Português: Caracterização de Jerónimo

sábado, 18 de janeiro de 2025

Caracterização de Jerónimo

    Os naturalistas acreditavam que o indivíduo era mero produto da hereditariedade e do meio em que vivia e sobre o qual agia. É o que sucede, no caso da literatura realista produzida em Portugal durante o século XIX, em Os Maias. De facto, Eça de Queirós aborda a questão através das personagens Pedro da Maia e Eusebiozinho, cuja fraqueza, defeitos e comportamentos são justificados pelos traços hereditários, pela educação que tiveram e pelo meio em que cresceram. Voltando a O Cortiço, Jerónimo é a figura que cumpre as leis naturais do meio e da raça, uma personagem que passa por transformações ao longo da narrativa. Jerónimo era um português forte, trabalhador e honesto, que chegou ao Brasil com o objetivo de ascender socialmente, trazendo consigo uma filhinha e a sua mulher, Piedade. Começa por trabalhar numa fazenda onde "tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações nem futuro, trabalhando eternamente para outro" (AZEVEDO, 2004, p. 56). Insatisfeito, resolve abandonar tal atividade e ruma para a Corte onde, conforme os patrícios, o homem determinado consegue obter uma boa disposição. Chega ao cortiço com o intuito de enriquecer. Vive para a mulher e vice-versa. O V capítulo narra a mudança de Jerónimo e da família e a reação da comunidade, nomeadamente os comentários e os cochichos das lavadeiras. Após alguns meses, o casal acaba por conquistar a total confiança dos habitantes do cortiço, por ser sincero, de caráter sério e respeitável. Leva uma vida simples e a sua filha estuda num internato: Aos domingos, vão às vezes à missa ou, à tarde, ao passeio público, ocasiões em que o homem veste uma camisa engomada, calça sapatos e enfia um paletó, enquanto a esposa enverga o seu vestido de ver a Deus.
    Todo o capítulo faz referência às virtudes de Jerónimo. É comparado a um Hércules, tipo clássico-mitológico, robusto, que tinha bastante força e realizara grandes feitos. O português é racional, possui valores morais, está ligado a tradições lusitanas, à família e ao trabalho. Trabalha duro na pedreira de João Romão e distingue-se entre os outros operários, de modo que "o patrão o converteu numa espécie de contramestre" (op. cit., 2004, p. 56). Possui "a força de touro". Jerónimo é, pois, um homem honrado, comedido e mantém um comportamento saudosista de imigrante português, procurando ser fiel às origens, o que se revela no hábito de se sentar à porta, dedilhando os fados da terra natal. "Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância" (op. cit., 2004, p. 59). Porém, Jerónimo começa a sofrer a influência do ambiente sensual e desregrado que caracteriza o cortiço. Tudo começou quando, depois de passar uma temporada com Firmo, seu namorado, Rita Baiana, uma sedutora mulata brasileira (raça e meio) retorna ao cortiço. Esse regresso é marcado por uma festa, na qual Rita acaba por despertar a paixão do português quando entra na roda para dançar: De facto, ela penetrou na roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a deixava ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer enorme, em que não se toma pé e nunca se encontra fundo. Jerónimo encanta-se com a dança de Rita, o que provoca os ciúmes de Firmo. "É o fado português de Jerónimo se batendo contra o choro brasileiro do capoeirista Firmo". (MARQUES Jr., 2000, p. 239). Hábil na capoeira, Firmo abre a barriga do rival com uma navalha, fugindo logo depois. O português vai parar ao hospital e, quando sai, chama os amigos e, todos juntos, vão à "praia da Saudade", onde matam o outro a pauladas.
    Rita simboliza o Brasil de campos escaldantes que penetrou na alma de Jerónimo, oriundo de Portugal, um pais de terras frias. O português é um homem de moral rígida, contudo acaba por perder a sua antiga fibra ao entregar-se uma vida indisciplinada. O sol, a natureza, a sensibilidade e o calor da mulata modificaram o seu modo de viver. António Cândido, em O discurso e a cidade, explica que o abrasileiramento de Jerónimo é regido quase ritualmente pela baiana, que o envolve em lendas e cantigas do Norte, lhe dá pratos apimentados e o corpo "lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas aromáticas". Este abrasileiramento é expressivamente marcado pela perda do "espírito da economia e da ordem", da "esperança de enriquecer". A sua paixão violenta é apresentada por Aluísio de Azevedo como consequência das "imposições mesológicas", sendo Rita "o fruto dourado e acre destes sertões americanos". No que diz respeito a esta questão, existe n’ 0 Cortiço um pouco de Iracema coada pelo Naturalismo, com a índia = virgem dos lábios de mel + licor da jurema, transposta aqui para a baiana = corpo cheiroso + filtros capitosos, que derrubam um novo Martim Soares Moreno finalmente desdobrado, cuja parte arrivista e conquistadora é João Romão, mas cuja parte romântica é fascinada pela terra e Jerónimo. Iracema e Rita são igualmente a Terra. Lá, com filtro da jurema, aqui, com o do café, que possui um sentido afrodisíaco e simbólico de beberagem através da qual penetram no português as seduções do meio: "[...] a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores". (CANDIDO, 2004, pp. 120-121). A atração do português pela mulata é causada pela tropicalidade, a natureza brasileira que foi fundamental para a sua mudança. Mas não é só a natureza que justifica a transformação. De facto, as diferenças raciais também têm um peso considerável, pois a sensual Rita é mulata. Ela representa a raça desagregadora. "No Brasil, quero dizer: n' O Cortiço, o mestiço é capitoso, sensual, irrequieto, fermento de dissolução que justifica todas as transgressões e constitui em face do europeu um perigo e uma tentação" (op. cit., 2004, p. 118). Rita e Jerónimo atraem-se impulsionados pelo determinismo do meio e do sangue (raça). O desejo pela mulata constitui um dos fatores da queda do lusitano, que "abrasileirou-se", como afirma o narrador. O erotismo de Jerónimo demonstra que ele cedeu aos instintos e se nivelou aos nativos brasileiros. Este seu erotismo atraiu o brasileiro, no caso, representado pela mulata Rita, porque o português pertencia a uma "raça superior", a branca. O narrador evidenciou traços de Jerónimo que este mesmo desconhecia, como, por exemplo, na descrição do início dos sentimentos que o português nutre pela brasileira ao vê-la dançar. "Isto era o que Jerónimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber [...] só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez [...]" (AZEVEDO, 2004, p. 78). Enquanto seguidor de teorias científicas, o narrador pode saber o que influencia uma personagem; mas, como razão da experiência, essa personagem não tem ciência do que lhe vai acontecer. No início da narrativa, Jerónimo era bastante equilibrado, mas aos poucos sofre uma grande transformação, pois, influenciado pelo novo meio geográfico (Brasil) e social (a comunidade) em que se integra, chega ao ponto de perder a razão e a sensatez que haviam impressionado os moradores do cortiço. Assim sendo, essa mudança é fruto de um "abrasileiramento" da personagem.

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