguém que não quer espalhar a sua dor, mas que quer a paz e a tranquilidade necessárias à introspecção, à reflexão, ao desabafo (com ninguém).


















            Esta relação positiva entre o sujeito poético e a Noite deve-se ao estado de espírito daquele: desiludido e desesperado. Neste estado, só a Noite constitui o ambiente que se coaduna com a sua sensibilidade. Porém, a nível humano, o grande responsável pelo estado de espírito do sujeito lírico é a mulher, que não lhe corresponde amorosamente.
 
            A Noite assume papel de grande destaque, o que até a própria maiúscula inicial faz supor. Trata-se da confidente e amiga do sujeito poético [“Noite amiga”, v. 1; “(...) testemunha do meu pranto”, v. 3; “De meus desgostos secretária antiga”, v. 4; “(...) manda Amor, que a ti somente os diga”, v. 5], em cuja companhia ele deseja estar (“Por cuja escuridão suspiro há tanto!”, v. 2). A Noite, por ser a ausência de luz, representa o medo, o abandono, a solidão; por ser o período oposto ao dia, simboliza o descanso, o sossego, é o momento dedicado aos sonhos, pesadelos, à reflexão, à introspecção; sendo ainda sinónimo de trevas, corresponde à ausência de conhecimento, à ignorância; conotando-a com os sentimentos, vêmo-la relacionada com sofrimento, dor, angústia, mágoa, bem diferente do entusiasmo, alegria, conforto, prazer que o dia proporciona.
            Assim, conclui-se que o facto de o sujeito poético ansiar por tal momento se deve à sua vontade de estar só, isolado e afastado daquela que perturba o seu estado de espírito [“(...) a cruel que a delirar me obriga”, v. 8], à necessidade de encontrar a tranquilidade e a acalmia próprias da Noite, propícias à introspecção, à intenção de pretender reflectir e analisar os seus sentimentos [“(...) meu pranto”, v. 3; “(...) meus desgostos”, v. 4] e de desejar conviver com elementos nocturnos (“Fantasmas vagos, mochos piadores”, v. 10) que, pelo seu aspecto assustador e sombrio, não convivem com elementos diurnos, o que os torna bons receptores para quem não deseja ver os seus sentimentos divulgados (v. 3).

 
n Estado de espírito do sujeito poético
 
            O sujeito poético mostra-se abalado, angustiado, desesperado, procurando a companhia de realidades (“Noite”, fantasmas”, “mochos”) que, tal como ele, vivem ou correspondem à penumbra, às trevas; que, tal como ele, se refugiam no seu próprio ser, sem procurarem/desejarem convívio, relação com outros seres. O sujeito poético procura encontrar maior conforto nestes do que na realidade do dia, da luz, da vida, que para si é como um pesadelo (“Inimigos como eu da claridade!”, v. 11) devido a ressentimentos com base no amor que sente/sentiu por uma mulher que o faz sofrer, sem que sequer sinta culpa [“(...) enquanto / Dorme a cruel que a delirar me obriga”, v. 8]. A sua angústia ocorre em simultâneo com a tranquilidade, despreocupação da amada (“delirar” vs. “dorme”). Note-se a ambiguidade existente no verbo dormir que é sinónimo de sossego para um e desassossego para outro, surgindo reforçado pela expressão “me obriga” – não é voluntário, não é pacífico, não é indolor. Note-se, ainda, que a forma verbal dorme pode referir-se também à própria morte ou ausência da amada.
            Por outro lado, dos últimos dois versos do poema ressalta um certo narcisismo e masoquismo do sujeito poético, que manifesta o desejo de se encontrar no meio de fantasmas e mochos apesar de ter consciência do carácter horrível e mórbido que lhes é inerente: “Quero a vossa medonha sociedade” (v. 13). Na base deste masoquismo está o desejo de se flagelar, talvez numa tentativa de exteriorizar a sua revolta, a sua angústia ou até de acabar com o seu sofrimento (“Quero fartar meu coração de horrores”, v. 14). O sujeito poético deseja castigar o seu coração, provavelmente por se ter deixado envolver numa relação que o desiludiu e arruinou psicologicamente ou que abruptamente foi quebrada.
            De referir, por último, que este estado de espírito do sujeito lírico tem raízes no passado. Ele anseia há muito por se encontrar na companhia das trevas, tal como explicita no verso 2: “Por cuja escuridão suspiro há tanto!”, pois vive um estado de dor, de sofrimento há já algum tempo, como se deduz pelos versos 4 e 7: “De meus desgostos secretária antiga!”, “Ouve-os, como costumas, ouve...”.

 
n Visão da Natureza – “locus horrendus® presença da noite como retrato da morte e associada a um cenário de horror: escuridão, fantasmas, mochos piadores, cortesãos da escuridade, horrores.
 
 
n Características




n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico

            Trata-se de um poema composto por duas quadras e dois tercetos, que se denomina soneto. Os versos são isométricos, sendo todos decassílabos heróicos, excepto os versos 4, 8 e 14, que são sáficos. O esquema rimático é o seguinte: ABBA/ABBA/CDC/DCD, havendo rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos; consoante (“amiga”/”antiga”), grave (“tanto”/”pranto”), pobre (“amiga”/”antiga”) e rica (“tanto”/”pranto”). Por outro lado, as palavras que rimam partilham o seu sentido ou por semelhança ou por oposição. A rima não é apenas uma questão de ouvido, gera sentidos. Assim, a rima entre “amiga” e “antiga” serve para salientar a relação existente entre o sujeito poético e a Noite: uma relação prolongada no tempo. A rima entre “tanto” e “pranto” serve igualmente para realçar o prolongado sofrimento do sujeito.
            Várias são as aliterações: do fonema /m/ (em todo o poema) a sugerir tristeza e angústia, do fonema /t/, do fonema /s/ (“... de meus desgostos secretária...”). Outro elemento importante é a alternância entre vogais abertas e vogais fechadas (ó, á, e, ô, an, ão) que pode sugerir, por um lado, a vontade de conviver com a Noite e, por outro, o desespero.
            O ritmo do soneto é dominantemente binário, quer porque alguns versos estão partidos em dois hemistíquios, quer porque há dois acentos dominantes na maior parte dos versos (decassílabos heróicos). O predomínio do ritmo binário está de acordo com a presença de duas “personagens”: o sujeito poético e a Noite. É mais lento nas quadras e mais rápido nos tercetos, de acordo com a intensidade dos apelos, menos forte nas primeiras e mais fortes nos segundos.
            Por último, realce para o transporte existente nos versos 7 e 8.


2. Nível morfossintáctico

            Existe no poema grande quantidade de vocabulário de teor negativo: morte, Noite, escuridão, pranto, desgostos, cruel, delirar, escuridade, fantasmas, mochos, piadores, inimigos, clamores, medonha, horrores. Estes vocábulos, de que fazem parte muitos nomes abstractos, referem-se e reflectem o estado de espírito do sujeito poético, na medida em que, estando este numa situação de sofrimento e solidão, recorre a conceitos de cariz negativo que se aproximam da forma como se sente.
            Dentre os adjectivos, destacam-se amiga (caracterizando a Noite como a única que pode compreender e consolar os desgostos do sujeito) e cruel, que se refere à mulher amada, apontando-a como a causadora do estado sentimental do sujeito poético, porque não lhe corresponde amorosamente, e servindo de contraste entre a sua tranquilidade a dormir e o seu desespero.
            Das funções da linguagem, predominam a poética (selecção de vocabulário; conotação de certos vocábulos – secretária, agasalho, manto, cortesãos da escuridade; originalidade de algumas palavras – escuridade; recursos estilísticos; rima; métrica; sonoridade de alguns sons), a expressiva (o estado emocional do sujeito poético expresso através duma linguagem subjectiva e dum discurso de 1.ª pessoa do singular e de frases de tipo exclamativo) e a apelativa (o sujeito lírico apela à Noite para que o ampare e aos elementos da Noite, pedindo-lhes que o deixem fazer parte do seu grupo para com ele exteriorizar a sua mágoa – estes apelos são feitos através dum discurso apelativo, cujas formas verbais estão no modo imperativo; o discurso é de 2.ª pessoa, visto que é direccionado para o destinatário das palavras proferidas).
            A nível verbal, predominam o presente do indicativo e o imperativo. O presente traduz o estado de espírito (que se arrasta desde “há tanto” e se mantém) e vontade presentes, assim como as determinações de outrem sobre o sujeito poético (manda, costumas, dorme, obriga). O imperativo representa o apelo/pedido desesperado do sujeito no sentido de obter protecção, companhia junto das realidades nocturnas. O imperativo existe em função do presente do indicativo, sendo a consequência e a causa, respectivamente; o primeiro pretende atenuar a dor do segundo, ou seja, o facto de o sujeito se encontrar deprimido e desesperado faz com que se refugie na noite, para minimizar ou, pelo menos, não fazer avolumar a sua angústia.
            Os pronomes pessoais de primeira pessoa traduzem o egotismo romântico e os de segunda referem o destinatário do pretenso diálogo encetado pelo sujeito poético.
            A interjeição oh, repetida três vezes, expressa a dor e o desespero do sujeito que o levam a apelar à Morte e à Noite.
            Sendo um soneto formalmente clássico, não é de estranhar a presença do hipérbato: “De meus desgostos secretária antiga!”.
            Nos versos 13 e 14 temos a repetição anafórica da forma verbal Quero, que determina a real intenção do sujeito poético que, num discurso eu/vós, apela para que o deixem tornar-se um elemento da noite, reforçando-se, assim, o seu carácter de fraqueza e falta de persistência ao deixar-se vencer pelos desgostos sofridos. Deste modo, o lado sentimental e emocional do sujeito – desilusão, mágoa, desgosto, dor, sofrimento, angústia, derrota – influencia o seu lado racional, conferindo-lhe o pessimismo e dramatismo evidenciados, ou seja, o coração sobrepõe-se à razão.


3. Nível semântico

            As exclamações traduzem o estado de alma do sujeito poético, carregado de dor, ansiedade, desespero, consideração/estima e respeito (v. 4) pela Noite, bem como o apelo que dirige aos seus elementos (vv. 9-11). As exclamações são reforçadas pelo uso das interjeições, que conferem um misto de apelo e lamento às palavras do sujeito poético; das personificações e das apóstrofes da Morte e a Noite, as destinatárias do discurso do sujeito, a quem este se dirige e por cuja companhia e compreensão “suspira há tanto”, afinal a solução para os seus males de amor. Ambas as figuras de estilo são retomadas no verso 9 com idêntico significado. Ao bom estilo clássico, encontramos no verso 5 a personificação do Amor e, nos tercetos, a dos fantasmas e dos mochos, que se tornam também destinatários do sujeito poético.
            Logo no primeiro verso do poema encontramos a metáfora da Noite como retrato da Morte. Outras metáforas encontram-se nos versos 3 (“Calada testemunha de meu pranto...”), 4 (“De meus desgostos secretária antiga!”), 6 (“... pio agasalho no teu manto...”).
            A comparação do verso 11 (“... como eu...”) aponta os mochos como inimigos da luz, assim como o sujeito poético no estado em que se encontra.
            Na última estrofe, sobretudo no último verso (“Quero fartar meu coração de horrores”), encontramos a hipérbole, a traduzir o desejo masoquista do sujeito a fim de aplacar o seu desespero, desejando uma Natureza que reflicta e sirva de enquadramento ao seu estado de alma. A estes recursos se acrescenta a enumeração dos versos 9 e 10 (“... cortesãos da escuridade / Fantasmas vagos, mochos piadores...”). Por último, realce para a gradação na expressão do estado de espírito do sujeito poético.


n O Amor em Bocage

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