Português: Análise do 1.º parágrafo do conto «A Aia»

domingo, 6 de outubro de 2024

Análise do 1.º parágrafo do conto «A Aia»

O tempo cronológico e os contos de fadas

    O conto abre com a expressão “Era uma vez”, que transporta o leitor para o mundo dos contos tradicionais populares, caracterizados pela presença de reis, rainhas, príncipes e por um mundo de fantasia e imaginação.
    Por outro lado, a expressão situa a história num tempo indefinido e indeterminado, afastado do tempo concreto, criando, assim, uma noção de atemporalidade, ou seja, de uma época qualquer, reforçando o caráter simbólico da narrativa. Isto permite que a história seja percecionada não como um evento específico e situado num determinado local e tempo concretos, mas como algo que poderia acontecer em qualquer momento da história humana.
    Por outro lado, convém não esquecer que os contos populares veiculam uma lição ou ensinamento moral, transmitindo valores ou comportamentos, pelo que a fórmula de abertura, ao associar-lhes o conto de Eça de Queirós, sugere que a história que vai ser narrada contém um desfecho moralizante. No entanto, embora o texto pareça ter um início leve e fantasioso, na realidade prepara o terreno para a abordagem de temas profundos e um desfecho trágico, que contraria o típico «Casaram e viveram felizes para sempre».
    Além disso, a aia, uma humilde serva, normalmente um tipo de personagem secundária, assume grande relevância e um papel crucial no desenvolvimento da ação. O seu sacrifício heroico remete também para os contos populares e de fadas, nos quais por vezes figuras aparentemente secundárias e / ou desprovidas de profundidade psicológica desempenham papéis de enorme relevância e assumem um estatuto de grande importância moral ou heroica.

O tempo histórico

    Quanto ao tempo histórico, tal como sucede com o da história ou com o espaço físico, não encontramos, para já, qualquer notação que permita localizar a ação numa época concreta. No entanto, uma série de elementos presentes ao longo do texto permite situá-la na Idade Média. A existência de uma monarquia hereditária (o pequeno príncipe é o herdeiro do trono) sugere a existência de uma organização social característica da época medieval, marcada pela concentração do poder nas mãos do rei e pela continuidade dinástica. Em segundo lugar, a referência às searas abundantes aponta para uma economia de tipo agrário, onde a riqueza do reino estava associada ao cultivo da terra. Em terceiro lugar, a partida do rei para a guerra situa-nos no contexto das guerras medievais, de campanhas militares organizadas para defender ou conquistar territórios.

O espaço

    No que diz respeito ao espaço físico, a expressão “senhor de um reino abundante em cidades e searas”, por um lado, situa a ação num espaço indeterminado e indefinido (vide tempo); por outro, apresenta-no-lo como vasto e próspero / rico, simbolizando as cidades o poder político e a estrutura / organização social e as searas a fertilidade e a riqueza económica, o que indicia que o reino é bem governado e seguro, imagem que passa a estar ameaçada com a partida do rei para a guerra, facto que o deixa e aos súbditos, bem como a família (a rainha e o filho de ambos), numa situação de vulnerabilidade.
    Neste parágrafo, existe a menção a outro espaço físico – “terras distantes” –, o local para onde o rei e o seu exército partem, pois é aí que se vai desenrolar a guerra – outro espaço indefinido e indeterminado. Por um lado, o facto de o lugar ser distante enfatiza a separação e a distância enorme entre o rei e a sua família, o que acentua a situação de vulnerabilidade e o perigo crescente que a cerca. Por outro lado, estabelece-se aqui uma espécie de contraste entre o mundo externo, caracterizado pela violência e pela imprevisibilidade, e o espaço interior presumido, o palácio, que estaria conotado com a segurança, mas que agora, porém, também está ameaçado.
    No que se refere ao espaço social, a ação decorre essencialmente no ambiente da corte, representado pelo palácio real, pelo casal de soberanos e pelo seu filho bebé. Por outro lado, as personagens apresentadas neste primeiro parágrafo – o rei, a rainha e o filho – pertencem à realeza. De facto, a história desenrola-se na corte, no seio da nobreza, sendo que o monarca e a sua consorte ocupam o topo da estrutura social. O rei surge ligado ao exterior e à ação, ao estatuto de herói, enquanto a rainha é remetida para uma posição mais passiva e confinada ao lar. A sua solidão e tristeza refletem a saudade do esposo, mas também a sua posição subalterna enquanto mulher numa sociedade patriarcal, dominada por homens. Além disso, o reino é caracterizado como vasto, abundante e rico, quer em cidades, quer em riqueza. Por último, esta parte do texto indicia os diferentes papéis desempenhados pelo rei e pela rainha, que surge numa posição de dependência, juntamente com o filho, relativamente à figura do poder. De facto, a sua ausência cria uma lacuna de poder no espaço doméstico e abre caminho para que a fragilidade se instale no palácio.

Personagens

    O rei é apresentado como um nobre “moço e valente” (jovem e corajoso), o que permite, desde já, associá-lo à figura do herói que parte para combater em terras distantes. Por outro lado, é rico e poderoso (reina num “reino abundante em cidades e searas”) e ambicioso, dado que parte para a guerra em busca de fama e de novas terras, mas também imprudente, pois a sua partida deixa o reino e a sua família desprotegidos, logo vulneráveis. Note-se também que todos estes elementos permitem associar o conto ao mundo medieval e cavaleiresco, onde os monarcas tinham necessidade de defender os seus reinos através da guerra.
    Por último, há que notar que o rei não possui nome próprio, portanto é uma personagem anónima, outro traço herdado do conto tradicional popular e que caracteriza todas as restantes personagens do texto (a rainha, o príncipe, a aia, o escravozinho, etc.). De facto, todas elas são anónimas, sendo designadas pela sua condição social (o rei, a rainha, a aia, etc.) ou pelas suas características psicológicas. Este traço serve para conferir intemporalidade ao conto, à semelhança do que sucede com o tempo e o espaço.
    A rainha, igualmente nobre e jovem, é caracterizada como “solitária e triste”, traços que têm como causa direta o sentimento de abandono, pois o marido partiu para a guerra e deixou-a só. Para a sua tristeza, preocupação e saudade concorrerá também a responsabilidade de criar e proteger o filho de ambos. Por outro lado, a situação da rainha remete para o tema batido da espera e da solidão femininas. De facto, já na cantiga de amigo, encontramos a mulher que espera, ansiosa e preocupada, o homem, que partiu (para a guerra, por exemplo).É o caso, a título exemplificativo, de cantigas como “Sedia-m’ eu na ermida de San Simion” ou “Ai flores, ai flores do verde pino”. Ela enfrenta não apenas a saudade, mas também a responsabilidade de manter a estabilidade familiar e proteger o herdeiro do trono.
    Por último, o príncipe, igualmente nobre, é uma figura rodeada de carinho (diminutivo «filhinho»), mas apresentada como inocente e frágil, desde logo por ser um bebé de berço e, além disso, por causa da ausência do pai. Convém não esquecer, neste contexto, que se trata do herdeiro do trono, por isso carece de proteção constante. Ele simboliza o futuro e a continuidade do reino.

Narrador

    No que diz respeito à presença, o narrador é não participante e heterodiegético, visto que não é personagem e, por conseguinte, não participa na ação. Assim, a narração é feita na terceira pessoa (“partira”).
    Relativamente à focalização, o narrador parece ser omnisciente, visto que conhece os pensamentos e os sentimentos das personagens, como é o caso do estado de espírito após a partida do marido para a guerra: “solitária e triste”.
    Por último, no que diz respeito à posição, o narrador é predominantemente objetivo, ou seja, apenas se refere ao que observa ou conjetura, no entanto há várias passagens que o apresentam como subjetivo, como, por exemplo, o uso da interjeição “Ai”.

Linguagem

    No primeiro parágrafo, assume preponderância a dupla adjetivação. Assim, a expressão «moço e valente» caracteriza o rei de forma idealizada, quase heroica. Por outro lado, «solitária e triste» traduz a angústia, a solidão, o isolamento e a desproteção da rainha ao ver o marido ausente.
    Por sua vez, o diminutivo «filhinho» sugere o amor e o carinho que rodeiam o frágil príncipe. Por outro lado, aponta para a tenra idade da criança, que vive no seu berço, «dentro das suas faixas», protegido. Em terceiro lugar, o diminutivo acentua a inocência, a fragilidade, a vulnerabilidade do bebé indefeso, dependente dos cuidados maternos e das figuras que o cercam, como a aia. A combinação do diminutivo com a imagem do bebé enfaixado no berço acentua a sua absoluta incapacidade para se proteger ou agir por conta própria. Ele é um símbolo da vulnerabilidade do próprio reino, que depende da sua sobrevivência. Além disso, o recurso ao diminutivo contrasta com a imagem do pai, apresentado como jovem e valente. Assim, o rei é apresentado como símbolo do poder e da força e valentia, enquanto o filho é o oposto: indefeso e sem qualquer força ou poder político.
    Outro recurso muito importante é o determinante artigo indefinido («um» e «uma»):
- “Era uma vez”; “um reino abundante”, um rei”:
não permite determinar com precisão o tempo histórico e o tempo cronológico (intemporalidade);
não permite determinar com precisão o espaço físico:
contribui para a exemplaridade da história, cuja mensagem, cujo teor humano pode ser aplicado a muitos tempos e lugares;
traduz o anonimato das personagens.

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