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domingo, 15 de novembro de 2020

Análise de "Como morreu quen ben"

 
Assunto: o sujeito poético compara-se àquele(s) que enlouqueceu(eram) ou morreu(eram) por não ser(em) correspondido(s) pela mulher amada.
                Assim como morreu infeliz quem nunca foi correspondido pela mulher amada e viu acontecer o que mais receou – a amada cair nos braços de outro –, assim também morre o sujeito poético pelo mesmo motivo.
 
 
Tema: o amor não correspondido / a coita de amor / a morte por amor.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
Na primeira estrofe, o sujeito poético compara-se a um homem indefinido (isto é, não identificado), que morreu porque nunca foi amado – “nunca bem / ouve” (vv. 1-2) – e porque viu a mulher amada fazer algo de que ele tinha medo – “viu quanto receou / dela” (vv. 3-4).
 
A segunda estrofe repete as ideias da cobla anterior: esse homem morreu porque amou uma mulher que nunca lhe correspondeu esse amor – “foi amar / quem lhe nunca quis bem fazer” (vv. 6-7) – e porque Deus o fez ver algo que o deixou triste – “lhe fez Deus ver / de que foi morto com pesar” (vv. 8-9).
 
Na terceira estrofe, o sujeito poético enumera os efeitos da coita de amor: a loucura – “ensandeceu” (v. 11) –, a perda da alegria e do sono (insónia) – “nom foi ledo nem dormiu” (v. 13) –, o sofrimento por algo que viu – “com grande pesar que viu” (v. 12), além da morte, ideia presente em todas as estrofes por intermédio da comparação.
 
Na última estrofe, o «eu» lírico identifica a causa concreta da coita de amor: o outro homem amou uma dama que nunca o amou ‑ “dona que lhe nunca fez bem” (v. 17) – e viu-a com alguém que não a merecia ‑ “e quem a viu levar a quem /a nom valia, nem a val” (vv. 17-18). E tal como este indivíduo morreu de amor, também o sujeito poético morre, pelas mesmas razões. Esta noção é transmitida através de uma gradação (“ensandeceu” “non foi ledo nem dormiu” “morreu”), que mostra os efeitos progressivos da «coita de amor», da indiferença da mulher amada, ou seja, evidencia, de forma gradativa, o sofrimento do sujeito poético.
A estrofe é a sequência lógica da terceira. De facto, esta terminou com o sujeito poético aludindo à morte de amor e a quarta revela a verdadeira razão da morte: a mulher deixou-se levar por quem não a merecia. É o clímax da cantiga.
 
 
Comparação
 
A cantiga assenta numa comparação que é estabelecida entre o sujeito poético e «alguém» não identificado no poema que morreu infeliz porque nunca foi amado pela mulher por quem se apaixonou. De acordo com a última cobla, essa mulher ter-se-á mesmo envolvido amorosamente com outra pessoa que não a merecia.
O sujeito poético não se queixa diretamente da sua senhora, antes recorre a esta comparação, ao exemplo de um homem indeterminado / indefinido («quem»), que teria morrido por não ser correspondido. Desta forma, evita criticar a sua amada pela não correspondência amorosa, respeitando, assim, o código do amor cortês.
 
 
Coita de amor
 
A coita de amor do sujeito poético está bem presente na cantiga. Ela consiste no estado de sofrimento do «eu», motivado pelo facto de o seu amor não ser correspondido, o que leva à expressão do seu lamento, e que pode conduzir à loucura e à morte.
Estas noções são evidenciadas através da repetição das formas verbais do verbo «morrer» - «morreu», «foi morto» (referentes à pessoa que sofre) e «moir’eu» (referente ao sujeito poético -, repetição essa que acentua a tragicidade das consequências do sofrimento amoroso; da repetição do vocábulo «pesar» («com pesar», «gram pesar») e das formulações «quem nunca bem ouve», «quem lhe nunca quis bem fazer», «dona que lhe nunca fez bem», que realçam o amor não correspondido e a queixa constante em relação à mulher amada.
Neste contexto, assume igualmente grande relevância o refrão. Este é constituído por uma apóstrofe dirigida à amada («mia senhor»), por uma interjeição expressiva de dor («Ai») e pelo segundo termo da comparação presente em cada estrofe («assi moir’eu»), que sugere que a morte é um destino fatal. No seu conjunto, o refrão reforça a forma persistente como o sujeito se lamenta, numa espécie de obsessão com a dor e o sofrimento que o atormentam, isto é, totalmente consumido pelo sofrimento amoroso.
 
 
Refrão
. segundo elemento da comparação que é estabelecida em cada estrofe (“Como morreu…” – “assi moir’eu”);
. contribui para reiterar o sentimento do sujeito poético;
. reforça o sofrimento sentido pelo sujeito lírico;
. intensifica a obsessão do «eu» pela sua amada;
. anuncia a morte por amor do «eu».
 
 
Personagens
. o sujeito poético («eu»)
. a dama / a mulher amada pelo sujeito poético («mia senhor»)
. o rival do sujeito poético
. um indivíduo indefinido («quem»), estranho à relação amorosa do «eu» lírico, com o qual este se compara
 
 
Retrato do sujeito poético
está apaixonado pela sua “senhor”, que é casada (foi levada por quem a não merecia, ou seja, presumivelmente o marido);
▪ sofre imenso por causa da indiferença / da não correspondência amorosa da mulher;
o seu sofrimento e dor vão num crescendo dramático, que atinge o desespero e desemboca na loucura e na morte por amor;
vive uma espécie de obsessão relativamente à “senhor”;
deixa antever o seu ciúme ao constatar que a mulher amada foi levada por outro homem;
a loucura motivada pelo amor faz com que o sujeito poético deixe de viver a sua vida e se torne uma espécie de espectador da mesma, sugerindo assim a tal morte psicológica.
 
 
Retrato da «senhor»
 
A caracterização da «senhor» é feita indiretamente. De facto, as suas características deduzem-se a partir das ações da dama invocada na pequena história do homem com o qual o sujeito poético se compara.
Assim, ela:
▪ não é identificável (em obediência ao código do amor cortês), sendo nomeada apenas pela senha «mia senhor»;
é amada pelo sujeito poético (“rem que mais amou” ‑ v. 2);
é indiferente ao sujeito poético e à sua paixão, não lhe correspondendo e nunca lhe fazendo bem (“lhe nunca fez bem” ‑ v. 17);
escolheu um homem que não a merecia [“(…) a viu levar a quem / a nom valia, nen’a val” ‑ vv. 18-19];
por isto, é a causa do sofrimento, da loucura e da morte (por amor) do sujeito poético;
representa um duplo papel na cantiga: é a amada do sujeito poético e, em simultâneo, a esposa do seu marido.
 
 
Género
 
Este poema é uma cantiga de amor:
. o sujeito poético é masculino;
. expressa a sua coita de amor;
. a atitude de vassalagem amorosa;
. a hiperbolização dos sentimentos: a loucura e a morte de amor.
 
 
Relação com a cantiga de amigo
 
Esta cantiga apresenta traços que encontramos também na cantiga de amigo:
. a presença do refrão;
. o paralelismo de construção de estrofe para estrofe:
- “quen nunca bem / ouve da ren que mais amou” (1.ª estrofe);
- “foi amar / quen lhe nunca quis bem fazer” (2.ª estrofe);
- “amou tal / dona que lhe nunca fez bem” (4.ª estrofe);
. o paralelismo semântico: as estrofes, embora existindo uma certa progressão temática, apresentam ideias muito semelhantes (vide desenvolvimento do tema);
. o desenvolvimento da mesma comparação nas estrofes 1, 2 e 4, de conteúdo equivalente.
Por outro lado, esta cantiga de amor diferencia-se de muitas das outras por não conter nenhum elogio explícito às qualidades da «senhor».
 
 
Forma
 
Esta é uma cantiga de amor de refrão, com versos predominantemente octossilábicos, distribuídos por quatro quadras com refrão monóstico, formando quintilhas.
Relativamente à rima, esta é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema rimático abbac / deedc / cffcc / gaagc.
 

Análise de "Todalas cousas eu vejo partir"

 
Assunto: a donzela constata que tudo muda – os homens, os tempos, etc. –, geralmente para pior, exceto o coração do amigo por ela.
 
 
Tema: a mudança.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Tese: tudo muda (para pior), exceto o coração do amigo de a amar.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Desenvolvimento da tese – a mudança no homem:
. de terra
. de estatuto socioeconómico
. de amor
. a constância do amor do amigo
 
3.ª parte (3.ª estrofe) – Confirmação da tese – tudo muda:
. o próprio tempo
. o homem
. a natureza
. exceto o amor do amigo
 

 Desenvolvimento do tema
 
Nesta cantiga de amigo, João Airas de Santiago desenvolve o tema de que tudo passa e só o amor permanece.
De facto, na composição aborda-se a mudança, sendo clara a oposição entre a instabilidade do mundo e a segurança do amor que existe entre a donzela e o seu amigo: tudo muda, à exceção do amor que ele sente por si.
Deste modo, a cantiga estrutura-se da seguinte forma: nos primeiros 4 versos de cada estrofe, a donzela afirma que tudo muda no mundo e, nos dois últimos (incluindo o refrão monóstico), exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada cobla) [lítotes]: o coração do seu amigo nunca deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçon partir / do meu amigo de mi querer bem.”).
Na primeira estrofe, a partir da observação do mundo, a donzela conclui que tudo muda e nada se mantém igual (“Todalas coisas eu vejo partir / do mud’em como soíam seer” – vv. 1-2 –, ou seja, ela observa que certas coisas e situações deixam de existir como antes existiam, coisas a que estava habituada) e as pessoas deixam de praticar o bem, deduzindo-se que passaram a fazer o mal (vv. 3-4). Esta constatação provoca o espanto do «eu» (“tal tempo vos vem!” – v. 4) relativamente ao tempo (presente) que vive, que pode ser comparado ao passado. De facto, a exclamação do verso 4 sugere que o sujeito poético se espanta por tudo mudar e, principalmente, pelo facto de a mudança se operar em sentido negativo: as pessoas já não fazem o “bem” – como era costume –, daí o espanto. A exceção a esta mudança constante é o amor do amigo por si: ao contrário do mundo e das pessoas em geral, o coração (metonímia que traduz a origem do amor) do seu amigo não deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçom partir / do meu amigo de mi querer bem” – vv. 5-6). Ou seja, o seu amigo não mudará, não deixará de a amar. Note-se que a palavra «coração» é repetida no penúltimo verso de cada estrofe (dobre), repetição que acentua a importância do sentimento amoroso. Este contraste é marcado pela conjunção adversativa «mais» (= «mas»). Ao nível da linguagem, há a destacar o uso da primeira pessoa, que parece centrar o poema numa questão de interesse pessoal: a constância do amor do amigo por si.
A segunda estrofe abre com a referência à mudança no Homem (isto é, no ser humano, em geral): o coração dos homens afasta-se das “cousas que ama” (v. 8), o homem muda da “terra ond’é” (v. 9) e “d’u grande prol tem” (v. 10). Neste passo, o sujeito poético apresenta o (mau) exemplo dos indivíduos que abandonam e se afastam de um lugar onde (“d’u”) vivem com benefícios e vantagens (“gran prol”) – verso 10. Este lugar de onde se parte pode até ser o que é referido no verso anterior (“e parte-s’home da terra ond’é” –, ou seja, a terra onde se vive. Neste passo, está implícita uma comparação antitética entre o comportamento do “home [que] part’o coraçon / das cousas que ama” e o do amigo, que continua a “querer bem” à donzela. Em resumo: ainda que (“pero que”) outros homens deixem de amar, o seu amigo não deverá imitá-los. Nesta cobla, a antítese é marcada pela locução concessiva “pero que” (“ainda que”).
Em suma: o homem afasta-se das “cousas que ama” e fica a saber-se, pela anáfora dos versos 9 e 10, que essas «cousas» são a “terra ond’é” e “a “prol” que possui.
Na última estrofe, nota-se a repetição do verso 1 no verso 13 apenas com a mudança do vocábulo «partir» para o seu sinónimo «mudar», acentuando a ideia de mudança que rodei a dozela, mudança que é global (“tempos”, “o al”, “a gente”, “ventos” e “tod’outra ren”), mas na qual não se inclui o coração do seu amigo. Esta oposição é marcada, mais uma vez, através da conjunção adversativa «mas». O uso da anadiplose «mudar» / «mudam-s” chama a atenção para o fator “mudança”, reforçado pela anáfora dos versos 14 a 16 e pelos polissíndetos. Por outro lado, a rima interna entre «tempos» e «ventos» traduz exatamente a ideia de transitoriedade.
Em suma, de acordo com a terceira cobla, a mudança atinge “al” (tudo) e “tod’outra ren” (todas as coisas).
 
 
Refrão
 
O refrão (juntamente com o penúltimo de cada estrofe) demonstram, por um lado, o otimismo e a alegria da donzela, uma confiança no amor fiel do seu amigo. Através do verso repetido, ela afirma e reafirma uma situação que não deve alterar-se: nada deve mudar e o sentimento amoroso há de permanecer.
Por outro lado, a insistência que o refrão estabelece tem um significado próprio. De facto, à primeira vista, ele diz e repete que o amigo deve manter o coração firme. No entanto, podemos questionar: aquela insistência não quererá dizer também que há alguma insegurança por parte da mulher? Será o coração do amigo capaz de resistir à tendência que em tudo se observa para a mudança?
 

Dimensão moral e filosófica da cantiga
 
O uso da 1.ª pessoa logo no verso 1 permite concluir que o poema se centra numa questão de interesse pessoal: a lealdade do amigo. No entanto, a segunda estrofe alarga a reflexão do «eu» a considerações de caráter filosófico. Por exemplo, o «home» de que aí se fala não corresponde a nenhum homem em particular, antes evoca a condição humana em geral.
Nessa reflexão está implícita a comparação entre o presente e o passado, concluindo-se que as coisas já não são “como soíam seer”. Esta comparação introduz na cantiga uma tensão dramática, isto é, um conflito entre o que antes era e o que agora é, que se acentua quando se confronta o comportamento do homem que “part’o coraçon / das cousas que ama” com o que é esperado do amigo da donzela.
Assim, se pela forma estamos perante uma cantiga de amigo, pelo tema e pelo propósito ela aproxima-se muito do chamado sirventês moral, que é uma composição de origem provençal que se ocupa, em termos gerais, da crise de valores morais ou religiosos, em estreita conexão com a decadência de costumes sociais.
Segundo Carlos Reis (Leituras Orientadas, p. 66), «o “partir do mundo” que motiva a cantiga pode ser lido como uma imagem que lembra a ameaça do fim de todas as coisas, um fim que a mudança vai preparando. Ao mesmo tempo, [este poema] anuncia alguma poesia que veio depois: o soneto de Camões que começa “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o emocionante poema “Mignonne, allons voir si la rose”, do poeta francês Ronsard, que nos diz da rápida mudança da juventude para a velhice; e, muito mais próximo de nós, o “Soneto da fidelidade”, de Vinicius de Moraes que, em tom de paródia, fala de um sentimento amoroso “que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. 

sábado, 14 de novembro de 2020

Análise dos capítulos I a III de Madame Bovary

 Os primeiros capítulos do romance definem o cenário – classe média provinciana – e apresentam as características fundamentais das personagens Emma e Charles. O fracasso de Charles ao reprovar nos exames médicos e asua incapacidade de compreender as palavras de Emma ilustram a sua estupidez e complacência, e a sua consciência dos minúsculos detalhes da física da jovem revelam que ele pensa nela mais como um objeto do que como uma pessoa. Por sua vez, Emma possui uma natureza nada prática, romântica e melancólica – ela deseja um casamento à meia-noite, iluminado por tochas – que, mesmo neste estágio inicial, parece estar em desacordo com a realidade da sua vida.
Madame Bovary não começa a sua narrativa focada na personagem que lhe dá nome; pelo contrário, ao longo dos primeiros capítulos, Flaubert atrasa a introdução da heroína do romance, estratégia que cria expectativa no leitor, que aguarda um vislumbre que seja da protagonista. É quase como se Flaubert nos fizesse penetrar no romance através de várias camadas de perspetiva antes de podermos observar os acontecimentos através dos olhos de Emma. A primeira cena do livro é contada na primeira pessoa do plural. “Nós” somos colegas de classe de Charles, observando a sua chegada atrapalhada à nova escola. De seguida, essa voz narrativa desaparece em segundo plano e Flaubert começa a usar a terceira pessoa, restringindo a maioria das suas observações ao ponto de vista de Charles, a chamada focalização interna. A princípio, Charles parece ser o protagonista da história, enquanto Emma aparenta ser uma personagem algo periférica, ficando a saber factos sobre ela apenas através das perceções de outras personagens. Charles acha-a encantadora, enquanto Heloísa ouviu dizer que ela finge ser afetada.
O romance apresenta duas Madames Bovary antes de Emma: a mãe de Charles e a sua primeira esposa. As relações entre essas mulheres e Charles prefiguram as suas relações com a “Madame Bovary” do título. Tanto a sua mãe dominadora quanto a sua primeira esposa o tornam um homem que espera ser controlado. Madames Bovary é diferente de Emma. Considerando que, como o próprio Charles, as duas primeiras Madames Bovary são mesquinhas e sem imaginação, Emma anseia por uma vida grandiosa e romântica. Nesse sentido, ela tem dificuldade em ocupar o lugar da mãe de Charles ou da sua falecida esposa, enquanto as suas qualidades estão além dos poderes de compreensão do rapaz.

Resumo do capítulo III de Madame Bovary

 Após a morte de Heloísa, Charles torna-se amigo de Rouault e visita a sua fazenda com regularidade, passando o tempo com Emma, observando-a a trabalhar ou conversando com ela sobre o seu tédio no campo. Embora não dê atenção ao significado das suas palavras, Charles logo se apaixona por Emma, e Rouault, um viciado no álcool que administra mal a sua fazenda, concorda em dar sua filha em casamento a esse médico dócil, gentil e bem-educado. Depois do consentimento, Rouault instrui Charles a esperar do lado de fora enquanto ele vai até a casa para perguntar a Emma se aceita o casamento. Posteriormente, informa Charles da concordância da filha com um sinal pré-arranjado, uma veneziana batendo contra a parede. Antes do matrimónio, o casal aguarda o período de luto de Charles passar. Emma quer um casamento romântico à meia-noite, mas no final tem de se contentar com uma cerimónia mais tradicional, com uma comemoração ruidosa.

Resumo do capítulo II de Madame Bovary

 Certa noite, Charles é acordado às 4 da manhã para tratar de uma fratura simples numa fazenda distante. Lá, conhece e fica impressionado com admira a filha do paciente, uma jovem chamada Emma, que foi criada num convento e vive infeliz com a vida no campo. Impressionado com a sua beleza, o jovem volta à fazenda para visitar o seu pai, Rouault, com muito mais frequência do que seria necessário, enquanto a sua perna cicatriza. Heloísa fica desconfiada e pergunta a todos sobre a filha de Rouault, que, segundo lhe contaram, tem tendência a ser gabarola. Ciumenta da aparência e boa educação de Emma, Heloísa força Charles a prometer nunca mais voltar lá. Ele concorda, mas fica a saber logo depois que o advogado da esposa roubou a maior parte do dinheiro de Heloísa e que esta mentiu sobre a sua riqueza antes do casamento. Os pais de Charles discutem violentamente sobre este desenvolvimento, e Heloísa, chocada e humilhada, morre repentinamente, uma semana depois.

Resumo do capítulo I de Madame Bovary

      O romance tem início na escola da aldeia, à qual acaba de chegar um novo aluno: Charles Bovary, filho de um ex-cirurgião do exército e da sua esposa, que mora numa pequena fazenda. Depois de observarmos o seu primeiro dia na escola, seguimo-lo enquanto cresce. O seu pai, que administra mal o dinheiro e é mulherengo com "todas as prostitutas da aldeia", há muito perdeu o respeito da esposa, que dedica o seu afeto ao filho, já que com o marido é impossível. Apesar da maneira ridícula como ela o mima, Charles continua uma criança comum – bem-humorado, mas preguiçoso e sem imaginação. Posteriormente, os pais enviam-no para a faculdade de Medicina, onde falta, regularmente, às aulas e passa o tempo a jogar dominó em vez de estudar. A sua preguiça fá-lo reprovar no primeiro exame médico, uma falha escondida que consegue esconder do pai durante anos. Charles repete o exame e desta vez é aprovado, tornando-se médico. A mãe providencia no sentido de o filho exercer a profissão na aldeia de Tostes. Além disso, encontra também uma esposa para ele - Heloise Dubuc, uma viúva rica, bem mais velha do que Charles, que dedica pouco amor ao novo marido, mas muitas reclamações e repreensões.

Ação / Enredo / Resumo de Madame Bovary

      Madame Bovary começa quando Charles Bovary é ainda um menino, incapaz de se encaixar na sua nova escola e ridicularizado pelos seus novos colegas. Quando criança, e mais tarde quando se torna um jovem adulto, Charles é medíocre e enfadonho. Assim, reprova no seu primeiro exame de Medicina e mal consegue tornar-se um médico rural de segunda categoria. Sua mãe casa-o com uma viúva que morre logo depois, deixando a Charles muito menos dinheiro do que ele esperava.
Pouco depois apaixona-se por Emma, filha de um paciente seu, e os dois decidem unir-se pelo matrimónio. Após um casamento requintado, estabeleceram-se em Tostes, onde Charles possui o seu consultório, no entanto o matrimónio não corresponde às expectativas românticas de Emma. Desde que viveu num convento, ainda jovem, sonha com o amor e o casamento como solução para todos os seus problemas. Depois de assistir a um baile extravagante na casa de um nobre rico, ela começa a sonhar constantemente com uma vida mais sofisticada. Por outro lado, sente-se entediada e deprimida quando compara as suas fantasias à realidade monótona da vida na aldeia e, por fim, a sua apatia deixa-a doente. Quando Emma fica grávida, Charles decide mudar-se para uma cidade diferente na esperança de a esposa recuperar a sua saúde.
Na nova cidade de Yonville, os Bovary conhecem Homais, o farmacêutico da cidade, um fanfarrão pomposo que adora ouvir-se falar. Emma também conhece Leon, um escrivão que, como ela, está entediado com a vida rural e adora evadir-se dessa existência através dos romances que lê. Emma dá à luz a sua filha Berthe, mas a maternidade dececiona-a, pois desejava um filho, e continua desanimada. Entretanto, sentimentos românticos florescem entre Emma e Leon. No entanto, quando ela percebe que o rapaz a ama, sente-se culpada e dedica-se ao papel de uma esposa obediente. Leon cansa-se de esperar e, acreditando que nunca poderá possuí-la, parte para Patis para estudar Direito, partida essa que deixa Emma muito infeliz.
Algum tempo depois, numa feira agrícola, um vizinho rico chamado Rodolphe, que se sente atraído pela beleza de Emma, declara-lhe o seu amor, acabando por a seduzir. Deste modo, envolvem-se num caso amoroso. Emma é indiscreta nestes amores, e todos os habitantes da cidade coscuvilham sobre ela. Charles, porém, não suspeita de nada. A sua adoração pela esposa e a sua estupidez conjugam-se para o cegar relativamente às indiscrições dela. Por sua vez, a sua reputação profissional sofre um duro revés quando ele e Homais executam uma técnica cirúrgica experimental para tratar um homem de pés tortos chamado Hipólito e acabam por se ver forçados a chamar outro médico para amputar a perna. Enojada com a incompetência do marido, Emma lança-se ainda mais apaixonadamente no seu caso com Rodolphe. Ela pede dinheiro emprestado para lhe comprar presentes e sugere que fujam juntos e levem a pequena Berthe com eles. Logo, porém, o cansado e mundano Rodolphe ficou entediado com os afetos exigentes de Emma, pelo que recusa os projetos de fuga e acaba mesmo por a deixar. Com o coração destroçado, Emma adoece e quase morre.
Depois de a esposa recuperar, Charles vê-se a braços com problemas financeiros por ter de pedir dinheiro emprestado para saldar as dívidas de Emma e pagar o seu tratamento. Mesmo assim, decide levá-la à ópera na cidade vizinha de Rouen. Lá, encontram Leon. Este encontro reacende a velha chama romântica entre ambos, e desta vez os dois envolvem-se num caso de amor. Enquanto Emma continua a escapulir-se para Rouen para se encontrar com o amante, simultaneamente endivida-se casa vez mais com o agiota Lheureux, que lhe empresta somas consideráveis a taxas de juros exageradas. Além disso, o seu comportamento descuidado relativamente ao caso amoroso extraconjugal é cada vez maior. Como resultado, em várias ocasiões, conhecidos seus quase descobrem a sua infidelidade.
Com o tempo, Emma fica entediada com Leon. Não sabendo como o abandonar, torna-se cada vez mais exigente. Enquanto isso, as suas dívidas acumulam-se. Eventualmente, Lheureux ordena a apreensão da propriedade de Emma para compensar a dívida que ela acumulou. Com medo que Charles descubra, tenta freneticamente arrecadar o dinheiro de que precisa, apelando para Leon e todos os empresários da cidade. Em desespero, tenta mesmo prostituir-se, oferecendo-se para se envolver de novo com Rodolphe se ele lhe der o dinheiro de que ela precisa. Todavia, ele recusa e, levada ao desespero, Emma suicida-se com arsénico, morrendo numa agonia horrível.
Durante algum tempo, Charles idealiza a memória da esposa, até que encontra as cartas que Rodolphe e Leon lhe enviaram, e é forçado a confrontar-se com a verdade. O viúvo acaba por morrer sozinho no seu jardim, e Berthe é enviada para trabalhar numa fábrica de algodão.
 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Pronome

 1. Definição
 
Pronome é a palavra que, geralmente, substitui um nome ou um grupo nominal, evitando a repetição de elementos.

- A Miquelina teve uma filha. Ela é linda!
 
Pronome é uma palavra formada pelos elementos pro (em vez de) e nome, logo pronome significa em vez do nome.

 
• Com o pronome, recupera-se a ideia de palavras já referidas no texto, constituindo um importante elemento de coesão.

 
• Os pronomes constituem uma classe fechada de palavras.

 
• Os pronomes, substituindo grupos nominais nas frases, nunca ocorrem junto de um nome.

 
• Alguns pronomes podem também substituir:

a) Um grupo adjetival:

O Umbelino era alcoólico, mas deixou de o ser. [“o” = (ser) alcoólico]

b) Um grupo preposicional (com a funa função de complemento indireto):

O Ernesto ofereceu um telemóvel à namorada. Deu-lhe uma bela prenda. [“lhe” = à namorada]

c) Uma frase na sua totalidade:

Carlos Lopes foi campeão olímpico. Isso foi excelente.

 
 
2. Valor anafórico e catafórico do pronome
 
▪ Os pronomes, quando evitam as repetições, podem ter um valor anafórico, ou seja, retomam o antecedente que substituem, ou um valor catafórico, quando precedem os elementos para que remetem:

- O meu filho Eusébio, tive-o [anáfora] aos 26 anos. [Só com o que aparece antes de o se descodifica o significado deste pronome.]

- Ele [catáfora] entrou na sala a correr. “Bolinhas” era um cão brincalhão. [Só com o que aparece depois de ele se descodifica o significado deste pronome: Bolinhas…, cão…]

 
 
3. Subclasses
 
Os pronomes agrupam-se em seis subclasses: pronome pessoal, demonstrativo, possessivo, indefinido, relativo, interrogativo.

 

domingo, 8 de novembro de 2020

Hipálage

      A hipálage consiste na atribuição de uma particularidade que pertence a outra com a qual se relaciona, isto é, estamos perante a transferência, através de um adjetivo qualificativo, de características de uma pessoa para algo com o qual está relacionado.
Dito de forma mais simples, a hipálage é uma figura de estilo em que se transferem características humanas para as partes do corpo, para tecidos ou vestidos, para objetos, etc.
 
Exemplos:

. A tarde descia, pensativa e doce (quem estava pensativa não era a tarde, mas a pessoa que a observada);

. Carlinhos, arreganhando para Eusebiozinho um lábio feroz (o adjetivo feroz refere-se a Carlinhos, no entanto, gramaticalmente, serve de atributo ao lábio);

. cigarro pensativo;

. sobrancelhas meditativas;

. lábios devotos;

. mão pacificadora;

. braço concupiscente;

. braços pasmados;

. sala séria de tons castos;

. leito de ferro virginal;

. meias sonolentas;

. lenta humidade das paredes fatais do Ramalhete;

. chá respeitoso;

. peixe austero;

. as lojas loquazes dos barbeiros;

. saías ligeiras e ilegítimas;

. raspar espavorido dos fósforos;

. charuto preguiçoso;

. gesto risonho;

. pergunta tímida;

. rodar grave de uma carroça;

. grandes braços amigos.

 

Análise de "Pobre velha música"

O poema “Pobre velha música” é uma composição poética de Fernando Pessoa, sem data, publicada na revista “Athena” em dezembro de 1924.
À semelhança do que sucede noutros poemas do ortónimo, o poeta contrapõe o período da infância ao presente, considerando aquela como um “período dourado da sua existência”, o qual, porém, não regressará. No caso da composição poética em análise, é a “Pobre velha música” que simboliza esse período. Note-se, a título de curiosidade, que a mãe do poeta tocava piano, daí não ser de estranhar que esta forma de arte seja presença na sua obra. Aliás, Pessoa escreveu mesmo um poema que se refere, de forma explícita, à sua progenitora tocando o instrumento musical.
 
 
Assunto: ao ouvir a músicas, o sujeito poético recorda a sua infância, e, mesmo não tendo a certeza se foi feliz, solta toda a sua nostalgia presente ao rememorar esse período da sua vida.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Nostalgia do sujeito poético suscitada pela música.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Recordação vaga e indefinida da infância.
 
3.ª estrofe (3.ª estrofe) – Desejo do sujeito poético de regresso ao passado, motivado pelo estímulo musical.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
O sujeito poético é motivado por um estímulo sensorial auditivo que o emociona e desperta a sua nostalgia, visto que a música suscita em si recordações da sua infância. Embora seja um período feliz, traz ao «eu» uma grande tristeza e nostalgia, visto que está associado a uma idade perdida que é irrecuperável.
 
Esta temática – a nostalgia da infância – surge na poesia de Pessoa como uma fase da vida feliz, pela inconsciência, pela inocência de nada saber ou pensar, pela despreocupação, pela imaginação. No entanto, trata-se de um tempo impossível de recuperar, daí ser considerado um paraíso perdido.
 
A infância surge sempre em oposição ao presente, constituindo este um tempo negativo, enquanto aquele é recuperado pela memória como uma época de felicidade perdida.
 
Assim, neste poema, os dois tempos – presente e passado da infância – estão em equação: o sujeito poético, de olhar «parado» (no presente), chora quando ouve a música que escutava outrora.
 
A dupla adjetivação em posição pré-nominal do primeiro verso (“Pobre velha”) enfatiza os sentimentos de angústia e a nostalgia do sujeito poético. Subjetivamente, estes adjetivos mostram que a infância é um tempo longínquo e o «eu» lírico apresenta-se nostálgico relativamente às vivências desse tempo. Note-se que, neste passo do poema, está presente igualmente a personificação, visto que quem é «pobre» e «velho» é o sujeito poético que habitualmente ouvia aquela música e que, agora, tem consciência de que esse tempo nunca mais regressará. Daí o choro.
 
De facto, a recordação dessa música, embora de um período feliz da sua vida, aporta-lhe, no presente, grande tristeza, angústia, dor e nostalgia, pois está associada a uma época perdida, a um paraíso perdido, que nunca mais regressará, que é irrecuperável. A música é o elo de ligação entre o passado e o presente.
 
A segunda estrofe abre, precisamente, com a recordação do passado. De facto, o «eu» lembra-se de si enquanto criança que, supostamente, terá ouvido essa música, deixando no ar a dúvida se realmente a ouviu ou simplesmente a música o faz, agora, recordar-se da sua infância.
 
O sujeito poético recorda, de facto, o passado, mas quem, na realidade, ouviu a música foi ele, porém noutra idade, noutra fase da sua vida e com outros sentimentos. O «outro» era o «eu» enquanto criança e ele recorda-se de si próprio nesse período a escutá-la. Isto só vem confirmar a antítese passado / presente que percorre o texto.
 
Na última estrofe, o sujeito poético revela um desejo desesperado (“ânsia tão raiva” – v. 9) de regressar ao passado (“Quero aquele outrora!”). Esses sentimentos de raiva e angústia é acentuado pela exclamação. O sujeito poético afirma desconhecer se foi feliz na infância, no entanto deseja veementemente viver de novo esse período da sua vida (“Com que ânsia…”); todavia, reconhece que tal é impossível, o que gera a sua ira (“tão raiva”).
 
Segue-se uma interrogação retórica (“E eu era feliz?” – v. 11), através da qual o «eu» se questiona e destaca a dúvida acerca da felicidade vivida no tempo da infância, para a qual não tem resposta: “Não sei”.
 
Daqui o sujeito poético projeta-se num plano temporal que é impossível concretizar: ser criança e ser adulto, numa simbiose entre o passado e o presente. O «eu» lírico exprime o desejo de regressar ao passado, conotado com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada, mas questiona-se também se terá, efetivamente, vivido esse tempo de alegria, ou se esta será apenas produto da sua imaginação.
 
O paradoxo do verso 12 procura responder à dúvida: “Fui-o [feliz] outrora agora”. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (“E eu era feliz?”) (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o condão de o fazer feliz, no presente: “Fui-o outrora agora”. Da associação entre o «outrora» e o «agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível: a que permanece na memória e é presentificada através da música. Essa felicidade, portanto, acontece apenas no pensamento, no instante em que uma música motiva a memória do tempo da imaginação, da inocência e da inconsciência.
 
 
Síntese do poema

A nostalgia da infância é desencadeada pela audição da música (v. 1).

A música no passado é diferente da que recorda no presente (vv. 5-8) – a perceção de dois modos de ouvir.

O passado é lembrado de forma vaga / difusa e duvidosa (vv. 6, 11-12).

A felicidade na infância é construída no presente, através da memória, da recordação (vv. 10-12).

O passado e o presente fundem-se, sendo vividos em simultâneo (v. 12).

 
 
Retrato do sujeito poético

Ao longo de todo o poema, o sujeito poético revela grande dúvida e incerteza acerca das razões da sua emoção (“Não sei por que agrado” – v. 2) e da realidade / veracidade dessa felicidade na infância (“E eu era feliz? Não sei…” – v. 11).

Situado no presente, o «eu» deseja retornar à infância, o tempo da inocência, da inconsciência e da ausência da dor de pensar (vv. 9-10).

O sujeito poético sente-se triste e irritado por a infância ser um tempo perdido e irrecuperável (“Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!” – vv. 9-10).

O sujeito poético, de «olhar parado», chora, cheio de dor, sendo as suas lágrimas causadas pelo sentimento de perda inexorável e de infelicidade que o dominam no presente.

O sujeito poético sente saudade, angústia e nostalgia da infância, época que deseja recuperar: quando ouve a música, lembra-se do passado em que também a ouvia, e chora com saudades desse tempo.

Presentemente, revela abulia, inércia, perda da vontade, que se traduzem na dor de pensar (“Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado.” – vv. 3-4).

O «eu» lírico sente uma permanente incapacidade de ser feliz (“E eu era feliz? Não sei”).

 
 
Estrutura formal

• Estrofes: 3 quadras.

• Rima:

- esquema rimático: ABCB

- versos brancos alternados com versos rimados cruzados

• Métrica: redondilha menor.

 
 
A temática da infância
 
A nostalgia da infância é um dos temas fundamentais de Fernando Pessoa ortónimo, partilhado por Álvaro de Campos.
Para Pessoa, a infância é um tempo passado irrecuperável perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo e, por isso, não se tinha fragmentado.
Em Pessoa, a passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura. Passado e presente não se completam, antes se opõem; não há uma continuidade entre eles. Aquele é um tempo de felicidade, alegria inconsciente, enquanto o presente é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
A infância funciona como uma espécie de refúgio, tendo como motivações a insatisfação com o presente e a incapacidade de o viver em plenitude.
Por outro lado, a infância é sentida como uma cadeia de instantes que se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no «eu» poético a sensação de fragmentação e de ausência de identidade.
Estes dados geram em si uma visão bastante negativa e pessimista da existência, que o futuro tenderá a aprofundar, visto que é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.
 

sábado, 7 de novembro de 2020

Zôjô-ji Temple in Shiba

Kawase Hasui (1925)

Análise de "Ó sino da minha aldeia"

      Este poema foi publicado, inicialmente, em 1914, no número único da revista “A Renascença”, e, em 1925, no terceiro número de “Athena”, datado de 1924, com ligeiras diferenças de pontuação e ortografia entre ambas as publicações. O manuscrito mais antigo do texto integral do poema data de 8 de abril de 1911, mas, na realidade, nasceu um pouco antes.
O poema corresponde ao primeiro de uma série de dois poemas antecedidos pelo título “Impressões do Crepúsculo”, com os quais Pessoa estreou a sua publicação ortónima em poesia portuguesa após o seu retorno da África do Sul.
 
Em 11 de dezembro de 1931, Fernando Pessoa escreveu uma carta a João Gaspar Simões onde, em dado passo, afirma o seguinte: “Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido direto da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás”. O poeta admite ter saudades apenas das pessoas a quem amou e que queria ainda vivas, mas no dia de hoje, com as idades que teriam agora. Mais à frente acrescenta que as saudades expressas nas suas obras eram “atitudes literárias”, sentidas intensamente por instinto dramático, tendo dado como exemplo deste fenómeno o poema “Ó sino da minha aldeia”.
Em rigor, este poema, longe de ser inspirado na infância de Pessoa, tem a sua raiz em composições dos poetas novecentistas Luís Palmeirim e João de Lemos. De facto, Pessoa inspirou-se nesses poetas menores portugueses. Uma versão inicial do poema, constituída então apenas pelo primeiro verso e pela última estrofe, tem uma dedicatória: “A João de Lemos, mas escrito por Fernando Pessoa”. Vários poemas de Lemos e Palmeirim denunciam essa influência exercida junto do autor de Mensagem na composição de “Ó sino da minha aldeia”.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Assunto: o sujeito poético, ser errante, recorda o passado, tempo de felicidade, como um bem perdido e irreparável, encontrando apenas conforto e sentido para a vida no período da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª quadra): Apresentação do tema do poema.
 
2.ª parte (2.ª e 3.ª quadras): Descrição dos efeitos do toque do sino no sujeito poético.
 
3.ª parte (4.ª quadra): Conclusão do poema – associação do som do sino à saudade e ao passado do sujeito poético.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O sujeito dirige-se, no primeiro verso, ao sino, através de uma apóstrofe e da sua personificação (dado que lhe confidencia os seus sentimentos), interpelando-o. Ao longo do poema, diversos elementos deíticos sugerem a existência de um diálogo entre ambos: os pronomes pessoais de 1.ª pessoa (“me”, “mim”), os determinantes possessivos de 2.ª pessoa (“tua”, “teu”) e as formas verbais na 2.ª pessoa (“tanjas”, “soas”).
 
▪ A presença do nome «aldeia» logo no verso 1 é bastante significativa. De facto, ele poderá simbolizar o espaço da infância, um espaço de intimidade, metáfora da interioridade do sujeito poético.
 
▪ Note-se a presença da hipálage nos dois versos iniciais (“Ó sino da minha aldeia / Dolente […]”), visto que o adjetivo «dolente» se refere ao sujeito poético, que, de facto, sofre, e não ao sino. Este recurso expressivo sugere a intimidade de uma memória que se reativa e que está na origem da saudade.
 
▪ O toque do sino, como se verá na terceira e na quarta estrofes, tem efeitos no sujeito poético, não lhe sendo de forma alguma indiferente. Pelo contrário, atinge-o no âmago: “Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.”. O sino toca dentro da alma do sujeito poético, lembra-o de memórias de infância. Quer isto dizer que cada badalada desperta no «eu» reminiscências e nostalgia de um passado distante – real ou imaginário: “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”.
 
▪ À medida que o sino toca, acentua-se essa nostalgia do passado e a primeira pancada tem o som de repetida, visto que soa na alma do sujeito poético (vv. 3-4). A aldeia é uma metáfora da interioridade do «eu»: “Cada tua badalada [espaço exterior] / Soa dentro da minha alma” [espaço interior] – traduz uma interação entre a alma e o tempo, que metaforicamente sugere a união do espaço exterior com o interior.
 
▪ O toque do sino estimula a memória do sujeito poético (v. 4), pois fá-lo recordar a sua infância, o passado distante que se associa a um sonho (vv. 11-12). É um eco do passado que, longe de alegrar o «eu», suscita nele a saudade da infância, uma época dourada mas irrecuperável (vv. 15-16). Os adjetivos “dolente” e “calma” (v. 2), que caracterizam respetivamente o toque do sino e a tarde em que o sujeito o escuta, remetem para a durabilidade do som, que não se apaga da sua memória.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito poético mostra o efeito que o sino, símbolo da dolorosa passagem do tempo, tem em si. Assim, começa por afirmar que as memórias de um passado saudoso assolam a sua alma tão lentamente como a tristeza da vida (versos 5 e 6), comparando, deste modo, a lentidão do soar do sino com o seu próprio estado de espírito caracterizado pela nostalgia. Além disso, à medida que o sino toca, acentua-se no sujeito poético a saudade de tempos passados e “[…] a primeira pancada / Tem o som de repetida”, pois soa tanto no espaço exterior como no interior, isto é, na alma do «eu». Esse seu ecoar instaura nele uma certa melancolia e tristeza.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 [e a elipse (omissão do adjetivo «lento»)] entre o soar do sino e a caracterização da vida sugere que ambos se pautam pela lentidão, o que indiciará que o tempo pode custar a passar para o sujeito poético, associando-se, assim, à nostalgia, à tristeza e à melancolia.
 
▪ O poeta identifica o toque do sino com o sujeito poético. De facto, a caracterização que é feita daquele corresponde ao seu estado de espírito, daí a tal identificação entre ambos. Assim, tal como o toque do sino, o sujeito lírico sente-se dolente e triste. Por outro lado, o som do toque do sino é-lhe tão familiar que “a primeira pancada / Tem um som de repetida”, ou seja, a primeira pancada tem o som de repetida porque o «eu» já a tinha ouvido no passado. Ao escutá-la, lembra-se do som que ouvia na sua infância, por isso era como se fosse repetida.
 
▪ Na 3.ª estrofe, o sujeito poético compara o sino a um sonho: “És para mim como um sonho”. O toque do sino remete o sujeito poético para um passado distante, o qual não voltará, fazendo, assim, com que essas memórias pareçam um sonho, despertando nele a nostalgia de uma infância perdida; o toque é como um sonho, porque transporta o «eu» para o passado, fazendo parecer aquilo um sonho. O toque ele não ouve não é o físico, mas o do seu sonho.
 
▪ No verso 3 da terceira estrofe, o sujeito poético revela algum inconformismo, devido à constante procura do «eu». O adjetivo «errante» significa sem destino, sem esperança, remete para alguém que vagueia sem rumo ou sem sentido, reforçando a ideia de que só na infância encontra o conforto e o sentido para a vida. Neste caso, o sujeito poético considera-se errante, pois vive numa constante procura do «eu», sofrendo assim de solidão e ansiedade, que deixa transparecer o conformismo e a incapacidade de se encontrar e aceitar algo, sendo feliz.
 
▪ Na 4.ª e última estrofe, o sujeito poético recorre à anáfora e à antítese (bem como à aliteração em /s/) “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”, ganhando consciência de que a inconsciência e a felicidade que experimentou na infância não poderão ser revividas.
 
▪ Isto gera a saudade e a nostalgia de um tempo passado perdido, do único momento de felicidade plena: a infância. A anáfora da forma verbal «Sinto» (vv. 15-16) concorre para enfatizar a frustração e a nostalgia do sujeito poético.
 
 
Retrato do sujeito poético
 
O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pela solidão, pela ansiedade e pela nostalgia do passado da infância, traços sugeridos pelos adjetivos «dolente», «lento», «triste» e «distante», pelos advérbios «longe» e «perto», pelo nome «saudade», pelo campo lexical da tristeza («dolente», «triste», «errante») e da saudade («sonho», «distante», «passado»). Algumas destas características são comuns ao sino, que é dolente, lento, triste e vibrante.
 
 
Formalmente, o poema é constituído por quatro quadras em redondilha maior. O tempo verbal predominante é o presente do indicativo (o tempo encontra-se fragmentado e o presente remete para a vivência passiva do momento, pela recordação saudosista do passado), na 1.ª pessoa (3.ª estrofe, vv. 1-4), que traduz a identificação do poeta com o sujeito poético.
 
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