Português: Análise do 4.° parágrafo do conto "A Aia"

domingo, 13 de outubro de 2024

Análise do 4.° parágrafo do conto "A Aia"

 ● Personagens

    O terceiro parágrafo termina com a referência aos inimigos que ameaçavam o reino e a vida do pequeno príncipe. Na sequência, o quarto introduz um desses inimigos, o maior: o tio bastardo. O retrato que o narrador traça dele é implacável.
    De facto, ele é retratado como uma personagem vil, destacando-se pela sua depravação, caráter bravio e brutalidade. Além disso, é um homem dominado pela ambição material e grosseira, movendo-se pelo desejo de alcançar a realeza, não pelo poder que ela lhe proporcionaria, mas pelos tesouros a que teria acesso.
    Fisicamente, vive isolado num castelo nas montanhas, o que reflete a sua natureza sombria, rodeado por uma «horda de rebeldes». A comparação com um lobo, um animal predador, sugere que se trata de alguém feroz e selvagem, violento e cruel, predisposto à violência. Estamos perante uma figura que vive isolada e que lidera um grupo de malfeitores, afastado da civilização, que planeia assaltar o trono à força. De forma calculista e impiedosa (“de atalaia, espera a presa”), conspira contra o frágil e indefeso sobrinho, que perspetiva como uma presa fácil.
    Em suma, o tio bastardo é apresentado, desde o início, como um vilão cruel e sinistro, ávido de riqueza e que, qual lobo faminto, aguarda a ocasião certa para atacar a presa indefesa e saciar a sua ambição.
    Metaforicamente, o príncipe é apresentado como a presa do tio bastardo, enfatizando-se mais uma vez a sua tenra idade, fragilidade e vulnerabilidade (observar a expressividade do diminutivo «criancinha»). Por seu lado, a imagem de um “rei de mama” destaca a ironia da situação em que se encontra: apesar de ser o herdeiro de um reino vasto e abundante (“senhor de tantas províncias”) e de ser detentor de um título que lhe dá grande poder, não tem qualquer controlo sobre o seu destino e é um ser indefeso, incapaz de compreender e se defender dos seus inimigos e dos perigos que o espreitam.
    Essa ideia é acentuada pela imagem final, que no-lo apresenta a dormir pacificamente no seu berço e que contrasta com o perigo que o rodeia. Na mão, segura um guizo de ouro, um brinquedo infantil que simboliza a sua inocência e despreocupação, ao passo que o ouro indicia a riqueza e o poder que o cercam, mas que, em simultâneo, são os responsáveis pela existência dos inimigos que o ameaçam.

Espaço físico e social

    O espaço físico apresentado neste parágrafo assenta na alternância entre dois lugares: o castelo nas montanhas, habitado pelo tio bastardo, e o ambiente doméstico e protegido do pequeno príncipe, que dorme pacificamente no seu berço.
    O primeiro espaço é uma fortaleza isolada, situada no cimo dos montes, um local de difícil acesso e afastado da civilização, que enfatiza o distanciamento físico e emocional de quem nele habita em relação ao reino e seus habitantes. O tio bastardo vive como um pária, rodeado de uma horda temível, elementos que indiciam que o local em que habitam é selvagem, caracterizado pela desordem e violência, além do isolamento e solidão. A comparação da personagem com um lobo que, de atalaia, espera a presa, intensifica o caráter predatório do espaço, associando o castelo a uma espécie de covil inóspito e extremamente perigoso. Em suma, o castelo é um reflexo do seu dono: isolado, sombrio e ameaçador.
    Por sua vez, o príncipe vive num espaço contrastante, um espaço interior: um quarto onde dorme sossegadamente no seu berço, um local caracterizado pelo afeto, pela segurança e pelo cuidado. Não obstante, embora se encontre aparentemente seguro e protegido, cercado pelas riquezas do reino que, eventualmente, governará no futuro, há um perigo que o espreita vindo das montanhas.
    No que diz respeito ao espaço social, o parágrafo anterior e este introduzem uma questão relevante. Com a morte do rei, o pequeno príncipe, sem o saber e sem querer, enquanto herdeiro do trono, é o detentor do poder e da autoridade no reino, mesmo que futuro, daí que seja o foco da ação do tio, que necessita de se livrar dele para se apossar do trono. O guizo de ouro que aperta entre as mãos é o símbolo, neste contexto, da sua posição social elevada, a mesma que desperta a cobiça dos inimigos e coloca a sua vida em perigo.
    Por seu turno, o tio é uma figura marginalizada no âmbito da sociedade retratada no conto, tanto por causa de se tratar de um bastardo, de um filho ilegítimo, fora do casamento, como pelos eu comportamento rebelde e predatório. De facto, ele vive à margem da sociedade, isolado, liderando uma horda, o que tem como (outro) motivo a ambição desmedida pela riqueza e pelo poder.
    Esta personagem representa a corrupção e a ganância, que acabam por minar as relações sociais e políticas. Apesar de bastardo, não deixa de fazer parte da família real, desde logo porque é irmão do falecido rei, porém a sua ilegitimidade e o seu comportamento colocam-no em conflito com os seus. Essa ilegitimidade contrasta com a legitimidade e a pureza do príncipe, que, não obstante ser uma criança, é encarado como o legítimo candidato ao trono.

Posição do narrador

    Ao longo do conto, maioritariamente, o narrador é objetivo, porém há momentos em que se apresenta como subjetivo, visto que:
a.       usa uma linguagem judicativa: ao descrever o tio bastardo, caracteriza-o como «depravado e bravio»;
b.      socorre-se de termos (por exemplo, a interjeição «ai») que deixam transparecer a sua emotividade, sugerindo compaixão pelo príncipe.

Linguagem

    Um dos recursos mais importantes do capítulo é a adjetivação, concretamente aquela que caracteriza o tio bastardo:
a.       os adjetivos «bravio» e «depravado» enfatizam a sua natureza selvagem e vil;
b.      o adjetivo «grosseiras» e o nome «cobiças» revelam a sua faceta ambiciosa e avarenta;
c.       o adjetivo «bastardo» destaca a ilegitimidade social (alguém nascido fora do casamento), mas também, pelo comportamento, moral (fulano de tal é um bastardo, isto é, desonesto, de caráter duvidoso).
    O tio é também comparado a um lobo (“à maneira de um lobo que, de atalaia, espera a presa”), comparação essa que enfatiza o caráter cruel e selvagem da personagem. Como um predador, escondido, espera o momento certo para atacar. Assim sendo, podemos deduzir, desde já, que agora que o rei morreu, o tio se prepara para descer dos montes e atacar o palácio e o sobrinho bebé. O perigo é iminente. Assim se cria um clima de tensão e expectativa.
    O uso da interjeição «Ai», seguida da exclamação, traduz(em) a preocupação e a compaixão do narrador relativamente ao príncipe e ao seu destino.
    As figuras do tio – ambicioso, perigoso, selvagem – e do sobrinho – frágil, vulnerável, inocente, desprotegido – constituem um contraste, uma antítese.
    A construção da figura do príncipe está rodeada de uma certa ironia. Embora seja o herdeiro do trono e, em consequência, detenha grande poder e autoridade em tese, não passa de uma criancinha, de um «rei de mama», ou seja, alguém que é totalmente incapaz de exercer o seu poder e autoridade. Neste contexto, a expressão «rei de mama» sugere, em simultâneo, a sua posição de privilégio (detentor de poder e autoridade) e a sua absoluta fragilidade e vulnerabilidade, traços que contrastam com o que se espera de um rei, visto tradicionalmente como uma figura de poder e força.

Elementos simbólicos

    O guizo de ouro reveste-se de uma simbologia particular. Enquanto brinquedo infantil, representa a inocências e a despreocupação da criança; o facto de ser de ouro, torna-o símbolo de riqueza e poder, elementos que, no contexto do conto, se constituem como fonte de cobiça e conflito.

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