Português: Análise do poema "Já Bocage não sou", de Bocage

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Análise do poema "Já Bocage não sou", de Bocage

    Segundo a tradição, este soneto terá sido composto no momento da agonia final de Bocage. De qualquer forma, seja ou não verdade esta suposição, não restam grandes dúvidas acerca da fase da vida em que o poeta escrever o soneto: fim da vida, aproximação da morte [“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento.”; “(...) a língua quase fria”].
 
 
n Assunto: reconhecimento da ausência de mérito/valor dos seus textos (em prosa e em verso) e o arrependimento perante a vida inútil que viveu.

 
n Tema: arrependimento/autocrítica do sujeito poético relativamente à sua existência.
 
 
n Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-4) – Mostrando-se consciente da proximidade da morte, o sujeito poético apresenta-se desalentado e decepcionado perante si próprio, desejando que o seu sofrimento e remorso lhe atenuem o castigo de que irá ser vítima. É como que a síntese das restantes estrofes.
    Repare-se na expressão egotista (uso continuado da 1.ª pessoa), aqui reforçada pela presença do nome próprio do poeta. Nesta estrofe e, de um modo geral, dentro das restantes, as formas verbais partem do presente para o passado e, depois, para o futuro, demarcando assim três momentos: o arrependimento de agora sucede à ilusão de ontem, e justifica o desejo de uma morte a pensar na eternidade. O passado e o presente são interpretados e projectados no futuro: depois da morte, tudo acabará, e do engenho poético (estro) que o celebrizou nada restará, a não ser pó e vento (vv. 1-2). Neste contexto, o sujeito poético formula um desejo estruturado com base numa metáfora, numa hipérbole e num oximoro: “O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.” (vv. 3-4), ou seja, o tormento do sujeito poético torna leve a terra da sepultura, quer dizer, o seu desespero será atenuado após a morte – ou com a morte – uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – O sujeito poético desenvolve o seu pensamento, revela uma grande capacidade de auto-análise e autocrítica, acentua o seu arrependimento e a vontade de remediar (se possível) os maus efeitos produzidos/causados pelos seus textos.
    O sujeito poético, na 2.ª quadra, apercebe-se de que a sua inspiração poética o fez cometer erros, de que fez uma vã figura, reconhecendo o uso negativo que fez da inspiração poética e a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. É isso que traduz a apóstrofe e a exclamação “Musa!”, ou seja, uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste numa espécie de pedido de desculpas ou comiseração. É a função morigeradora da morte.
    No 1.º terceto surge o arrependimento do sujeito poético e a vontade de poder alterar o passado. Ou seja, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), o sujeito poético deseja alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novos (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11).
    Na derradeira estrofe, o sujeito poético autonomeia-se “Outro Aretino” (Aretino – 1492-1556 – foi um poeta satírico italiano de vida boémia) e sente remorsos por ter produzido poesias satíricas, imorais. Daí que se dirija aos leitores (“gente ímpia”, v. 13), a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia, ou seja, ele confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, pede que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretendendo não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja os seus textos igualmente, e que não perdure a imagem desencantada e mesmo deplorável daquele que foi “Outro Aretino” (v. 12).
    Em suma, o sujeito poético encontra-se moribundo, prestes a morrer (vv. 1-4) e foi a partir desta tomada de consciência do momento que atravessava que efectuou a retrospectiva da sua vida, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), desejando alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novas (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11), mas que, quando é usada de forma imoral (“Outro Aretino fui...”, v. 12), faz sentir remorsos a quem a ela recorre. É, pois, na fase terminal da sua vida que o sujeito de enunciação envida esforços no sentido de não deixar rancor nas pessoas, preferindo o esquecimento, a destruição dos seus versos (v. 14) à recordação negativa.

 
n Estado de espírito do sujeito poético
 
    Neste soneto, o sujeito de enunciação tece uma autocrítica, sobressaindo a auto-recriminação e o desconforto sentidos pelo EU lírico relativamente ao desrespeito manifestado perante outrem (“Eu aos Céus ultrajei!”, v. 3; “A santidade / Manchei!...”, vv. 12-13); a humildade e a consciência de que a sua existência poética teve um efeito nulo, inútil por obedecer a impulsos irracionais (“... vã figura / Em prosa e verso fez meu louco intento”, vv. 5-6); o remorso e a tentativa de contribuir com a sua experiência para modificar comportamentos semelhantes ao seu (vv. 10-11); a resignação, a submissão perante o público, a modéstia ao propor o esquecimento (v. 14), a anulação da sua pessoa, tal como fora exposto logo no verso 1: “Já Bocage não sou”.
    Outros sentimentos do sujeito são a desilusão do momento presente, o arrependimento dos seus actos passados, a falta de segurança e confiança, o desânimo, o desalento e o remorso por não ter sido mais lúcido, mais racional.
 
 
n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico

    O poema é composto por duas quadras e dois tercetos (soneto), cujo esquema rimático é ABBA/ABBBA/CDC/DCD, verificando-se rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Todas as rimas são graves e consoantes; nos versos 5 e 8, 9 e 11 é rica (“figura”/”pura”), nos restantes é pobre (“escura”/”dura”). O transporte existe nos versos 1-2, 3-4, 5-6, 9-10, 12-13. A métrica é o verso decassílabo.
 
 
2. Nível morfossintáctico
 
    Existe grande abundância de vocábulos de cariz negativo no poema: cova, escura, desfeito, ultrajei, tormento, dura, , louco, fria, manchei, ímpia, rasga. Esta abundância contribui para evidenciar a autoconsciência que o sujeito poético tem de si e dos trabalhos que produziu, o temor que sente relativamente ao futuro – castigo divino – e o apelo que dirige aos leitores no sentido de destruírem os seus textos e, dessa forma, fazer desaparecer os erros/malefícios provocados pelos seus textos.
    A partir da análise das pessoas verbais e dos pronomes pessoais e determinantes na 1.ª pessoa gramatical (meu, vv. 2, 3, 6; me, vv. 4, 9, 13; meus, v. 14), conclui-se que o sujeito poético elaborou uma auto-análise, na medida em que, além dos pronomes e determinantes já referidos, predomina a 1.ª pessoa verbal do singular (6 ocorrências) em frases onde se refere a si próprio, mencionando também aspectos exteriores à sua vida, mas que são parte integrante da sua personalidade e actividades (6 ocorrências). Quanto aos tempos verbais, alternam o presente, o passado e o futuro: o sujeito poético mostra-se consciente quanto à insensatez, irracionalidade e efeitos prejudiciais causados pelos seus versos (vv. 3, 6-9, 12-13) – passado; assume a culpa, os seus erros, arrependendo-se (vv. 5, 9) – presente; reconhece o fim do seu trabalho (v. 2), teme o castigo (v. 4) – futuro. Por outro lado, o uso do imperativo tem como finalidade alterar o que for possível no futuro: a crença na utopia da poesia a que deseja pôr fim (v. 10) e a sua imagem negativa que deseja ver apagada (v. 14), através da destruição dos seus textos.
    Tratando-se de um poema com o qual se pretende fazer uma caracterização, neste caso, a autocaracterização do sujeito poético, é natural a variedade de adjectivos que contribuem e reforçam essa caracterização. A sua colocação nas frases pode tornar o efeito mais objectivo (pospostos) ou mais subjectivo (antepostos). No texto verifica-se a anteposição dos adjectivos nas afirmações em que o sujeito poético se refere a si, à sua imagem (v. 5), à sua audácia (v. 6), à sua tentativa de alertar os outros (v. 10); a posposição dos adjectivos surge quando o sujeito poético faz referências mais objectivas e a aspectos exteriores a si, à sua sepultura (vv. 1 e 4), à razão (v. 8), à ilusão prematura dos novos poetas (v. 11) e aos leitores (v. 14).
    No que diz respeito à pontuação, o predomínio das reticências põe em relevo o carácter hesitante do sujeito poético, ao constatar a desilusão do momento presente (1.ª estrofe), o arrependimento dos seus actos (2.ª e 4.ª estrofes), denotando-se no sujeito poético a falta de segurança e de confiança, características de quem cometeu actos impróprios, injustos e os assume perante os outros. As exclamações reforçam a função das reticências, na medida em que transmitem o estado de espírito negativos do sujeito lírico: desconforto e desânimo em relação a si próprio, remorso por não ter sido mais lúcido e racional.
    A interjeição Oh (v. 13) contribui para acentuar a emotividade das palavras transmitidas, salientando-se a pena, o lamento, a desilusão relativamente ao seu passado.
    Ã convulsão interior do sujeito poético é transmitida ainda com o auxílio de outros procedimentos formais e estilísticos: a bipartição de alguns versos (1, 3, 12 e 14), responsável pela criação de uma pausa no seu interior, justificando o encavalgamento da segunda parte com o verso seguinte; a ênfase final no sentimento de fé numa vida transcendente, que é expressa com a repetição da forma do verbo crer: se antes o tomaram como modelo de poeta, devem agora recebê-lo como paradigma do arrependimento. Note-se ainda como a palavra ímpia(v. 13), acentuada como grava (impia), rima com fria e corria (vv. 9 e 11), através do processo de mudança de acento (diástole).
    O hipérbato do verso 1 (“Já Bocage não sou!...”) reforça o desânimo e a desilusão do sujeito poético ao anular a sua própria pessoa, deixando evidente o que fora em tempos – note-se a colocação do nome no interior de um segmento.

 
3. Nível semântico
 
    O eufemismo e o hipérbato dos versos 1 e 2 (“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento...”) denotam o carácter moribundo do sujeito poético (“cova escura”), o qual vai contribuir para o tom confessional do poema. Esta sugestão de morte aparece noutra sugestão eufemística presente no verso 9: “... a língua quase fria...”.
    A metáfora e o oximoro dos versos 3 e 4 (“O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.”) traduzem um desejo do sujeito lírico, ou seja, que o seu tormento torne leve a terra da sepultura, que o seu desespero seja atenuado com e após a morte, uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência. A impossibilidade de concretização deste pedido acentua o seu estado de espírito de tristeza, mágoa e dor.
    A apóstrofe “Musa!” (v. 7) expressa uma tentativa de estabelecer contacto com aquela divindade que permite a existência de inspiração poética, em forma de desculpabilização pelo mau uso que fez daquele dom. Quer dizer, com esta apóstrofe o sujeito poético dirige-se, neste momento da sua reflexão e auto-análise, à própria poesia de que se serviu para as suas loucuras e imoralidades, lamentando-se do uso negativo que fez da sua inspiração poética e reconhecendo a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. O poema trata de uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste como que num pedido de desculpas ou comiseração (note-se cumulativamente o emprego da personificação).
    A partir da metáfora do verso 8 (“Se um raio de razão seguisse, pura!”), equipara-se a razão ao Sol por ser aquilo que pode esclarecer a mente do sujeito lírico e torná-la lúcida e sensata, tal como o Sol ilumina os dias e o espaço que habitamos.
    Na expressão “... a língua quase fria / Brade em alto pregão à mocidade...” (vv. 9-10), toma-se a parte do corpo que tem a capacidade de comunicar – “língua” – pelo todo a que pertence – o sujeito poético – como forma de transmitir a intenção deste em expressar aos outros a sua experiência – estamos perante uma sinédoque. Por outro lado, o desespero do sujeito é tão grande que conta, nos momentos que antecedem a sua morte, poder modificar as atitudes daqueles que ouvem/lêem, gritando e alertando poetas novos para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram, mas que, quando é usada de forma imoral, faz sentir remorsos a quem a ela recorre.
    Por meio da apóstrofe do verso 13 (“... gente ímpia...”) o sujeito poético dirige-se aos leitores, a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia. Confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, sugere que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretende não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja também os seus textos e que não perdure a imagem desencantada e deplorável daquele que foi “Outro Aretino”.
    A metáfora dos versos 12 e 13 (“A santidade / Manchei...”) salienta o efeito negativo ou pejorativo das palavras/poesia do sujeito poético, contrastando com a pureza e idoneidade conferida pelo primeiro termo.
 
 
n Características

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