Português: Análise do 6.° parágrafo do conto "A Aia"

domingo, 20 de outubro de 2024

Análise do 6.° parágrafo do conto "A Aia"

A aia

1. Caracterização

     A aia nascera no palácio, o que significa que sempre ali vivera e a sua vida fora dedicada a servir o rei, daí a sua lealdade absoluta, a sua submissão e servidão, que não são, todavia, exercidas por se tratar de uma mera obrigação, antes constituem uma paixão, uma espécie de religião, e a fazem feliz. O seu único propósito é servir o rei e o reino e os seus interesses. Daí não ser de estranhar que o seu choro pela morte do rei tenha sido o mais sentido. A sua fidelidade e dedicação são inabaláveis: “Tinha a paixão, a religião dos seus senhores”.

2. Crenças – Conceção de vida e de morte

    A aia é crente, pois acredita na vida depois da morte, o que a ajuda a superar / aceitar essa perda: “Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida na Terra se continua no Céu.” Além disso, para ela o Céu reproduz a estrutura social existente na Terra, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra: “O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam nesse reino celeste retomar em torno dele a sua vassalagem.” Deste modo, a morte do rei não representa um fim definitivo, mas apenas uma transição para outro reino, onde continuará a reinar, de modo semelhante ao que fazia em vida, o que reflete a sua crença na vida após a morte, onde as relações e hierarquias se manteriam intactas.
    Deste modo, quando chegar o dia da sua morte, espera reencontrar o rei, seu senhor, e continuar a desempenhar o seu papel de serva, retomando o seu trabalho de fiação e preparação de perfumes, repetindo as ações realizadas em vida. O Céu é uma continuação idealizada e eterna do que ela já conhece, numa espécie de servidão eterna: “… e feliz na sua servidão”.


Linguagem

    A linguagem do parágrafo pertence, em parte, ao domínio do religioso e do sagrado, para transmitir, desta forma, as suas crenças.
    A comparação “Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto…” enfatiza o facto de a aia ter chorado copiosa e sentidamente a morte do seu rei, mais do que qualquer outra pessoa.
    O eufemismo “O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas.” Suaviza a morte dos pajens, o que está de acordo com as crenças da aia num mundo para além da morte. Por outro lado, traduz a convicção da aia na vida no céu enquanto réplica da vida na Terra. De facto, para a serva, o céu reproduz a estrutura social terrena, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra. Esta crença envolvia os próprios animais e os objetos (cavalos e armas).
    Face ao exposto, é evidente a antítese entre vida e morte, que, neste caso, não são abordadas como opostos, mas como continuidade, o que anula o contraste. A morte do rei constitui uma tragédia pessoal e coletiva e é chorada como tal, porém, para a aia, não constitui um fim definitivo, antes uma transição para outra forma de existência que, na prática, consiste na continuação da ordem social e do papel da aia existentes na Terra.
    Relativamente à adjetivação, a presença de adjetivos como “grande [rio]” e “[reino] celeste” realçam a grandiosidade e o sentido trágico da morte, ao mesmo tempo que evidenciam a dimensão quase mitológica do evento.

 
Elementos simbólicos

    O uso de símbolos é constante ao longo do conto, como sucede também neste parágrafo, no qual se destacam os seguintes, alguns revisitados:

a) o “grande rio” onde o rei encontrou a morte simboliza a passagem da vida para a morte;

b) o raio de lua descreve a ascensão da aia ao céu mágico;

c) o cavalo de batalha, as armas e os pajens simbolizam o poder do rei e a hierarquia social existente no reino, que se conservarão no Além.

 

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