Português: Análise do 5.° parágrafo do conto "A Aia"

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Análise do 5.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens

    Este parágrafo apresenta uma nova personagem: o escravozinho, o filho da escrava que amamenta o príncipe.
    Socialmente, enquanto filho de uma escrava, a sua condição é igualmente a de escravo. Além disso, embora tenha nascido na mesma noite que o príncipe e seja rodeado dos mesmos cuidados e tratado com o mesmo carinho, a sua condição de vida é claramente mais humilde. O seu berço é “pobre e de verga”, o que simboliza a sua condição inferior e subalterna na sociedade. No entanto, cola-se-lhe à pele uma certa dignidade e inocência, a ele que é alvo do mesmo amor, cuidados e atenção que o príncipe, incluindo por parte da rainha. Fisicamente, é um bebé de berço, tem o cabelo negro e crespo e olhos brilhantes (“Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas” – comparação).
    À semelhança do que sucede com as restantes, também o filho da aia é uma personagem anónima, sendo identificado pela sua condição social, daí ser designado pelo narrador como o «escravozinho». Esta designação não deixa dúvidas de que é um escravo, portanto socialmente inferior.
    A aia, a mãe do escravozinho, é uma escrava que dá título, nome e sentido à história, cuja função é exercer um papel maternal, isto é, criar ambas as crianças. Fisicamente, é bela e robusta, qualidades que sugerem vigor físico. Psicologicamente, é uma serva leal, traço que se revelará fundamental para o desenrolar dos acontecimentos. A sua lealdade e dedicação são tais que cuida do futuro rei com o mesmo desvelo e carinho que dedica ao próprio filho: “A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho – o outro seria o seu rei.” Ou seja, se a um a liga o sangue, ao outro é a lealdade a quem lhe é superior.
    Por sua vez, o principezinho, sempre tratado de forma carinhosa, por meio de diminutivos, fisicamente, tem o cabelo louro e fino e os olhos brilhantes. Social e psicologicamente, dada a sua nobreza de sangue, é de condição social superior, portanto privilegiada, e rico, como o demonstra o facto de dormir num berço “magnífico e de marfim entre brocados”. Ele representa o futuro da monarquia e do reino, daí ser, de certa forma, o centro das atenções e das preocupações das demais personagens. Nesta fase inicial da sua existência, é tratado de modo igual ao do escravozinho, sem privilégios de monta, à exceção do berço em que dorme. Assim, ambos partilham da mesma atenção, cuidado e carinho, sugerindo que, na infância, não existem as barreiras e diferenças que, no futuro, os separarão.
    A caracterização do príncipe e do escravozinho revelam um conjunto de semelhanças e diferenças entre as duas personagens:

a)      Semelhanças:
i)      viviam no mesmo castelo
ii)    tinham nascido na mesma noite de verão (símbolo de um destino partilhado?)
iii)  alimentavam-se do mesmo seio = a aia amamentava ambos (estão ligados simbolicamente desde os primeiros momentos de vida)
iv)  eram ambos beijados pela rainha
v)    eram tratados pela aia com o mesmo carinho, como se fossem os dois seus filhos
vi)  os olhos de ambos eram brilhantes (igualdade na beleza e no brilho)

b)      Diferenças:
 
 

Principezinho

Escravozinho

Aparência física
simboliza o contraste étnico e social entre ambos

. cabelo louro e fino

. cabelo negro e crespo

Condições materiais

. berço magnífico e de marfim

. berço pobre e de verga

Condição social
. classe social: nobreza / realeza – príncipe herdeiro do trono
. rico e privilegiado
. filho da rainha

. classe social: escravo

. pobre e humilde
. filho da escrava

Situação

. frágil e vulnerável

. nada tinha a recear


Linguagem e recursos expressivos

    A adjetivação assume também grande relevância neste parágrafo, preferindo o narrador o uso da dupla adjetivação na elaboração do retrato das personagens. Assim, a aia é caracterizada como «bela e robusta», enfatizando a sua beleza física e a sua robustez física. Os dois traços têm o condão de a humanizar, sugerindo que, apesar de ser de condição social inferior, é um ser humano que se destaca pela aparência física atraente (o primeiro) e enfatizar o seu lado maternal e capacidade de nutrição. A dupla adjetivação é o recurso usado para dar conta das características físicas dos dois meninos: o cabelo louro e fino do príncipe sugere uma imagem de delicadeza, pobreza e fragilidade da personagem (na tradição cultural ocidental, o cabelo louro é assiduamente associado à nobreza e pureza, o que sugere a sua condição social destacada); o cabelo negro e crespo do escravozinho contrastam com o do vizinho de berço e são associados a pessoas de origem africana, enfatizando, portanto, a identidade / origem étnica e social da personagem – filho de uma escrava. A adjetivação expressiva é utilizada ainda para descrever os berços. Assim, o do príncipe é magnífico, adjetivo que sugere riqueza, enquanto os nomes «marfim» e «brocados» enfatizam as ideias de sofisticação e privilégio. Por seu turno, o do pequeno escravo é «pobre» e feito de «verga», nome que expressa a simplicidade do objeto, denunciando a sua condição social inferior. Em suma, estes adjetivos vincam os contrastes sociais e materiais entre as duas crianças, bem como os traços físicos e psicológicos que distinguem as personagens.
    O retrato dos dois infantes assenta também na figura da antítese, que evidencia as características contrastantes que os diferenciam, como é o caso da cor da pele e do cabelo, a qualidade e o material dos berços.
    A comparação dos olhos de ambas as crianças a pedras preciosas realça o seu brilho e beleza.
    Outro recurso impactante e reiterado ao longo do conto é o diminutivo, aplicado às duas crianças. «Escravozinho» enfatiza a tenra idade da personagem, bem como as ideias de inocência e fragilidade, traços partilhados por ambos os infantes. Por outro lado, evidencia o facto de a condição social ser uma espécie de ferrete que a sociedade impõe desde a nascença ao filho da aia e que o acompanhará ao longo da vida. Em terceiro lugar, o termo carrega, por si, uma conotação de submissão e inferioridade, o que é enfatizado pela redução ao diminutivo, que veicula, nesta aceção, as ideias de pequenez e submissão. No fundo, reflete a mentalidade da época medieval, durante a qual as pessoas escravas eram tratadas como inferiores e menos importantes do que as restantes.


Elementos simbólicos

    O berço de marfim simboliza a riqueza e o privilégio de quem nele dorme, o príncipe, enquanto o de verga traduz a humildade e a condição social inferior do pequeno escravo.
    O facto de os dois bebés serem amamentados pelo mesmo seio pode simbolizar a igualdade na primeira infância, antes que as normas sociais se impusessem e pusessem em marcha o estatuto de cada um.

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