● O tempo cronológico e os contos de fadas
O conto
abre com a expressão “Era uma vez”, que transporta o leitor para o mundo
dos contos tradicionais populares, caracterizados pela presença de reis,
rainhas, príncipes e por um mundo de fantasia e imaginação.
Por
outro lado, a expressão situa a história num tempo indefinido e indeterminado,
afastado do tempo concreto, criando, assim, uma noção de atemporalidade, ou
seja, de uma época qualquer, reforçando o caráter simbólico da narrativa. Isto
permite que a história seja percecionada não como um evento específico e
situado num determinado local e tempo concretos, mas como algo que poderia
acontecer em qualquer momento da história humana.
Por
outro lado, convém não esquecer que os contos populares veiculam uma lição ou
ensinamento moral, transmitindo valores ou comportamentos, pelo que a fórmula
de abertura, ao associar-lhes o conto de Eça de Queirós, sugere que a história
que vai ser narrada contém um desfecho moralizante. No entanto, embora o texto
pareça ter um início leve e fantasioso, na realidade prepara o terreno para a
abordagem de temas profundos e um desfecho trágico, que contraria o típico «Casaram
e viveram felizes para sempre».
Além
disso, a aia, uma humilde serva, normalmente um tipo de personagem secundária,
assume grande relevância e um papel crucial no desenvolvimento da ação. O seu
sacrifício heroico remete também para os contos populares e de fadas, nos quais
por vezes figuras aparentemente secundárias e / ou desprovidas de profundidade
psicológica desempenham papéis de enorme relevância e assumem um estatuto de
grande importância moral ou heroica.
● O tempo histórico
Quanto
ao tempo histórico, tal como sucede com o da história ou com o espaço físico,
não encontramos, para já, qualquer notação que permita localizar a ação numa
época concreta. No entanto, uma série de elementos presentes ao longo do texto
permite situá-la na Idade Média. A existência de uma monarquia hereditária (o
pequeno príncipe é o herdeiro do trono) sugere a existência de uma organização
social característica da época medieval, marcada pela concentração do poder nas
mãos do rei e pela continuidade dinástica. Em segundo lugar, a referência às
searas abundantes aponta para uma economia de tipo agrário, onde a riqueza do
reino estava associada ao cultivo da terra. Em terceiro lugar, a partida do rei
para a guerra situa-nos no contexto das guerras medievais, de campanhas
militares organizadas para defender ou conquistar territórios.
● O espaço
No que
diz respeito ao espaço físico, a expressão “senhor de um reino abundante
em cidades e searas”, por um lado, situa a ação num espaço indeterminado e
indefinido (vide tempo); por outro, apresenta-no-lo como vasto e próspero /
rico, simbolizando as cidades o poder político e a estrutura / organização
social e as searas a fertilidade e a riqueza económica, o que indicia que o
reino é bem governado e seguro, imagem que passa a estar ameaçada com a partida
do rei para a guerra, facto que o deixa e aos súbditos, bem como a família (a
rainha e o filho de ambos), numa situação de vulnerabilidade.
Neste
parágrafo, existe a menção a outro espaço físico – “terras distantes” –, o
local para onde o rei e o seu exército partem, pois é aí que se vai desenrolar
a guerra – outro espaço indefinido e indeterminado. Por um lado, o facto de o
lugar ser distante enfatiza a separação e a distância enorme entre o rei e a
sua família, o que acentua a situação de vulnerabilidade e o perigo crescente
que a cerca. Por outro lado, estabelece-se aqui uma espécie de contraste entre
o mundo externo, caracterizado pela violência e pela imprevisibilidade, e o
espaço interior presumido, o palácio, que estaria conotado com a segurança, mas
que agora, porém, também está ameaçado.
No que se
refere ao espaço social, a ação decorre essencialmente no ambiente da
corte, representado pelo palácio real, pelo casal de soberanos e pelo seu filho
bebé. Por outro lado, as personagens apresentadas neste primeiro parágrafo – o rei,
a rainha e o filho – pertencem à realeza. De facto, a história desenrola-se na
corte, no seio da nobreza, sendo que o monarca e a sua consorte ocupam o topo
da estrutura social. O rei surge ligado ao exterior e à ação, ao estatuto de
herói, enquanto a rainha é remetida para uma posição mais passiva e confinada
ao lar. A sua solidão e tristeza refletem a saudade do esposo, mas também a sua
posição subalterna enquanto mulher numa sociedade patriarcal, dominada por
homens. Além disso, o reino é caracterizado como vasto, abundante e rico, quer
em cidades, quer em riqueza. Por último, esta parte do texto indicia os
diferentes papéis desempenhados pelo rei e pela rainha, que surge numa posição
de dependência, juntamente com o filho, relativamente à figura do poder. De
facto, a sua ausência cria uma lacuna de poder no espaço doméstico e abre
caminho para que a fragilidade se instale no palácio.
● Personagens
O rei
é apresentado como um nobre “moço e valente” (jovem e corajoso), o que permite,
desde já, associá-lo à figura do herói que parte para combater em terras
distantes. Por outro lado, é rico e poderoso (reina num “reino abundante em
cidades e searas”) e ambicioso, dado que parte para a guerra em busca de fama e
de novas terras, mas também imprudente, pois a sua partida deixa o reino e a
sua família desprotegidos, logo vulneráveis. Note-se também que todos estes
elementos permitem associar o conto ao mundo medieval e cavaleiresco, onde os
monarcas tinham necessidade de defender os seus reinos através da guerra.
Por
último, há que notar que o rei não possui nome próprio, portanto é uma
personagem anónima, outro traço herdado do conto tradicional popular e que
caracteriza todas as restantes personagens do texto (a rainha, o príncipe, a
aia, o escravozinho, etc.). De facto, todas elas são anónimas, sendo designadas
pela sua condição social (o rei, a rainha, a aia, etc.) ou pelas suas
características psicológicas. Este traço serve para conferir intemporalidade ao
conto, à semelhança do que sucede com o tempo e o espaço.
A rainha,
igualmente nobre e jovem, é caracterizada como “solitária e triste”, traços que
têm como causa direta o sentimento de abandono, pois o marido partiu para a
guerra e deixou-a só. Para a sua tristeza, preocupação e saudade concorrerá
também a responsabilidade de criar e proteger o filho de ambos. Por outro lado,
a situação da rainha remete para o tema batido da espera e da solidão
femininas. De facto, já na cantiga de amigo, encontramos a mulher que espera,
ansiosa e preocupada, o homem, que partiu (para a guerra, por exemplo).É o
caso, a título exemplificativo, de cantigas como “Sedia-m’ eu na ermida de San
Simion” ou “Ai flores, ai flores do verde pino”. Ela enfrenta não apenas a
saudade, mas também a responsabilidade de manter a estabilidade familiar e
proteger o herdeiro do trono.
Por
último, o príncipe, igualmente nobre, é uma figura rodeada de carinho (diminutivo
«filhinho»), mas apresentada como inocente e frágil, desde logo por ser um
bebé de berço e, além disso, por causa da ausência do pai. Convém não esquecer,
neste contexto, que se trata do herdeiro do trono, por isso carece de proteção
constante. Ele simboliza o futuro e a continuidade do reino.
● Narrador
No que
diz respeito à presença, o narrador é não participante e
heterodiegético, visto que não é personagem e, por conseguinte, não participa
na ação. Assim, a narração é feita na terceira pessoa (“partira”).
Relativamente
à focalização, o narrador parece ser omnisciente, visto que conhece os
pensamentos e os sentimentos das personagens, como é o caso do estado de espírito
após a partida do marido para a guerra: “solitária e triste”.
Por
último, no que diz respeito à posição, o narrador é predominantemente
objetivo, ou seja, apenas se refere ao que observa ou conjetura, no entanto há
várias passagens que o apresentam como subjetivo, como, por exemplo, o uso da
interjeição “Ai”.
● Linguagem
No
primeiro parágrafo, assume preponderância a dupla adjetivação. Assim, a
expressão «moço e valente» caracteriza o rei de forma idealizada, quase
heroica. Por outro lado, «solitária e triste» traduz a angústia, a solidão, o isolamento
e a desproteção da rainha ao ver o marido ausente.
Por sua
vez, o diminutivo «filhinho» sugere o amor e o carinho que rodeiam o
frágil príncipe. Por outro lado, aponta para a tenra idade da criança, que vive
no seu berço, «dentro das suas faixas», protegido. Em terceiro lugar, o
diminutivo acentua a inocência, a fragilidade, a vulnerabilidade do bebé
indefeso, dependente dos cuidados maternos e das figuras que o cercam, como a
aia. A combinação do diminutivo com a imagem do bebé enfaixado no berço
acentua a sua absoluta incapacidade para se proteger ou agir por conta própria.
Ele é um símbolo da vulnerabilidade do próprio reino, que depende da sua
sobrevivência. Além disso, o recurso ao diminutivo contrasta com a imagem do
pai, apresentado como jovem e valente. Assim, o rei é apresentado como símbolo
do poder e da força e valentia, enquanto o filho é o oposto: indefeso e sem
qualquer força ou poder político.
Outro
recurso muito importante é o determinante artigo indefinido («um» e
«uma»):
- “Era uma
vez”; “um reino abundante”, um rei”:
→ não permite determinar
com precisão o tempo histórico e o tempo cronológico (intemporalidade);
→ não permite determinar
com precisão o espaço físico:
→ contribui para a
exemplaridade da história, cuja mensagem, cujo teor humano pode ser aplicado a
muitos tempos e lugares;
→ traduz o anonimato das
personagens.