domingo, 20 de abril de 2025
A hipocrisia dos vegetarianos
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo
I. Biografia de Aluísio de Azevedo
II. Obras de Aluísio de Azevedo
III. Período literário
IV. Ação
. Resumo
. Capítulos
V. Personagens
V.1. Caracterização
1. João Romão
2. Bertoleza
3. Miranda
4. Rita Baiana
5. Estela
6. Léonie
7. Pombinha
8. Jerónimo
9. Piedade
10. Leandra
11. Ana das Dores
12. Dona Isabel
13. Leocádia
14. Zulmirinha
16. Neném
17. Velho Botelho
18. Henrique
19. Agostinho
20. Alexandre
21. Paula
22. Albino
23. Firmo
24. Senhorinha
V.2. O percurso existencial das personagens femininas
V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.
VI. Conclusões
a) Forma
b) Conteúdo
Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço
Um dos
valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua
facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais.
As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo
narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes
(beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das
personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações.
Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em
que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas,
tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante
do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão
animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os
condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela
maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o
despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam
"objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres
humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de
animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga".
Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e
negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o
trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra
cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera"
(FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as
abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres
aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a
pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do
fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia,
condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO,
2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos,
realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações
de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável.
A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a
narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar,
onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos
instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela
como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como
o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o
indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de
interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são
estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico
representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua
preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência,
a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que
ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza,
"crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja
"subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua
liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E
segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo
ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada
por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão
tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
(op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma
Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela
passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no
dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta
falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão,
e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla
maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma
estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do
fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além
de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do
vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo.
Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi
fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração
tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos
empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de
fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda.
Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a
pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem
culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante
portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a
operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia
estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão
pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma
classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização"
de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em
sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano
e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no
pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de
ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica
quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço
também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele
representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo
dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao
tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de
alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua
liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado.
Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como
uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e
clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao
perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então,
erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém
conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de
lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda
numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações
e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência
dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se
"quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito"
abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar.
Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o
mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do
Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico
e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam
personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas,
miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são
descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços,
como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas
irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op.
cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do
homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha,
"a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa
homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava
a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de
espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía,
numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre
entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam
como a uma pessoa do mesmo sexo; [...].(op.
cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se
geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no
caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para
"crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida:
personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se
inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram
influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou
o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o
que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma
leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p..
102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas
nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito
livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração
diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença
de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica,
uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os
"bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida
em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças,
discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões
de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a
moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua
afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio
em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha
estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se
para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico
o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço,
era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a
encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira
de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção
da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa -
apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não
conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de
Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p.
129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal
que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do
meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como
determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância).
No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não
tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a
moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito
de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual
de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e
o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência
animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara
explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado,
apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista,
[...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a
comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e
o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu
Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a
fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça
vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro
valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...]
Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar
nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham
covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?...
[...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro
sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no
mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a
senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e
querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés
que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens!
homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p.
140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida
familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já,
prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição":
[...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício
como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da
estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego;
fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus
lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela
boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si.
(op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista,
segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo
ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração"
para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a
imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de
Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o
masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie,
os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em
diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis
[...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p.
218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se
repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo
vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava
preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia
mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois
sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado.
Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por
sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara
ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo
acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do
meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma
sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo
europeu.
(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo
sábado, 12 de abril de 2025
terça-feira, 8 de abril de 2025
Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes
Rosa Maria Martelo, in “A luva e a mão (uma história de
salvação)”
terça-feira, 1 de abril de 2025
"Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes: análise e interpretação do poema
1. Transcrição do poema
2. Análise e interpretação do poema
domingo, 30 de março de 2025
sábado, 29 de março de 2025
Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde
Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.
Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.
Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.
O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.
No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).
Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.
Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Análise da cantiga "A donzela de Biscaia", de Rui Pais de Ribela
Esta cantiga de cariz satírico, da autoria de Rui Pais de Ribela, é constituída por três coblas, formadas por um dístico seguido de refrão, com rima emparelhada e versos heptassílabos alternando com pentassílabos (no refrão).
A composição poética, de escárnio, visa uma jovem mulher, uma donzela, natural de Biscaia, um senhorio asturiano, cuja capital era Bilbao, da qual o trovador se queixa por se recusar a encontrar-se consigo: “ainda mi a preito saia / de noit’ou luar”, isto é, nunca saía ao encontro dele de noite, ao luar. Apesar disso, embora desprezado pela donzela, o trovador tenta encontrar estratégias para a possuir, recorrendo a jogos de linguagem.
Assim, no segundo terceto, volta a enfatizar a ideia de que ela o rejeita ou despreza, o que é recente, como se pode observar pela presença do advérbio de lugar «agora», por isso afirma esperar que nunca o procure, ou seja, a mulher pode acabar por se lhe render ou necessitar dele de alguma forma.
A terceira estrofe abre com uma anáfora com o verso inicial da anterior que reafirma o seu sentimento de amesquinhamento pelo facto de a donzela o rejeitar constantemente, no entanto mantém a expectativa de a encontrar, de noite, ao luar. Note-se que essa expectativa, por parte do trovador, de se encontrar com a mulher é expressa no refrão, especificamente da segunda e da terceira coblas.
As referências à noite e ao luar importam para a cantiga um tom malicioso, pois o encontro desejado entre ambos teria lugar nessa altura do dia, propícia a encontros amorosos mais íntimos e recatados, afastados dos olhares alheios. Ou seja, o «eu» poético desdenha da “donzela de Biscaia” por não o querer e confessa o seu desejo de a encontrar de noite ou ao luar.
domingo, 23 de março de 2025
Análise da cantiga "A Dona Maria há soidade"
Desta cantiga de maldizer, de Lopo Lias, apenas nos chegou uma estrofe, constituída por uma rubrica e uma sextilha. De acordo com a referida epígrafe, a composição poética debruça-se sobre uma mulher casada adúltera, pois “havia preço” com um homem chamado Franco.
Os dois versos iniciais, exatamente iguais entre si, facto que evidencia a dificuldade de arrumação dos que sobreviveram, que é meramente conjetural, identificam, nomeando-a, o alvo da sátira: Dona Maria, que está cheia de saudade porque perdeu um jogral. A mulher elogiava-o (“dizendo del bem”), porém ele não correspondeu (“e el nom achou / que nenhu preito del fosse mover”), mantendo-se indiferente aos avanços dela. Deste modo, D. Maria nada obteve do jogral – “nem bem nem mal” –, o que acentua essa noção da indiferença masculina e, por outro lado, a deixa profundamente triste.
quarta-feira, 19 de março de 2025
segunda-feira, 17 de março de 2025
Análise da cantiga "Vosso pai na rua", de João de Gaia
Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.
A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.
A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.
A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.
Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).
De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”
Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.
O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.
A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).
O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).
sexta-feira, 14 de março de 2025
Cena icónica de Aconteceu no Oeste
Esta fotografia a preto e branco dos bastidores de Era uma Vez no Oeste (1968) transporta-nos de volta à magia da realização cinematográfica. Sob um arco de tijolos envelhecido, o diretor de produção Claudio Mancini assume o papel do irmão mais velho de Harmónica, dando vida a um dos momentos mais inquietantes do filme. Era o início de agosto de 1968, e a equipa trabalhava entre Monument Valley e Mexican Hat, no Utah, captando um flashback que definiria para sempre os temas de dor e vingança da obra.
Na imagem, um membro da equipa segura a claquete, com Era uma Vez no Oeste escrito, marcando mais uma tomada desta cena inesquecível. Cada detalhe, desde as vastas paisagens até à forma como Sergio Leone enquadrava cada plano, transformou esta sequência em pura poesia cinematográfica. E, claro, a banda sonora assombrosa de Ennio Morricone garantiu que a cena permanecesse connosco muito depois do final dos créditos.
terça-feira, 11 de março de 2025
Análise do poema "Vita mutatur", de Ruy Belo
Este poema, da autoria de Ruy Belo, está incluído na secção “Tempo” do seu primeiro livro, AGRE, r tem como tema a mudança. O título, em latim, significa “vida mudada” e remete exatamente para a questão da mudança, neste caso, duas: uma que já aconteceu e que se relaciona com a problemática da separação e outra que está a começar a acontecer e que designa o começo de uma vida dedicada à escrita da poesia.
O sujeito poético dirige-se a um «tu», a um interlocutor indeterminada (“Caíste”), que designa também, por implicação, uma versão passada / infantil do «eu». Ora, esse «tu» caiu na “orla” do sujeito, isto é, adquiriu uma posição horizontal, posição de morto. O nome “orla” significa limite ou fronteira, o limiar entre o «eu e o «tu», enquanto o verbo «cair» indica uma aproximação involuntária de alguém. Essa queda ou morto do «outro» equivale à morte do sujeito nele (“nunca até hoje eu morrera tanto em alguém”), o que implica uma identificação entre o «eu» e o «tu», estando assim em causa, nessa morte, a morte ou perda de uma versão passada do sujeito. Além disso, ela é associada, através de uma comparação com “a nespereira do quintal”: a queda da figura humana é mais intensa e impactante do que a da árvore.
O “paul de malmequeres” cria uma imagem de um pântano ou charco cheio dessas flores, um espaço onde os ralos faziam ecoar seus sons na noite, como uma espécie de mantra natural que reforça a passagem do tempo. A ideia de repetição indicia uma espécie de perpetuação do canto, da melancolia ou da saudade. No paul, figuravam também os «abibes», aves migratórias que carregam consigo o tempo e as mudanças das estações, representando ciclos de renovação e retorno. Mesmo com a passagem do tempo, há algo que permanece e que se repete ou renova ciclicamente, ao contrário do que sucede com o sujeito poético., que sofreu a mudança. Os malmequeres são flores frequentemente associadas ao destino e ao amor (recorde-se o famoso jogo de arrancar pétalas – “bem-me-quer, mal-me-quer”), o que pode apontar para a noção de um amor que persiste, mesmo no contexto da dor e da ausência. A natureza não acompanha a secura do luto, pois permanece fértil.
Observe-se que a primeira mudança antes referida está dependente da morte graduada presente no verso inicial do poema. De facto, no seu prefácio à segunda edição de AGRE, Ruy Belo afirma que, apesar de sempre ter vivido em crise, estava a atravessar uma crise profunda quando escreveu os poemas que constituem a obra. Neste contexto, o «agora» a que se refere o verso 17 equivale à fase da crise profunda, que, por sua vez, se relaciona com a decisão de entrega total à arte poética. De acordo com as palavras do próprio Ruy Belo, essa crise tem como tema limite “o da solidão no meio da cidade: o do homem que não dispõe de «ombro para o seu ombro», que tem o «destino da onda anónima morta na praia» (…) que «vai só», que «não tem ninguém».” A crise, de acordo com o próprio poeta, relaciona-se, portanto, com o distanciamento ou a queda de um “amigo”, e que se torna ausente para o sujeito. O «tu» será, por conseguinte, o “ombro para o seu ombro” de que não se dispõe.
O período em que estava mais vivo no interlocutor relaciona-se com o período da infância do sujeito poético. De facto, a sua morte ou queda representa a perda de algo que se teve na infância, como se depreende dos seguintes versos: “O mesmo céu que tu me desdobraste sobre a infância / acaba de depor na tua fronte / o peso excessivo de uma estrela”). A partir desse instante, o céu, que ele desdobrava sobre a infância do sujeito, foi-se tornando cada vez mais distante, adquirindo no presente o peso de um passado inacessível (“excessivo peso de uma estrela”). A queda (agora mais definitiva) de um ser provocou uma descontinuidade temporal.
A partida do amigo faz com que a história recomece, ou que o sujeito poético se separe de uma versão passada de si próprio (quando era um só com “amigo”). Deste modo, estamos perante um cenário em que o «eu» se esqueceu de um passado (que, por isso, deixa de ter uma função identitária), ou, se quisermos, estamos na presença de um «eu» passado que morreu. Deste modo, o passado torna-se inacessível, passa a ser um “outro mundo”, como afirma no poema “As velas da memória”. São estas ideias que encontramos nos versos seguintes: “Com a tua partida a minha história começa / a escrever-se para além da curva / onde à tarde rompia a camioneta das cinco: / nenhum outro veículo vinha / tão cheio de longe e de tempo”.
Estes versos abrem a porta para a segunda mudança. De facto, a partida do «tu» parece originar ou, pelo menos, servir de base à segunda mudança na vida do sujeito poético. Ora, esses versos têm uma dupla função: por um lado, apontam para a descontinuidade temporal que faz do passado uma outra vida; por outro, remetem para a inauguração de uma nova vida: “(…) a minha história começa / a escrever-se (…)”.
De acordo com a terceira estrofe, a queda do «tu» é representada por meio da perda de um «poder» que está relacionado com a unificação de um rosto / identidade: “Não mais o teu olhar te defende”; “já a tua presença não reúne / as linhas divididas desse rosto / que essas humildes coisas tinham.” Esse «poder» é também da versão passada do sujeito poético, quando estava mais vivo no «outro», isto é, quando dispunha de um “ombro para o seu ombro”. Sem ele, fica circunscrito à condição física e à identidade civil: “Tens finalmente aquele metro e oitenta / a que te circunscreviam civilmente”.
As pálpebras descidas remetem para o fechar dos olhos, para a queda, para a morte, e deixam-no sem defesa, sem poder. O uso do advérbio «agora» sugere um contraste definitivo com um outro tempo, um passado. O olhar, frequentemente associado à identidade, à comunicação e à defesa simbólica do mundo, já não protege o sujeito, o que sugere vulnerabilidade. A queda, a morte, deixa o «eu» totalmente exposto aos olhares alheios, sem qualquer resguarda. Além disso, reduzido à materialidade do corpo, perde o mistério que o caracterizava. A vida, antes complexa e prenhe de nuances, reduziu-se agora a algo simples e inalterável. Por outro lado, a partida foi sinónimo de desarranjo e desordem. A imagem das gavetas abertas e da secretária desordenada sugerem que a pessoa partiu de forma repentina, sem tempo para arrumar os seus pertences. As gavetas abertas simbolizam segredos, objetos, memórias que continha, revelados.
A presença do «outro» dava sentido e unidade às coisas, incluindo o próprio rosto, que agora parece fragmentado. A sombra, que representa a extensão do corpo no espaço sob o efeito da luz, já não está lá para envolver os pequenos segredos da vida quotidiana. A expressão “humildes coisas” indicia um quotidiano simples, talvez um espaço doméstico, onde tudo girava em torno do «tu». A sua partida é assinalada pela ausência da sua sombra: se esta acompanha o corpo, o físico, e já não está presente, quer dizer que o «tu» está ausente. No quotidiano, havia pequenas intimidades e histórias (“domésticos e ínfimos segredos”) que lhe pertenciam. Com a sua ausência, eles tornam-se irrelevantes ou são dissipados.
Com a partida e consequente ausência do «outro», fica reduzido à sua condição física e à identidade civil: “Tens finalmente aquele metro e oitenta / a que te circunscreviam civilmente”. O «eu», antes repleta de complexidade e experiências, fica reduzido a um dado físico e civil. É a única dimensão que lhe resta.
A derradeira estrofe do poema aponta para o futuro, propondo uma nova forma de vida, na e pela poesia, que resulta do aumento da morte do «amigo». Assim sendo, a poesia constitui um modo de lidar com a separação. No entanto, a estrofe apresenta um dado curioso: levar mais longe a vida do «amigo» perdido (e, por implicação, do próprio sujeito poético sucede estendendo a sua morte pela terra: “Levarei mais longe a tua vida e cobrirei / da tua morte um pouco mais de terra”. A separação do «eu» em relação a algo perdido aparece muitas vezes associada à mudança da posição vertical para a horizontal, ou seja, a figura do «tu» que se perdeu deixa de estar de pé e dispersa-se pelas coisas. A poesia de Ruy Belo constitui uma forma de procurar o «amigo» em lugares diversos através da poesia.
No entanto, a solução proposta não vai no sentido de recuperar o que se perdeu ou reverter a situação, mas precisamente no sentido de aumentar a separação. Deste modo, podemos concluir que a solução que a poesia possibilita para o problema da separação está na própria separação, isto é, a doença cura-se pela própria doença.
Em suma, a solução tem a ver com uma ficção de morte ou com a invenção de uma forma de vida além da morte. A poesia constitui uma vida depois de uma morte. Assim sendo, pode aplicar-se, neste contexto, o aproveitamento do lema bíblico por parte do poeta: “Vita mutatur non tollitur”, isto é, vida mudada, não acabada.
Por outro lado, é visível uma cisão entre o sujeito e um “objeto perdido” / ”amigo” (e, por implicação, o mundo), que parte de uma fissão interior. Com efeito, a poesia de Ruy Belo é uma incessante reflexão sobre o tempo e a morte “e a certa identidade do sujeito que em vão procura o lugar originário onde encontraria o ser na sua totalidade”. Por outro lado, dado que o que se perdeu faz parte de um passado inacessível, o sujeito poético caracteriza-se por uma condição tardia que faz com que não se consiga situar em relação ao passado (isto é, encontrar a casa, habitação, estabilidade, etc.).