Pombinha
é filha da lavadeira Dona Isabel, portuguesa, viúva, cujo marido se suicidou
por causa da falência da sua loja de chapéus. Mãe e filha passam a morar no
cortiço de João Romão, no cómodo número 15. Pombinha é uma jovem brasileira bonita,
loira, pálida, meiga, frágil, nervosa, de 18 anos, uma adolescente virginal com
a saúde debilitada. O seu calçado preferido são as botinas e os sapatinhos,
sempre acompanhados de meias de cor. O vestido de chita estava sempre engomado
com grande esmero, e, como complemento da sua vestimenta, usava joiazinhas
graciosas. Aos domingos ia à missa acompanhada da mãe. Sempre bem arrumada,
trajando vestido de cetineta, nas mãos trazia um livro de rezas, acompanhado de
um lenço e uma sombrinha.
Diferente
das outras jovens colegas suas do cortiço, Pombinha não tinha o perfil de quem
morava num cortiço. Era considerada a Flor do Cortiço pelos moradores. A sua
postura de menina flor de boa família conquista toda a gente. Dona Isabel não
poupou sacrifícios para dar à filha a melhor educação que pôde e até lhe
custeou um mestre para lhe ensinar francês. Era proibida pela mãe de lavar e
engomar roupas, como acontecia com as outras mulheres e jovens do cortiço,
devido à fragilidade da sua saúde. Porém, Pombinha não deixava de colaborar na
renda familiar da casa. Assim, três vezes por semana, servia de dama, numa
sociedade, pela quantia de dois mil-réis, por cada noite, para uma clientela de
caixeiros do comércio, cuja proposta era a aprendizagem da dança. Foi nesse
ofício que Pombinha conheceu o noivo, João da Costa. Dona Isabel, no entanto,
só permitiria o casamento entre ambos quando Pombinha alcançasse as regras
menstruais. Desse casamento dependia a volta de mãe e filha para a classe
social de origem de ambas, pois Costa tinha um bom emprego.
Pombinha
tinha no cortiço funções espontâneas de escrever cartas para os que lhe
pedissem, de fazer listas das lavagens de roupas para as lavadeiras, de fazer
contas e de ler as notícias de jornais, trazendo as notícias de fora para
dentro do cortiço. É pelo conhecimento da leitura e da escrita que a jovem é
detentora e cúmplice dos segredos da gente do cortiço, que lhe são revelados por
meio da escrita das cartas. Isso faz de Pombinha o grande diferencial
necessário para a vida do cortiço. Os moradores, agradecidos, enchiam-na de
presentes, facto esse que contribuía para Pombinha usufruir de certo luxo, o
qual era considerado insignificante pela sua madrinha Léonie, que queria que a
afilhada tivesse bem mais para si, e faria tudo que estivesse a seu alcance
para isso acontecer. Na realidade, Léonie desejava a doce virginal Pombinha, e
este desejo era um segredo muito bem guardado. Certo dia, Pombinha e a mãe são
convidadas para um jantar na casa de Léonie. Depois do repasto, Pombinha não
amanheceu bem e lamentou aquele jantar. Não esperava um certo comportamento da
madrinha. Foi apanhada de surpresa com certas atitudes inconvenientes
maliciosas. Na verdade, esse jantar de domingo foi uma preparação de Léonie
para atrair Pombinha para si. Ela conduz sua afilhada para aqueles divãs
confortáveis da sua sala, apropriados para ocasiões especialíssimas, e assedia
Pombinha sexualmente: "e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma
da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e
pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados". (AZEVEDO,
2007, p.147). A violência sexual da cena é explícita: “Pombinha arfava,
relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu
mesquinho peito de donzela impúbere e o roçar vertiginoso daqueles cabelos
ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram
por foguear-lhe a pólvora do sangue (...). Agora, espoliava-se toda, cerrando
os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra,
por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de
égua, bufando e relinchando.” (AZEVEDO, 2007, p. 148-149). Leónie, mulher
experiente, não teve dificuldades em mascarar os seus propósitos lúbricos
traiçoeiros com a finalidade de possuir a ingénua Pombinha: “E metia-lhe a
língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus
beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe
convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que,
com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo
ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado
(...).” (AZEVEDO, 2007, p.149).
Como se pode observar a iniciação sexual da Pombinha deu-se de forma violenta, através de um estupro, o que mostra um profundo preconceito existente contra a homossexualidade na época, além de ser tratado como algo patológico. Na obar de Aluísio Azevedo, acabou por ser ainda relacionado com a violência sugerida por um estupro:
"E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha. A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.
- Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula. E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, eprecipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgarlhe com os lábios o róseo bico dopeito.
- Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando verpreciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
- Que mal faz?... Estamos brincando... - Não! Não! balbuciou a vítima, repelindo-a. - Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo emcontato com o dela todo o seu corpo nu." (AZEVEDO, 1997, p.71).
Depois do jantar, às oito horas da noite, Dona
Isabel e Pombinha voltam para a estalagem. Pombinha, muito contrariada, não
consegue dormir bem à noite. Pela manhã sente dores uterinas e por volta do
meio dia sai para um passeio no capinzal, atrás do cortiço. Deita-se, adormece
e sonha que está dentro de um jogo voluptuoso de luzes, sol, borboleta, fogo,
rosa, forma de menina. É o sonho repleto de poesia e a emoção dos sentidos da
puberdade de Pombinha: “Na doce tranquilidade daquela sombra morna, (...) o
calor tirava do capim um cheiro sensual. A moça fechou as pálpebras, vencida
pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga
para o ar, braços e pernas abertas. Adormeceu. Começou logo a sonhar (...). E
viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador,
que lhe batia de chapa sobre os seios. (...), no regaço de uma rosa
interminável, (...) espreguiçou-se toda (...), o sol a fitava obstinadamente,
enamorado das suas mimosas formas de menina. (...), o fogoso astro tremeu e
agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e (...)
precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo,
adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem
permanecia (...).” (AZEVEDO, 2007, p.152 – 153). Ou seja, após a ocorrência do fato acima transcrito, Pombinha volta para a sua casa, arrepende-se e sente-se culpada diante do ocorrido, vai ao um bambuzal para refletir e acaba por adormecer. Tem um sonho e ocorre a sua primeira menstruação. Sente-se aliviada, e começa a refletir sobre o futuro casamento. O sonho púbere da Pombinha
revela a força da natureza no comando e na transformação da vida, num
entrelaçamento de vida animal e vegetal. O calor e o brilho do astro rei,
metamorfoseado em borboleta, confidencia a Pombinha o percurso bem traçado da
natureza na transformação de menina para mulher: “Uma sofreguidão lúbrica,
desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse
nela, (...). De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a
flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e
ávido daquele contato com a luz (...). A borboleta não pousou; mas, num
delírio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de
poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e
suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante. Nisto,
Pombinha soltou um ai formidável e despertou (...). E feliz, (...) sentiu o
grito da puberdade sair-lhe afinal das estranhas, em uma onda vermelha e quente
(...). O sol, vitorioso, estava a pino (...), abençoando a nova mulher que se
formava para o mundo.” (AZEVEDO, 2007, p.154 – 155). Dona Isabel agradece a
Nosso Senhor Jesus Cristo a bênção recebida. Esse sangue abençoado significava
para as duas a ascensão para uma vida melhor. João da Costa, o noivo de
Pombinha, foi avisado e solicitado que marcasse o casamento. Pombinha deixou o
curso de dança e agora recebia o noivo todas as noites. O casamento foi
marcado. Mãe, filha e noivo iriam morar juntos. Mas Pombinha mudou. A menina
pura, ingénua, dócil, agora era mulher. Mulher letrada do mundo. Quando o seu
ventre fora visitado pelo fogo sensual do sol, este agraciou-a com o
conhecimento da vida. Da sua vivência de escrevente de cartas, decifrou os
segredos alheios e conheceu a fraqueza humana. Das fotos que Léonie lhe
mostrara dos velhos cidadãos "honrados" pela sociedade, compreendeu a
impotência do ser masculino diante das garras impiedosas e manipuladoras da
prostituta, sugando-o no seu orgulho, na sua honra, nos seus bens, até com o
extermínio da sua própria vida. E Pombinha descobriu a sua superioridade de
mulher-fêmea, frente à submissão do sexo masculino. Compreendeu que não poderia
amar o seu futuro marido, pois Costa era igual aos outros na sua passividade,
sem desejos próprios, sem ambição, sem capacidade de superação; não passava de
um pobre diabo. Casar-se-ia só para satisfazer Dona Isabel, sua mãe.
Durante
os dois primeiros anos de casada, Pombinha já dava sinais que não suportava
mais o marido, mas esforçou-se para ser boa esposa e mulher honesta. Aguentou o
quotidiano de um casamento já desafinado, com um marido sem ideais, com gestos
pequenos. Atendeu-o na sua mesquinharia de marido ciumento chorão, cuidou da
sua pneumonite aguda. Além disso, reprimiu os seus desejos de ver o belo, a
arte, a originalidade, em prol da vida estreita do marido negociante sem o
grande futuro. De um casamento desafinado a dois, passou a ser a três, por
conta e obra de Pombinha, que caiu nos braços de outro mais talentoso, poeta e
libertino. O marido começou a desconfiar dela e decidiu espiá-la pela rua, e viu
Pombinha não mais com o poeta libertino e, sim, com um artista dramático. Não
só rompeu com a esposa como entregou a sua mulher à mãe, Dona Isabel, e fugiu
para São Paulo. Para desgosto de Dona Isabel, depois de algum tempo, Pombinha
saiu de casa e passou a morar num hotel com Léonie. A mãe chorava a filha
perdida, mas, por necessidade, aceitou o dinheiro que Pombinha lhe passou a enviar
regularmente. Mudou-se depois para a casa da filha, onde se escondia dos
fregueses dela. Pombinha entregou-se à orgia, vivia ébria. A mãe desconhecia a
filha e adoeceu; foi para uma casa de saúde, onde morreu.
Léonie
e Pombinha tornaram-se amigas íntimas. Dominavam como ninguém o ramo da
prostituição. Viviam cercadas de luxo e prazeres, carro descoberto, teatro,
jantares. Entre os seus clientes contavam-se os ricos fazendeiros do café.
Pombinha sabia como tirar dinheiro do mais avarento deles. Conhecia todos os
segredos da profissão: “Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis
naquela inquebrantável solidariedade que fazia delas uma só cobra de duas
cabeças, dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a
parte onde houvesse prazer; (...), no teatro, em um camarote de boca, chamavam
sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política (...), ou arrastavam
para os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de
café, (...). Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perita
no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto
lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo
fôlego (...).” (AZEVEDO, 2007, p. 258). Para os habitantes do cortiço, Pombinha
continuava a ser a mesma Flor, principalmente quando ela e Léonie abriam as
suas bolsas e soltavam dinheiro, especialmente para Piedade, mulher de Jerónimo,
cuja filha, Senhorinha, Pombinha "protegia" com as mesmas intenções com
que outrora foi "protegida" por Léonie. Pombinha tinha o hábito de
passear com os seus clientes pelo centro da cidade. Certa vez, foi vista,
coberta de jóias, com Henrique, aquele que estivera com Estela, mulher de
Miranda.
Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.
Sem comentários :
Enviar um comentário