A família Miranda mora num belo
sobrado, localizado à direita da venda do proprietário João Romão. O sobrado é
grande, espaçoso, possui nove janelas com peitoril que se abrem para o terreno
do cortiço, do mesmo proprietário da venda. Estela é brasileira, esposa do
português Miranda, tem uma filha de nome Zulmira; é rica, pertencendo à
aristocracia decadente. Estela é uma mulher branca e pálida; o seu pescoço é muito
branco é liso, sem rugas e grosso. Os cabelos e a pele são perfumados, enquanto
os lábios possuem uma malícia sensual. Ela costuma usar grandes leques para se
abanar por causa do calor, acompanhado de um penteador de cambraia com enfeites
de laços cor-de-rosa, com pretensão de nobreza.
O
casamento de Estela com Miranda é um matrimónio de aparências, de fachada, servindo
apenas para o marido enriquecer e ascender social e economicamente. Por sua
vez, Estela é uma mulher de muitos homens, "levada da breca"; tem
atitudes escandalosas que beiram a leviandade. É casada há treze anos, mas
adúltera desde o segundo ano do enlace. Foi apanhada em flagrante a cometer adultério
pelo próprio marido. Miranda desejou despachá-la, porém, a sua casa de comércio
era alicerçada sobre o dote da mulher: oitenta contos distribuídos em prédios e
ações da dívida pública. Sendo assim, Miranda preferiu aguentar a esposa
adúltera a ter que voltar à pobreza. O real motivo da mudança de residência da
Rua do Hospício, que ficava no centro da cidade, onde o casal morava e tinha o
seu estabelecimento comercial (uma loja de fazendas por atacado, para o sobrado
recém-comprado), foi o de afastar Dona Estela dos seus caixeiros.
Na
sequência, o casal passou a dormir em quartos separados. Miranda e estela odiavam-se
mutuamente. O nascimento da filha Zulmira foi um desastre na vida do casal. Caricatamente,
Estela tinha dificuldades em amar a filha, por supô-la filha do marido, ao
passo que o marido detestava a criança por não ter certeza de ser efetivamente
seu pai biológico.
Certa noite, Miranda sentiu o
desejo de estar com alguma mulher. Não encontrando em casa nenhuma criada, foi
ter com Estela no seu quarto. Ela dormia. Com a aproximação do marido, acordou
e, fingindo dormir, permitiu o “delito”. Miranda continuava a odiá-la,
configurando o «encontro» um momento de satisfação de uma necessidade física. Curiosamente,
o facto de o homem se ter colocado numa posição de «não se servir» da esposa, a
responsabilidade de a desprezar, tiveram como consequência assanhar nele o
desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. A mulher dormia a
sono solto, Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama. Estela torceu-se
sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para frente e
patenteando uma nesga de nudez. O Miranda atirou-se contra ela, que, num
pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, se desviou, tornando logo
e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados,
fingindo que continuava a dormir.
Estela
sabia que teria o marido, novamente, na sua cama. Ela tinha isso como certo,
pois conhecia-o bem. Era só esperar e depois saber recebê-lo dentro daquele
“script” tão bem preparado por si. Miranda, arrependido amargamente pelo ato
cometido, compreendeu o erro que acabara de cometer e retirou-se, lamentando-se,
para o seu quarto de “solteiro”. No dia seguinte, ambos se viram, evitaram-se e
continuaram a odiar-se. Porém, no mês seguinte, Miranda retornou ao quarto de
Estela, que, fingindo dormir, esperou que o marido se aproximasse e, quando
este lhe tocou, foi surpreendido por uma gargalhada lançada ao seu rosto.
Desejou retirar-se, mas Estela aprisionou-o, apegando-se ao seu corpo,
cegando-o de beijos. Possuíram-se um ao outro como nunca tivera acontecido
antes em todos os anos de casamento: “A mulher (...); passou-lhe rápido as
pernas por cima e, grudando-se lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de
beijos. Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer
(...). E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de
animal no cio. E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela
circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade
daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda,
rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o
também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus,
metendo-lhe pela boca a língua húmida e em brasa. Depois, num arranco de corpo
inteiro, (...) estatelou-se num abandono de pernas e braços abertos, (...) como
se a tivessem crucificado na cama.” (AZEVEDO, 2007, p. 15).
Desta
vez, Miranda só saiu do quarto de Estela pela manhã, e a partir daí ficou
estabelecido entre ambos o hábito conjugal. Mas esse hábito não modificou a
repugnância moral que um sentia pelo outro e que se transformou no combustível
que movia a tara luxuriante entre os dois. Este estado de coisas durou dez
anos, ate que Miranda esfriou as suas "crises" conjugais e deixou de
comparecer no quarto de Estela com regularidade. A partir daí, Estela reincidiu
no adultério, estimulando os caixeiros do marido quando estes subiam, ou para o
almoço, ou para o jantar. Essa situação provocou em Miranda o desejo de se mudar,
por isso decidiu comprar o sobrado vizinho a João Romão. Por essa época, passou
a morar no sobrado da família Miranda, por motivo de estudos, o jovem Henrique
de 15 anos, vindo de Minas Gerais, filho de um fazendeiro, cliente importante
da loja comercial de Miranda. Dona Estela apegou-se muito ao jovem Henrique,
passou até a administrar a sua gorda mesada. Sentia prazer em passear com ele,
sua filha e Valentim pela praia ao anoitecer. Valentim era filho da escrava
alforriada por Estela. Esta gostava mais de Valentim do que da própria filha.
Outro
morador da casa da família Miranda era Botelho, um parasita manipulador dos
moradores da casa. Era confidente infiel, tanto de Estela como de Miranda. Ela
expunha a Botelho todo o desprezo que nutria pelo marido. Lamentava precisar
ter ao seu lado, por exigência da sociedade, um esposo, mesmo que este fosse um
traste; e, se permitia que ele se chegasse a si, era só para evitar
aborrecimentos. Entretanto, Estela foi novamente flagrada a cometer adultério,
desta vez por Botelho. Ao chegar antes da hora a casa, o rapaz deparou com Estela agarrando-se no
quintal do sobrado com Henrique, mas justificou a falha da mulher com o marido
omisso e a jovialidade dela.
A fama
de mulher fogosa de Estela ia longe. Leocádia, a lavadeira do cortiço, garantiu
que, certa vez, olhando por cima do muro do pátio do cortiço, a vira agarrada
ao estudante Henrique numa atitude bem amorosa, e, quando perceberam que
estavam a ser observados, fugiram velozmente. Alexandre, nada surpreso com a
revelação de Leocádia, confirmou que também já vira, através da sombra de
Estela refletida na parede, um agarramento dela com um sujeito barbudo, careca,
que aparecia por lá uma vez por outra.
Entretanto,
Miranda foi agraciado pelo governo português com o título de Barão do Freixal.
Haveria faxina e festa no sobrado. Dona Estela, de penteador de cambraia com
enfeites de laços cor-de-rosa, dava ordens aos criados, abanando-se com o seu
leque enorme, levantando a saia para não a sujar na água suja da limpeza da
casa. A festa foi muito concorrida e farta em comida e bebida. Ao romper da
alvorada, a pedido de Dona Estela, houve queima de fogos com banda de música. E
Miranda, muito bem vestido, aparecia vez por outra a uma das janelas do lado da
mulher ou da filha, agradecendo para a rua. Estela, já com uma filha de dezassete
anos, às vésperas de um casamento arranjado com João Romão, ressentia-se da
chegada da velhice. E com a velhice perdeu dois dentes, pintou os cabelos,
apareceram rugas e perdeu a malícia dos lábios; porém, o pescoço estava firme e
belo como antes, assim como os seus braços e os seus passos firmes. Permaneceu
sempre ciente do dever cumprido e da importância de saber ser ela mesma.
Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.
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