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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Amigas, eu oí dizer", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga, da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal, é constituída por duas sextilhas, formadas por uma quadra seguida de refrão em forma de dístico, antecedidas por uma rubrica. Esta composição poética, bem como outra do mesmo trovador, têm a aparência de duas cantigas de amigo vulgares (a figura feminina comenta os seus amores com as amigas), porém vêm acompanhadas de rubricas que as contextualizam: foram feitas “a Dom Anrique em nome da rainha Dona Joana, sa madrasta, porque diziam que era seu entendedor”. Quer isto dizer que estamos perante cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X, Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado, D. Henrique, irmão do rei. Apesar de a acusação poder ser mais fictícia do que real, ambos os poemas se referem a factos históricos concretos ocorridos no âmbito do conflito que estalou entre os dois irmãos. De facto, ambos entraram em litígio pouco tempo depois da conquista de Sevilha, ainda no tempo de Fernando III, o qual se prolongou durante vários anos. A cantiga remete para um dos episódios finais da disputa, o recontro que opôs as tropas reais e as de D. Henrique (senhor de Morón), perto de Lebrija, no qual este último foi derrotado, derrota que essa que o levou ao exílio, mencionado na outra cantiga referida. Estes factos tiveram lugar em 1259. Deste modo, não restam dúvidas de que estamos na presença de duas autênticas cantigas de escárnio, debaixo da aparência de cantigas der amigo.
    O Infante D. Henrique, irmão de Afonso X, nasceu por volta de 1230 e cedo se distinguiu no campo militar, por meio do papel que desempenhou no cerco de Sevilha e na conquista de Andaluzia. Após a morte de Fernando III, o conflito já latente entre os dois irmãos, motivado pelas grandes doações feitas pelo pai a D. Henrique, bem como à rainha Joana, estala abertamente. Em 1255, apoiado por Jaime I de Aragão, D. Henrique enfrenta militarmente Afonso X, mas foi derrotado pelo exército comandado por D. Nuno Gonçalves de Lara. Na sequência da derrota, buscou refúgio em Aragão, contudo não obteve o apoiado esperado por parte de Jaime I. Mais tarde, esteve ao serviço do sultão Al-Mustansir, em Tunes, entre 1259 e 1266, e, posteriormente, período em que se instalou em Roma, onde foi nomeado senador (governador da cidade). Feito prisioneiro de Carlos de Anjou na batalha de Tagliacozzo, em 1268, permaneceu em cativeiro até 1294, apesar de várias tentativas de Afonso X para obter a sua libertação. Nesse ano, regressou à Península Ibérica, tendo sido acolhido pelo herdeiro do trono, seu sobrinho, Sancho IV. A morte prematura deste soberano em 1295 tornou-o um dos homens mais influentes da época. Deste modo, assumiu o governo do reino a par de Maria de Molina, mãe do herdeiro presuntivo da coroa, o jovem infante Fernando. Nomeado seu tutor nas Cortes de Valladolid, defendeu os seus direitos face às pretensões dos Infantes de la Cerda, igualmente netos de Afonso X. A sua atuação até 1301 permitiu ao jovem infante subir ao trono como Fernando IV nesse mesmo ano, ficando pelo meio a assinatura do Tratado de Alcanizes com D. Dinis, tratado esse que contribuiu para aliviar a pressão na fronteira ocidental e a fixação das fronteiras entre ambos os reinos. Até à sua morte, ocorrida em 1303, D. Henrique continuou envolvido na complexa trama política castelhana que ocorreu ainda em consequência da crise sucessória anterior.
    Joana de Poitiers foi a segunda mulher de Fernando III de Castela. Nascida Joana de Danmartin, cerca de 1220, era filha de Simon de Danmartin e de Maria de Ponthieu e de Montreuil e bisneto, por via materna, de Luís VII de França. O seu matrimónio com Fernando III gerou cinco filhos. Após a morte do marido, em 1252, permaneceu mais alguns anos em Castela, mas a deterioração das suas relações com Afonso X, seu enteado, potenciadas pelo apoio que deu ao partido do Infante D. Henrique, na época em rutura com o irmão, levaram-na a regressar definitivamente a França, cerca de 1259. Aí, casou-se, em segundas núpcias, pol volta de 1260 ou 1261, com Jean de Nesle, senhor de Falvy et de La Hérelle. Faleceu em 1279, na cidade de Abbeville.
    Rodrigo Afonso era o filho bastardo de Afonso IX de Leão e meio irmão de Fernando III, ou seja, tio de Afonso X. Mouron refere-se a Moron de la Frontera, um município localizado a sudoeste de Sevilha, na província de Andaluzia. A praça pertencia a D. Henrique, como a cantiga deixa bem explícito, parecendo existir na rubrica uma imprecisão, já que o recontro terá tido lugar, não em Morón, mas nas proximidades de Lebrija.
    A rubrica é, portanto, clara: a cantiga é feita por Gonçalo Anes do Vinhal a Dom Henrique em nome da rainha D. Joana, sua madrasta, porque diziam que era seu “entendedor”, isto é, seu amante, quando combateu em Moron com D. Rodrigo Afonso, que comandava o exército real.
    O primeiro verso abre com uma apóstrofe do sujeito poético às amigas, algo característico da cantiga de amor. Essa apóstrofe serve para lhes confidenciar que ouviu dizer que os de “Mouron” combateram com o exército do rei. Ouvir dizer, porque não tem a certeza se é verdade: “e nom poss’end’a verdade saber”.
    Os dois pontos com que encerra o verso 4 anunciam o refrão, no qual o «eu» poético se mostra preocupado com a sorte do seu amigo, cuja sorte desconhece (“se é viv’o meu amigo”), o mesmo a quem fez a oferta de uma touca, uma prenda que era dada muitas vezes pelos apaixonados. No entanto, Carolina Micäelis defende que, neste verso, se trata de uma touca de viúva, o seu atavio tradicional.
    Na segunda e última estrofe, o sujeito poético põe a hipótese de dar a sua cinta a quem lhe desse notícias do seu amigo e declara apenas não o fazer por tal lhe causar mal e ser tido por gabarola ou fingido. Recorde-se que, na primeira estrofe, se referira outra prenda, a touca, que tinha um grande valor para a mulher, pois fora um presente dado ao amigo, ou, na leitura de Carolina Michäelis, o símbolo da sua viuvez. Na primeira hipótese, a touca constitui, portanto, uma prenda de amor que ele levou consigo, dada por ela, como emblema do seu amor. Assim sendo, a peça de vestuário tanto pode simbolizar a relação amorosa de ambos, como, de acordo com outra interpretação, representar uma referência à condição de viúva de Joana de Poitiers.
    Em suma, a touca é uma peça de indumentária feminina, característica da Península Ibérica e presente sobretudo na cantiga de amigo. Possui uma função simbólica associada a outras “dõas” que os enamorados trocavam entre si como indício do seu compromisso amoroso. Há, porém, críticos que lhe atribuem um valor relacionado com o estado civil da mulher, casada ou viúva. Além disso, a touca surge associada a outros elementos femininos.
    Etimologicamente, a palavra não parece derivar do latim e é próprio da Península Ibérica (galego-português, castelhano e basco). Devendo ter-se estendido ao resto da Europa na época medieval. Corominas y Pascual defendem que a sua possível origem radica na forma persa «tak», isto é, «véu», «lenço», «xaile», enquanto Ramón Lorenzo remete a origem etimológica o termo «tauca», que remontaria a uma língua pré-romana, embora não determine qual. Contrariando a afirmação inicial, autores recentes remetem para o latim vulgar «toca», derivado de «toccus», que significava uma cobertura ou peça de vestuário para a cabeça, e associam a sua origem ao gótico «tukko», que remetia para um tipo de pano ou cobertura. Com o tempo, a palavra foi assimilada por outras línguas europeias, conservando o sentido de um acessório para cobrir a cabeça, geralmente feito de tecido.
    Aparecem documentadas as formas «tauca» e «touca», indistintamente, em testamentos e doações medievais escritos em latim, mas apenas «touca» em textos medievais em galego-português em prosa, como, por exemplo, a Crónica Troiana. Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, regista-se a presença de «touca» enquanto referência a uma prenda oferecida à Virgem Maria por parte de uma devota e como vestimenta de uma mulher com amores adúlteros, representando, portanto, em ambos os casos, a condição de mulher casada.
    Relacionada com «touca», encontra-se também na época medieval a forma composta «touquinegra” (< touca + negra), uma designação feminina pouco usada, que foi colher a sua designação à forma de vestir das mulheres que envergam hábitos nos conventos. Por exemplo, o trovador Afonso Eanes do Coton insere-as numa das suas cantigas de escárnio enquanto sinónimo de «monja» e «freira». Aludindo à sua amada, escreve o trovador o seguinte:

E a dona que m’assi faz andar
casad’é, ou viuv’ou solteira,
ou touquinegra, ou monja ou freira…

A mesma imagem metonímica é empregada por Berceo em vários dos seus textos, quando alude a uma monja que vivia num santuário com uma “touca negrada”.
    No caso dos cancioneiros galego-portugueses, a presença do termo «touca» é escassa, sendo usada somente por cinco trovadores, a saber, Pero de Sevilha, Pero Garcia Burgalês, Gonçalo Anes do Vinhal, Pero Gonçalves de Portocarreiro e João Garcia de Guilhade.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Caracterização de Rita Baiana

I. Retrato físico:

    Rita Baiana é uma personagem marcante do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Ela é descrita com uma beleza exuberante e sensualidade natural que capturam a atenção de todos ao seu redor.
  • Cabelos: Longos, ondulados e negros como a noite, com um brilho intenso que reflete sua vivacidade, caem como uma cascata sobre os ombros, emoldurando o seu rosto com um toque selvagem e natural. Costuma usá-los soltos ou presos de maneira despretensiosa, como quem não tem tempo a perder com formalidades, o que aumenta seu charme natural.
  • Pele: Morena e luminosa, com um tom dourado característico que reflete suas origens mestiças, exalando saúde e vitalidade. Ela tem um aspeto saudável, com um brilho que lembra o calor tropical, isto é, o brilho do sol num dia de verão.
  • Olhos: Grandes e negros, profundos e expressivos, com um brilho vivaz que transmite paixão ou malícia e ternura ou alegria, duas janelas para a sua alma calorosa e apaixonada. O olhar é magnético, capaz de cativar qualquer pessoa.
  • Corpo: Bem proporcionado, com curvas sensuais, é uma celebração da feminilidade. De facto, a sua figura reflete feminilidade e força, com quadris largos, equilibrados por ombros delicados, e uma postura confiante, formando uma silhueta que atrai olhares por onde passa. Além disso, movimenta-se com a graça de quem está em sintonia com a música do mundo, e cada passo parece uma dança, refletindo a sua ligação com o ritmo e a cultura brasileira.
  • Rosto: Oval e harmonioso, cheio de vida, com maçãs do rosto ligeiramente salientes e lábios carnudos e bem desenhados, de um vermelho natural, muitas vezes curvados formando um sorriso provocante que é, ao mesmo tempo, desafiador e convidativo.
  • Vestuário: Geralmente vestida de forma vibrante e atraente, com roupas coloridas, que refletem sua personalidade alegre e sua ligação com a cultura brasileira. Gosta de usar vestidos leves e coloridos/floridos, que destacam as suas formas e a sua naturalidade. Pequenos adornos, como brincos de argola ou pulseiras de contas, completam o visual, adicionando toques de brilho à sua aparência.
    Em suma, Rita Baiana é a personificação da vivacidade tropical, uma mulher cuja presença ilumina qualquer ambiente. Por outro lado, ela não se preocupa em seguir padrões de beleza impostos, daí que a sua beleza venha da sua autenticidade e da paixão que coloca em tudo o que faz. A presença da personagem  é magnética e envolvente e o seu jeito desinibido e alegre faz dela o centro das atenções, seja ao dançar numa roda de samba ou ao encantar com sua conversa espirituosa. É uma mulher cuja beleza transcende o físico, enraizada na sua energia, liberdade e paixão pela vida.

II. Caracterização social

  1. Origem e cultura: Rita Baiana é uma mulher de origem mestiça, representando o sincretismo cultural brasileiro, especialmente as influências afro-brasileiras. Ela incorpora uma sensualidade e uma alegria de viver que estão profundamente conectadas à cultura popular e ao ambiente tropical do Rio de Janeiro da época. A sua ligação com a música, especialmente o samba e a dança, destaca a importância da cultura afro-brasileira como elemento de resistência e identidade no contexto social do século XIX.
  2. Papel na comunidade do cortiço: Rita é uma figura central no cortiço. A sua casa é frequentemente palco de festas, onde ela canta, dança e atrai as atenções com o seu carisma. Esses momentos de celebração ajudam a solidificar o sentimento de comunidade entre os moradores, ao mesmo tempo que revelam as tensões sociais e económicas presentes no cortiço. Rita simboliza a liberdade e a expressão, mas também é alvo de fofocas e críticas, refletindo o moralismo da sociedade da época.
  3. Relações interpessoais: Rita é uma mulher independente e assertiva, características que fazem com que se destaque num ambiente marcado por relações patriarcais. A relação que mantém com Firmo é caracterizada pela paixão e por conflitos, representando um tipo de ligação intensa e volátil comum entre as camadas populares. Ela também exerce uma influência magnética sobre outros homens no cortiço, como Jerónimo, despertando desejos que acabam por alterar a dinâmica entre as personagens.
  4. Representação social: Enquanto personagem, Baiana é um símbolo da miscigenação brasileira e da tensão entre as diferentes classes e culturas. Ela desafia padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade da época ao viver com espontaneidade e autonomia. No entanto, a sua sexualidade e comportamento livre tornam-na alvo de comentários e julgamentos, revelando os preconceitos e a hipocrisia presentes no ambiente do cortiço.
  5. Conexão com o espaço do cortiço: Rita é uma extensão do cortiço e vice-versa. O empreendimento é um espaço de convivência intensa, repleto de conflitos e solidariedade, e Rita reflete essas características com a sua personalidade vibrante e contraditória. Ela tanto é uma mediadora social, conectando pessoas através da festa e da música, quanto um elemento de discórdia, expondo as tensões latentes entre as personagens.
  6. Crítica Social: A figura de Rita Baiana também serve como instrumento de crítica social de Aluísio Azevedo. Através dela, o autor expõe as desigualdades e os preconceitos estruturais da sociedade brasileira do século XIX, ao mesmo tempo que celebra a força e a resistência cultural das classes populares.

                Em suma, Rita Baiana, no plano social, é muito mais do que uma personagem; ela é um microcosmo do Brasil da época. Através da sua alegria, sensualidade e autenticidade, representa a riqueza e a complexidade cultural do país, mas também evidencia as desigualdades e os conflitos sociais que definem o ambiente em que vive.

 

III: Retrato social

 

  1. Espontaneidade e alegria de viver: Rita Baiana é uma mulher espontânea, que vive o momento presente com intensidade. A sua personalidade é marcada por uma alegria vibrante, que contagia todos ao seu redor. Essa atitude despreocupada reflete uma determinada visão de mundo: ela não se prende às convenções sociais ou morais que a maioria dos personagens tenta seguir.
  2. Paixão e intensidade: Uma característica marcante de Rita é a sua natureza apaixonada. Ela vive as emoções de maneira intensa, seja na alegria das festas que organiza, seja nos conflitos que marcam a relação com Firmo. Essa intensidade torna-a magnética, mas também a coloca em situações de tensão e confronto.
  3. Independência e autonomia: Rita é independente no que respeita à sua maneira de pensar e agir. Embora viva num ambiente fortemente patriarcal, não se sujeita às expectativas de submissão ou decoro que a sociedade da época espera das mulheres. Ela age de acordo com os seus desejos e necessidades, mesmo que isso vá contra as normas.
  4. Manipulação e sedução: Com uma personalidade magnética, Rita tem consciência do impacto que exerce sobre os outros, especialmente os homens. Embora isso não a defina como essencialmente manipuladora, sabe usar o seu charme e sensualidade para conseguir o que deseja ou para afirmar a sua posição num espaço onde as mulheres são frequentemente subjugadas.
  5. Impulsividade e falta de reflexão: Se é verdade que a paixão a define, Rita pode ser impulsiva e pouco reflexiva nas suas ações. Essa impulsividade, muitas vezes, coloca-a em situações de conflito e perigo, como a sua relação tumultuada com Firmo e a capacidade de gerar rivalidades entre outras personagens.

Características Morais

  1. Liberdade moral: Rita Baiana não se apega aos padrões morais rígidos da sociedade da época. Para ela, a vida deve ser vivida com liberdade, alegria e prazer, daí que desafie as normas conservadoras, representando uma visão do mundo mais flexível e moderna.
  2. Fidelidade às próprias emoções: Ela age de forma autêntica e não tenta esconder ou reprimir os sentimentos. Se ama, ama intensamente; se odeia, expressa o seu descontentamento sem hesitação. Essa autenticidade pode ser vista como uma virtude moral, mas também a expõe a críticas e conflitos.
  3. Ambiguidade moral: Rita não é um modelo de virtude segundo os padrões tradicionais. Ela provoca rivalidades, não hesita em usar a sua influência e poder de sedução para atingir objetivos, e, em muitos momentos, parece indiferente às consequências dos seus atos. Essa ambiguidade moral torna-a uma personagem realista e humana, cheia de contradições.
  4. Empatia e solidariedade: Apesar da sua postura independente, Rita demonstra empatia e solidariedade com os outros moradores do cortiço, especialmente nas festas e momentos de celebração. É uma figura que une as pessoas, criando laços de convivência num espaço marcado por tensões sociais e económicas.
  5. Desafiante de convenções: Rita é, moralmente, uma rebelde. Enquanto tal, desafia as normas de género e comportamento feminino da época, recusando submeter-se à passividade ou ao silêncio esperado das mulheres, o que lhe vale a admiração de uns e a crítica de outros, acabando por se tornar uma espécie de espelho dos dilemas sociais da época.

                Em suma, Rita Baiana é, ao mesmo tempo, um símbolo de liberdade e um retrato dos conflitos do seu tempo. A sua alegria contrasta com os momentos de tensão e agressividade que pautam as suas relações, especialmente com Firmo. A sua independência é admirável, mas a impulsividade coloca-a em situações problemáticas. A liberdade moral desafia padrões, mas também a torna alvo de julgamento por parte dos outros.

                Rita Baiana é uma personagem psicologicamente rica e moralmente ambígua. Ela representa a força da liberdade e da autenticidade num mundo opressor, especialmente para as mulheres, mas também os desafios e conflitos que acompanham quem vive à margem das expectativas sociais. Aluísio Azevedo constrói-a como uma mulher de paixões intensas e de espírito indomável, cujo retrato psicológico e moral a torna uma das personagens mais marcantes de O Cortiço.

 

IV. Relação com as outras personagens

 

1. Rita Baiana e Firmo

                A relação entre Rita Baiana e Firmo é marcada por uma paixão intensa e conflituosa. Firmo, um capoeirista de espírito violento e possessivo, sente-se ameaçado pela independência e sensualidade de Rita. Apesar disso, ambos compartilham momentos de cumplicidade e desejo ardente, vivendo uma relação carregada de química, mas também de explosões emocionais.

  • Dinâmica de poder: Firmo tenta exercer controle sobre Rita, mas ela constantemente desafia a sua autoridade, o que gera conflitos frequentes, refletindo uma luta entre o machismo e a independência feminina.
  • Paixão destrutiva: Apesar do magnetismo que existe entre os dois, a relação é tumultuosa, pautada por momentos de ciúme, violência e reconciliação, simbolizando a instabilidade das relações amorosas no cortiço.

2. Rita Baiana e Jerónimo

                Jerónimo, um português trabalhador e inicialmente moralista, é profundamente afetado pela presença de Rita Baiana. Ele, que representava os valores europeus de disciplina e recato, é atraído pela sua energia vibrante e pela sensualidade tropical, o que o leva a uma transformação radical.

  • Símbolo de transformação: Rita desperta em Jerónimo uma paixão arrebatadora que desafia os seus valores iniciais, levando-o a abandonar a esposa, Piedade, e a aproximar-se do estilo de vida do cortiço.
  • Conflito gerado: O interesse de Jerónimo por Rita exacerba a rivalidade com Firmo, culminando em tragédias que expõem o lado violento e instintivo das personagens.
  • Impacto psicológico: A relação evidencia o poder de Rita como uma força que transcende padrões culturais e morais, enquanto também reflete o impacto da cultura brasileira sobre os imigrantes.

3. Rita Baiana e Piedade

                A relação entre Rita Baiana e Piedade é marcada pela tensão e contraste. Piedade, a esposa de Jerónimo, representa os valores tradicionais da moralidade europeia e o papel submisso da mulher na sociedade patriarcal.

  • Contraste cultural: Enquanto Rita é livre e desinibida, Piedade é recatada e emocionalmente dependente de Jerónimo. Esse contraste acentua o impacto da relação entre ambos e a crise de identidade de Piedade.
  • Rivalidade implícita: Apesar de não haver confrontos diretos entre as duas, a presença de Rita destrói a estabilidade emocional e a vida conjugal de Piedade, tornando-a uma rival indireta.

4. Rita Baiana e os moradores do cortiço

                Rita Baiana exerce uma influência coletiva sobre os moradores do cortiço: é um ponto de união, mas também de conflito, dependendo das circunstâncias.

  • Figura central nas festas: Rita organiza festas animadas e danças que promovem a integração entre os moradores, criando momentos de alegria e descontração no ambiente tenso do cortiço.
  • Objeto de admiração e mexericos: A sua sensualidade e independência fazem dela uma figura admirada por uns e criticada por outros, especialmente pelas mulheres mais conservadoras, que veem no seu comportamento uma ameaça aos valores tradicionais.
  • Catalisadora de tensões: A sua presença amplifica os conflitos entre personagens masculinas, como Jerónimo e Firmo, e entre as mulheres, que a invejam ou reprovam sua conduta.

5. Rita Baiana e o cortiço (como espaço coletivo)

                Rita Baiana não se relaciona apenas com os indivíduos, mas também com o próprio ambiente do cortiço, sendo uma representação viva da sua essência.

  • Espelho do cortiço: Assim como o cortiço é um espaço de miscigenação cultural, contrastes e conflitos, Rita também encarna essas características. A sua vivacidade, contradições e liberdade refletem a dinâmica caótica e vibrante do lugar.
  • Contribuição para a identidade do espaço: Rita transforma o cortiço num ambiente de celebração cultural, com festas e música, mas também num espaço de tensões, reforçando a narrativa de Aluísio Azevedo sobre as forças sociais em jogo naquele microcosmo.

 

                As relações de Rita Baiana com as outras personagens de O Cortiço não são apenas interações individuais, mas também representações simbólicas de questões sociais, culturais e psicológicas. A sua sensualidade e liberdade de espírito provocam admiração, desejo, inveja e conflito, desestabilizando estruturas tradicionais e expondo as fragilidades das relações humanas. Rita é, ao mesmo tempo, um catalisador de mudança e uma figura de resistência contra as normas impostas, fazendo dela um dos principais motores da trama e uma personagem inesquecível.

 

V. Representatividade social

 

1. Representatividade Cultural

                Rita Baiana é a personificação da cultura afro-brasileira e tropical, contrastando diretamente com os valores europeus representados por personagens como Jerónimo e Piedade.

  • Símbolo da miscigenação: A origem mestiça reflete a realidade do Brasil do século XIX, um país marcado pela convivência (e conflitos) entre diferentes «raças» e culturas.
  • Ligação à cultura popular: Rita está profundamente ligada à música, dança e festas, elementos que representam a riqueza e vitalidade da cultura brasileira, especialmente as influências africanas.
  • Contraste com o estrangeiro: A energia vibrante e a sensualidade contrapõem-se à rigidez e à contenção dos valores europeus, sendo um agente de transformação, como, por exemplo, na mudança de Jerónimo.

2. Representatividade Feminina

                Rita Baiana é uma mulher que desafia os padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade patriarcal do século XIX.

  • Mulher independente: Numa época em que se esperava que as mulheres fossem submissas e moralmente irrepreensíveis, Rita age de acordo com os próprios desejos e emoções. Ela não é definida por um homem ou pelo papel numa família.
  • Figura de resistência: Rita desafia o moralismo conservador dos moradores do cortiço, recusando submeter-se às críticas ou aos julgamentos que recebe por causa do seu comportamento livre.
  • Contradição de papéis femininos: Enquanto mulheres como Piedade representam a submissão e a fragilidade emocional, Rita é o oposto: forte, autêntica e disposta a viver conforme as próprias regras.

3. Representatividade Social

                Rita Baiana é uma representação vívida da classe trabalhadora e das camadas populares, inserida no contexto do cortiço como um microcosmo da sociedade brasileira.

  • Figura comunitária: Rita é central na vida social do cortiço, organizando festas e unindo os moradores em momentos de celebração.
  • Crítica social: A sua figura ilustra as tensões e hipocrisias da sociedade da época. Apesar de ser admirada pela beleza e alegria, também é alvo de preconceitos e julgamentos morais, evidenciando as contradições da convivência no cortiço.
  • Símbolo da luta de classes: Enquanto outras personagens, como João Romão, aspiram a subir na escala social, Rita aceita a sua condição, vivendo plenamente dentro da realidade do cortiço, mas sem ser submissa a ela.

4. Representatividade no contexto do Naturalismo

                Dentro da estética naturalista que permeia O Cortiço, Rita Baiana é uma representação do instinto, do desejo e da força vital.

  • Exposição dos instintos humanos: Age impulsivamente, seguindo as suas emoções e desejos, alinhando-se com a visão naturalista de que o ser humano é regido por forças instintivas e biológicas.
  • Personificação do meio: O cortiço é um espaço de exuberância e caos, e Rita reflete essas características, sendo tanto um produto quanto um símbolo do ambiente em que vive.
  • Relação com o Determinismo: Através de Rita, Aluísio Azevedo ilustra o modo como o meio social e cultural influencia o comportamento humano, mostrando que as suas ações são moldadas pelas condições de vida no cortiço.

5. Representatividade como agente de transformação

                Rita Baiana desempenha um papel transformador no romance, especialmente em relação às personagens masculinas, como, por exemplo, Jerónimo.

  • Disrupção cultural: A sua presença provoca uma rutura nos valores tradicionais europeus representados por Jerónimo, levando-o a abandonar a sua postura rígida e a entregar-se à paixão e ao estilo de vida do cortiço.
  • Catalisadora de conflitos: Rita é o centro de tensões emocionais e sociais, como a rivalidade entre Jerónimo e Firmo, o que move a trama e expõe os dilemas morais e sociais das personagens.

6. Representatividade no contexto do Brasil oitocentista

                Rita Baiana, enquanto figura mestiça e representante da cultura popular, é um reflexo das contradições do Brasil do século XIX.

  • Símbolo da brasilidade: Ela encapsula os elementos que definem a identidade nacional – a miscigenação, a alegria, a sensualidade, mas também a precariedade e a marginalização.
  • Crítica às desigualdades: A sua posição no cortiço e a forma como é tratada refletem as desigualdades raciais, de género e de classe que estruturavam (e ainda estruturam) a sociedade brasileira.

 

                Em suma, Rita Baiana transcende a sua condição de personagem para se tornar um símbolo dentro da obra. Ela representa o Brasil mestiço, vibrante e contraditório, mas também as tensões sociais e culturais da época. Como mulher, desafia os padrões impostos, enquanto membro da classe popular, expõe as desigualdades, e, como figura cultural, celebra a riqueza da identidade brasileira. Aluísio Azevedo usa Rita para ilustrar as complexidades da vida no cortiço, tornando-a uma peça central na crítica social e no retrato coletivo do romance.

Caracterização de Miranda

    Miranda, uma das personagens de O Cortiço, é o típico comerciante português cuja descrição física reflete o seu estatuto social, caráter e contexto histórico. Embora Aluísio Azevedo não aprofunde o seu retrato físico, os traços destacados ao longo do romance ajudam a compor a imagem de um homem representativo da burguesia em ascensão na época.

I. Traços Físicos:
 
  1. Estatura Mediana: Miranda é descrito como um homem de porte médio, sem traços que o distingam no que diz respeito à altura ou imponência. A sua presença física está mais ligada à seriedade do que à força ou à beleza.
  2. Fisionomia séria e controlada: Ele apresenta um semblante grave, com feições alinhadas com a sua personalidade rígida e metódica. Aa expressão facial tende a ser severa, indicando preocupação constante com as aparências e o status social.
  3. Traços europeus: Como imigrante português, Miranda possui características típicas da etnia lusitana, como, por exemplo, pele clara e traços que não são descritos como belos, mas sim comuns e adequados ao seu estatuto de comerciante.
  4. Cabelo bem tratado: Embora o romance não se detenha na descrição específica do cabelo, pode deduzir-se que tem uma aparência limpa e cuidada, em consonância com a preocupação com a imagem pública.
  5. Postura rígida e formal: O seu comportamento e a sua postura refletem um homem que valoriza o autocontrole e a disciplina e que tende a exibir uma postura ereta, denotando seriedade e respeito.
  6. Vestuário elegante: Miranda veste-se de forma sóbria e alinhada, utilizando roupas que simbolizam a sua posição social como comerciante burguês, mas sem ostentação. Essa escolha reflete a tentativa de ser reconhecido como um homem respeitável e bem-sucedido.
  7. Físico não atlético: O romance não contém grandes referências a atributos físicos que sugiram vigor ou força, o que indicia que Miranda não é um homem de trabalho físico, mas, sim, um indivíduo dedicado à vida comercial e ao mundo das relações sociais.

                Em suma, a aparência da personagem está intimamente ligada à sua busca por respeitabilidade e ascensão social. Ele é o retrato do português típico da época, que migra para o Brasil em busca de oportunidades e constrói a sua identidade em torno do trabalho e da moral burguesa. Esses traços físicos, embora simples, servem para reforçar a sua personalidade e o contraste com outras personagens do romance, como João Romão, mais brutal e ambicioso. Assim, a sua figura física não é chamativa, mas funcional, coerente com a mensagem naturalista da narrativa, que utiliza o físico das personagens como extensão das suas condições sociais e psicológicas.

 
II. Retrato social

1. Classe social e ocupação profissional:
  • Miranda é um comerciante português bem-sucedido, representante da pequena burguesia. Ele é proprietário de um armazém, o que lhe garante uma posição económica estável e distingue-o socialmente no bairro onde vive.
  • A atividade profissional reflete a figura do imigrante português que enriquece por meio do comércio, um estereótipo frequente na literatura da época.
2. Aspiração à ascensão social:
  • Um dos traços mais marcantes de Miranda é a constante preocupação que manifesta em manter e elevar o seu status social. Assim, procura afastar-se da rusticidade e vulgaridade que percebe nos vizinhos, como João Romão, e almeja ser reconhecido como um homem respeitável e distinto.
  • Para reforçar essa imagem, Miranda valoriza uma vida organizada e pautada pelas normas da sociedade burguesa.
  • No entanto, embora se situe, socialmente, num patamar superior ao dos operários e moradores do cortiço, Miranda não ocupa um lugar elevado na hierarquia social. Ele sente-se desconfortável ao perceber que, mesmo sendo proprietário e comerciante, a sua posição é precária em comparação com os verdadeiros ricos ou com os aristocratas que tenta imitar.
3. Casamento como ferramenta de ascensão social:
  • A relação com Estela, sua esposa, é uma extensão da sua estratégia social. De facto, casou-se com ela por interesse, visando consolidar a sua respeitabilidade, mesmo que o casamento seja infeliz. Estela despreza-o e é infiel, o que reforça o contraste entre a aparência de ordem que Miranda tenta projetar e a realidade do fracasso pessoal.
4. Relação com outras personagens:
  • Miranda tenta diferenciar-se de João Romão, o ambicioso e grosseiro proprietário do cortiço, que representa o oposto da moral e da ordem que procura. Contudo, o contraste entre os dois também evidencia a hipocrisia e as limitações de Miranda, que, apesar da sua pretensão, é prisioneiro da própria mediocridade.
  • A interação com moradores do cortiço e com figuras de status inferior demonstra uma atitude condescendente e a sua tentativa de distanciar-se da vulgaridade.

III. Caracterização psicológico-moral

  1. Rigidez e Formalidade:
    • Miranda é uma pessoa metódica e rígida nas suas ações e decisões, o que se espelha na preocupação excessiva com as normas e os padrões sociais. Ele não suporta a desordem, seja no trabalho ou na vida pessoal, e a rigidez reflete o desejo de controlar a sua realidade.
  2. Insegurança Social:
    • Apesar de seu status enquanto comerciante bem-sucedido, Miranda sente-se constantemente ameaçado pela posição intermediária que ocupa na hierarquia social. Ele teme cair no mesmo nível dos trabalhadores e vizinhos mais humildes e nutre uma ansiedade constante em reafirmar sua superioridade.
  3. Aparência versus realidade:
    • A sua personalidade é marcada por um grande esforço em aparentar decoro e respeitabilidade. No entanto, por trás dessa fachada, mostra-se um homem infeliz, consciente da superficialidade das suas conquistas e da hipocrisia que caracteriza a sua existência, especialmente no que respeita ao casamento.
  4. Passividade e conformismo:
    • Miranda tem uma personalidade passiva, especialmente no âmbito pessoal. Apesar de ser humilhado por Estela, sua esposa, aceita a situação e evita confrontá-la para não comprometer a imagem pública. Essa passividade reflete a incapacidade de enfrentar conflitos emocionais de forma direta.
  5. Orgulho ferido:
    • Internamente, Miranda sofre com o desprezo da esposa e com a consciência de impotência diante de João Romão, cuja ambição e agressividade desafiam a sua postura formal. Ele sente-se diminuído por não ter a mesma determinação brutal para conquistar mais poder e riqueza.
  6. Respeito pelas regras:
    • Psicologicamente, Miranda é moldado por um profundo respeito pelas normas sociais e morais. Ele acredita que o cumprimento das regras é essencial para preservar a sua posição, mesmo que isso implique a repressão de desejos ou emoções.
  1. Moralidade aparente:
    • Miranda tenta projetar uma imagem de homem moralmente correto e íntegro. Defende a ordem, a disciplina e as boas maneiras. Contudo, a sua moralidade é superficial, mais voltada para agradar à sociedade do que para refletir uma verdadeira virtude interna.
  2. Hipocrisia:
    • Moralmente, Miranda é um hipócrita. Embora exija decoro e comportamento exemplar dos outros, ignora os problemas éticos que se manifestam na própria casa, como a infidelidade da esposa. A sua complacência revela a importância maior que dá às aparências do que à ética verdadeira.
  3. Egoísmo social:
    • Apesar de aparentar ser generoso ou justo, as ações são frequentemente motivadas por interesses pessoais. Evita envolver-se em questões que não tragam benefícios diretos para a sua imagem ou status, demonstrando uma visão moral utilitarista.
  4. Falta de coragem moral:
    • Miranda não demonstra força para confrontar situações que coloquem a sua integridade à prova. A aceitação passiva da infelicidade conjugal e a incapacidade para se impor perante João Romão revelam uma fraqueza moral significativa.
  5. Conservadorismo moral:
    • Ele é profundamente conservador, apegado a valores tradicionais que sustentam a estrutura social e hierárquica. Essa moralidade rígida e antiquada impede-o de se adaptar a mudanças ou de lidar com situações fora da sua zona de conforto.
  6.  Mentalidade conservadora e preocupação com as aparências:
o    Miranda é conservador e rígido no que concerne à sua visão do mundo, refletindo os valores tradicionais da burguesia portuguesa. Por isso, valoriza a moralidade pública, mas a sua vida privada, marcada pela infelicidade conjugal, revela um contraste entre a fachada que procura manter e a realidade.
o    Está constantemente preocupado com as aparências, evitando escândalos e procurando manter uma imagem de decência e ordem.
 
IV. Relação com outras personagens
 
Relação com João Romão:
  1. Rivalidade Velada:
    • João Romão é o proprietário do cortiço, um homem ambicioso e brutal que almeja ascender socialmente a qualquer custo. Miranda, embora financeiramente estável, sente-se desconfortável com a ascensão de Romão, vendo-o como uma ameaça à ordem e aos valores que acredita defender.
    • A relação entre os dois é marcada pelo contraste entre a astúcia brutal de João e a formalidade conservadora de Miranda. Apesar de desprezar a sua grosseria, Miranda reconhece e teme a sua capacidade de prosperar e acumular riqueza.
  2. Superioridade Social:
    • Miranda tenta colocar-se como superior a João Romão, enfatizando a sua educação e modos refinados. No entanto, o pragmatismo e a determinação de João muitas vezes fazem Miranda sentir-se inferior e frustrado.

Relação com Estela (a esposa):
  1. Casamento de conveniência:
    • Miranda casou-se com Estela não por amor, mas por interesse social, pois esperava que o matrimónio consolidasse a sua posição como um homem respeitável. Neste cenário, não é de estranhar que a relação seja marcada pela frieza e infelicidade.
  2. Desprezo e Infidelidade:
    • Estela despreza Miranda, considerando-o passivo e medíocre. Trai-o abertamente, demonstrando a sua insatisfação com o casamento. Apesar disso, ele opta por ignorar as infidelidades para preservar a imagem pública.
  3. Passividade de Miranda:
    • Como se depreende do que já foi dito, evita confrontar Estela ou resolver os problemas conjugais, preferindo manter as aparências. Assim, a relação entre ambos reflete a hipocrisia e a falta de coragem moral de Miranda, que prioriza a reputação acima da felicidade pessoal.

Relação com os moradores do cortiço:
  1. Distanciamento social:
    • Miranda tenta manter distância dos moradores do cortiço, que representam a classe trabalhadora e a "vulgaridade" que ele despreza. Ele vê essas pessoas como inferiores, um retrato de tudo a que não deseja estar associado.
  2. Apatia e desprezo:
    • Por outro lado, não demonstra interesse genuíno pelos problemas dos habitantes do cortiço e interage com eles apenas quando necessário, reforçando a barreira social que os separa socialmente.

Relação com Firmo e Léonie:
  1. Indiferença e Condescendência:
    • Miranda, embora não se envolva diretamente com essas personagens, considera figuras como Firmo (um capoeirista) e Léonie (uma prostituta) como representações da decadência e vulgaridade que procura evitar.

Relação com outros burgueses:
  1. Tentativa de aceitação:
    • Miranda procura ser aceite pelos membros da alta burguesia e aristocracia, tentando imitar os seus modos e valores. No entanto, frequentemente é olhado como um aspirante sem o refinamento ou a origem necessária para ser totalmente integrado.
  2. Falta de identificação:
    • Apesar das suas aspirações, Miranda não consegue sentir-se confortável entre as classes superiores, demonstrando a sua posição incómoda entre o cortiço e a elite.

V. Representatividade social

1. Representação da burguesia em ascensão:
  • Miranda é o arquétipo do pequeno burguês, típico do Brasil do século XIX, que procura firmar-se como respeitável e distinto, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta as limitações impostas pela sua origem humilde e pela sua posição intermediária na hierarquia social.
  • Ele reflete os valores da burguesia emergente: o apego às aparências, o conservadorismo moral e o desejo de se distanciar das classes populares enquanto almeja ser aceite pela elite.

2. Contraponto à ascensão bruta de João Romão:
  • Miranda é o oposto de João Romão, cuja ascensão está baseada na ambição desmedida, no trabalho incansável e na falta de escrúpulos.
    • Enquanto Miranda tenta preservar uma imagem de decoro e civilidade, João Romão é movido por pragmatismo e brutalidade.
    • Essa oposição ilustra duas faces da ascensão social no Brasil do período: a tentativa de manter uma moralidade (ainda que hipócrita) e a conquista sem limites éticos.

3. Crítica à hipocrisia social:
  • Miranda simboliza a hipocrisia da sociedade burguesa, que valoriza mais as aparências do que a verdadeira moralidade:
    • Ele mantém um casamento de conveniência com Estela, ignorando a sua infidelidade para não comprometer a imagem pública.
    • Finge desprezar João Romão, mas teme a sua capacidade de o superar economicamente.
    • Vive uma vida de aparente ordem, mas internamente é inseguro, infeliz e cobarde.

4. Mediação entre classes:
  • Miranda situa-se entre o cortiço (classe trabalhadora) e a aristocracia (classe alta), simbolizando uma classe intermediária que aspira à nobreza, mas teme ser confundida com os pobres.
    • Ele tenta distanciar-se dos moradores do cortiço, mas, ao mesmo tempo, a sua origem e posição tornam-no vulnerável às críticas da elite.

5. Função crítica no romance:
  • Através da figura de Miranda, Aluísio Azevedo critica:
    • A superficialidade das aspirações burguesas: o desejo de Miranda por respeitabilidade não o torna mais feliz ou virtuoso, apenas reforça a sua hipocrisia.
    • A ineficácia da rigidez moral: a tentativa de se alinhar com os valores da alta sociedade fracassa, evidenciando a fragilidade da sua posição.
    • A ilusão da ascensão social pacífica: Enquanto João Romão usa métodos brutais para subir na vida, Miranda, que adota uma abordagem passiva, é engolido pelas circunstâncias e limitado pelas suas inseguranças.

6. Representatividade no contexto do Naturalismo:
  • No contexto do Naturalismo, Miranda é uma figura que ilustra como o meio social e as condições históricas moldam o indivíduo. Ele é tanto produto quanto prisioneiro da sua classe social, incapaz de transcender os limites impostos pela hierarquia e pelos valores do seu tempo.
  • A sua posição social e as suas ações revelam como as forças externas (como a economia e a moralidade burguesa) influenciam comportamentos e relações.

Conclusão:

                Miranda representa a mediocridade e a fragilidade da burguesia média em O Cortiço. A sua existência é marcada pela busca incessante por respeitabilidade e por uma rigidez que não consegue sustentar internamente. Ele é uma peça-chave para a crítica social de Aluísio Azevedo, expondo as contradições e os conflitos de uma classe que tenta ascender sem ter a força de caráter ou os recursos da elite, e que teme profundamente ser confundida com os trabalhadores.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A primeira árvore de Natal


A rainha Vitória, o príncipe Alberto e os filhos
reúnem-se à volta de uma árvore de Natal, em Dezembro de 1848.
Museu Webster. Domínio público

    O primeiro registo escrito de uma árvore de Natal decorada vem de Riga, na Letónia, em 1510. Os homens do grémio dos comerciantes locais decoraram uma árvore com rosas artificiais, dançaram à volta dela no mercado e depois atearam-lhe fogo. A rosa foi utilizada durante muitos anos e é considerada um símbolo da Virgem Maria.
    Há outra lenda que diz que foi Martinho Lutero, o reformador religioso alemão, quem inventou a árvore de Natal. Segundo a história, numa noite de inverno de 1536, Lutero passeava por um pinhal perto da sua casa em Wittenberg quando, de repente, olhou para cima e viu milhares de estrelas a brilhar como jóias entre os ramos das árvores. Esta visão maravilhosa inspirou-o a montar um abeto à luz de velas em sua casa nesse Natal, para lembrar aos seus filhos o céu estrelado de onde veio o seu Salvador.
    Em 1605, as árvores de Natal decoradas já tinham aparecido no Sul da Alemanha. Nesse ano, um escritor anónimo escreveu que, no Natal, os habitantes de Estrasburgo “montavam pinheiros nas salas de estar (...) e penduravam neles rosas cortadas em papel de várias cores, maçãs, bolachas, papel dourado, doces, etc.”.
    Noutras partes da Alemanha, os buxos ou os teixos eram levados para dentro de casa no Natal, em vez dos abetos. E no ducado de Mecklenburg-Strelitz, onde a Rainha Charlotte cresceu, era costume enfeitar um único ramo de teixo. 
    O poeta Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) visitou Mecklenburg-Strelitz em dezembro de 1798, e ficou muito impressionado com a cerimónia do ramo de teixo que aí presenciou, cujo relato seguinte escreveu numa carta à sua mulher, datada de 23 de abril de 1799: 
Na véspera do dia de Natal, uma das salas, na qual os pais não podem entrar, é iluminada pelas crianças; um grande ramo de teixo é fixado sobre uma mesa a uma pequena distância da parede, uma multidão de pequenas velas é fixada no ramo ... e papel colorido, etc., pende e esvoaça dos ramos. Sob este ramo, as crianças colocam os presentes que pretendem oferecer aos pais, escondendo ainda nos bolsos os que pretendem oferecer uns aos outros. Depois, os pais são apresentados e cada um apresenta o seu presentinho; em seguida, tiram os restantes presentes dos bolsos, um a um e entregam-nos com beijos e abraços.
    Quando a jovem Charlotte deixou Mecklenburg-Strelitz em 1761 e foi para Inglaterra para casar com o Rei George III, levou consigo muitos dos costumes que tinha praticado em criança, incluindo o ramo de teixo no Natal. No entanto, na corte inglesa, a Rainha transformou o ritual essencialmente privado do ramo de teixo da sua terra natal numa celebração mais pública que podia ser desfrutada pela sua família, pelos seus amigos e por todos os membros da Casa Real.
    A Rainha Charlotte colocou o seu ramo de teixo não numa pequena sala de estar, mas numa das maiores salas do Palácio de Kew ou do Castelo de Windsor. Assistida pelas suas damas de companhia, foi ela própria a vestir o ramo. E quando todas as velas de cera estavam acesas, toda a corte se juntava e cantava canções de Natal. A festa terminou com a distribuição de presentes do ramo, que incluía artigos como roupas, jóias, pratos, brinquedos e doces.
    Estes ramos de teixo reais causaram grande alarido entre a nobreza, que nunca tinha visto nada do género. Mas não foi nada comparado com a sensação criada em 1800, quando a primeira verdadeira árvore de Natal inglesa apareceu na corte.
    Nesse ano, a Rainha Charlotte planeou organizar uma grande festa de Natal para as crianças de todas as famílias principais de Windsor. E, pensando num mimo especial para oferecer aos mais novos, decidiu subitamente que, em vez do habitual ramo de teixo, iria envasar um teixo inteiro, cobri-lo com enfeites e frutos, enchê-lo de presentes e colocá-lo no meio do chão da sala de visitas do Queen's Lodge. Uma árvore assim, pensou ela, daria um espetáculo encantador para os mais pequenos contemplarem. E foi o que aconteceu. 
    Quando as crianças chegaram à casa, na noite do dia de Natal, e viram aquela árvore mágica, toda enfeitada com enfeites e vidros, acreditaram que tinham sido transportadas diretamente para o país das fadas e a sua felicidade não tinha limites.
    O Dr. John Watkins, um dos biógrafos da Rainha Charlotte, que assistiu à festa, fornece-nos uma descrição vívida desta árvore cativante “dos ramos da qual pendiam cachos de doces, amêndoas e passas em papéis, frutas e brinquedos, dispostos com muito bom gosto; tudo iluminado por pequenas velas de cera”. Acrescenta ainda que “depois de a companhia ter passeado e admirado a árvore, cada criança recebeu uma porção dos doces que ela continha, juntamente com um brinquedo, e todos regressaram a casa muito satisfeitos”.
    As árvores de Natal passaram a ser o centro das atenções nos círculos da classe alta inglesa, onde constituíam o ponto focal de inúmeras reuniões de crianças. Tal como na Alemanha, qualquer árvore de folha perene podia ser arrancada para o efeito: teixos, buxo, pinheiros ou abetos. Mas eram invariavelmente iluminadas por velas, adornadas com bugigangas e rodeadas por pilhas de presentes. As árvores colocadas em cima das mesas tinham também, normalmente, uma Arca de Noé ou uma quinta modelo e numerosos animais de madeira pintados a dourado dispostos entre os presentes, por baixo dos ramos, para dar um encanto suplementar ao cenário. 
    Aquando da morte da Rainha Charlotte, em 1818, a tradição da árvore de Natal estava firmemente estabelecida na sociedade e continuou a florescer durante as décadas de 1820 e 30. A descrição mais completa destas primeiras árvores de Natal inglesas encontra-se no diário de Charles Greville, o espirituoso e culto funcionário do Conselho Privado, que em 1829 passou as férias de Natal em Panshanger, Hertfordshire, casa de Peter, 5º Conde Cowper, e da sua mulher Lady Emily.
    Quando, em dezembro de 1840, o Príncipe Alberto importou vários abetos de Coburgo, a sua terra natal, estes não eram, portanto, uma novidade para a aristocracia. Mas foi só quando periódicos como o Illustrated London News, Cassell's Magazine e The Graphic começaram a retratar e a descrever minuciosamente as árvores de Natal reais todos os anos, de 1845 até ao final da década de 1850, que o costume de montar tais árvores nas suas próprias casas se generalizou em Inglaterra.
    Em 1860, porém, não havia praticamente nenhuma família abastada no país que não ostentasse uma árvore de Natal na sala de estar ou no salão. E todas as festas de Dezembro organizadas para crianças pobres nesta data tinham como principal atração as árvores de Natal carregadas de presentes. O abeto era agora geralmente aceite como a árvore festiva por excelência, mas os ramos destes abetos já não eram cortados em camadas artificiais, como na Alemanha, mas podiam permanecer intactos, com velas e ornamentos dispostos aleatoriamente sobre eles, como atualmente. 

    A primeira árvore de Natal em Portugal foi instalada no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, por D. Fernando II, duque de Saxe-Coburgo-Gotha, o marido de D. Maria II, em meados do século XIX, para recordar a tradição de Natal da sua infância passada na Alemanha. Por volta de 1844, o monarca, nascido em Viena, na Áustria, colocou, no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, uma árvore e enfeitou-a para festejar com os sete filhos e com a rainha, D. Maria II, com quem casou a 9 de abril de 1836.
    Originalmente, a árvore era decorada com rosas feitas a partir de papel colorido, maçãs e fios prateados. Já desde o séc. XVIII que a árvore era decorada com velas. As maçãs representavam o episódio bíblico de Adão e Eva. Hoje em dia, as maçãs foram substituídas pelas bolas coloridas, as velas foram trocadas pelas luzes. Só os fios prateados se mantêm.
    O abeto, que era colocado numa sala privada da família real no Palácio das Necessidades, era decorado com velas, laços e bolas de vidro transparente. Também era comum colocar guloseimas na árvore já decorada, como frutas cristalizadas e chocolates. O marido de D. Maria II chegava mesmo a vestir-se de verde e a imitar São Nicolau, o santo que deu origem ao Pai Natal, para entreter os seus sete filhos. O rei consorte entrava na sala com um saco às costas e distribuía presentes pelos príncipes e outras crianças do palácio.
    A árvore de Natal original era mais bonita e mágica que a actual. Tinha os pequenos presentinhos pendurados nos próprios ramos ao lado das velinhas. Nos dias de hoje, como todos os dias são Natal em termos de consumo e presentes, a magia da árvore de Natal decorada com doces e presentes perdeu-se muito.

Análise do poema "Cinco galinhas e meia", de Camões

    Este poema breve de tom irónico, da autoria de Luís Vaz de Camões, escrito em redondilha maior, com características de repentismo, nas palavras da professora Rita Marnoto, é, de acordo com a epígrafe inicial, dirigido a D. António, Senhor de Cascais. Convém recordar que, por vezes, as epígrafes eram acrescentadas a um poema por um copista que sentia necessidade de o contextualizar. Trata-se, por outro lado, de uma quadra em redondilha maior, na esteira da Corrente Tradicional, precedida de uma epígrafe, e com um esquema rimático abab, ou seja, rima cruzada. As duas rimas, em -eia e -ais, contém uma aliteração em /i/, que nos versos 1 e 3 se estende ao interior do verso. Além disso, a rima em /a/ é reforçada pela repetição da primeira palavra rimante no interior do terceiro verso – «meia». Relativamente ao ritmo, este é rápido, tendo em conta o uso do verso curto, e ganha vivacidade com a divisão de cada um em dous segmentos paralelos, ligados através do encavalgamento. O primeiro apresenta a situação, enquanto o segundo a comenta e explicita.
    O D. António, senhor de Cascais, referido na epígrafe e no segundo verso, é D. António de Castro, um aristocrata muito poderoso, filho primogénito de D. Luís de Castro e D. Violante de Ataíde. Casou com D. Inês Pimentel, uma senhora que era aparentada com os Távora, e foi IV Conde de Monsanto por designação de Filipe II de Espanha em carta datada de 23 de outubro de 1582. O seu nome esteve envolvido na agitada vida que caracterizou a época que assistiu aos derradeiros anos de vida de Camões. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, D. Luís de Ataíde, vice-rei da Índia, regressou do Oriente envolto em triunfos e glória, ao mesmo tempo que a forte e dispendiosa armada formada para apoiar a liga entre o Papado, a Espanha e a França contra o inimigo turco não passava a barra do Tejo, em virtude de a aliança ter sido dificultada por diversas convulsões políticas. Em agosto desse ano, D. Sebastião ordenou a prisão de D. António de Castro nos subterrâneos do Castelo de Lisboa, enquanto a sua família e os seus criados foram encarcerados na prisão do Limoeiro. A razão para tal relacionava-se com a acusação de que tinha sido alvo por parte de um criado de apoiar os luteranos e de estar a organizar a entrega do Forte de São João da Barra aos franceses. No entanto, a denúncia era falsa, pelo que todos foram libertados. Posteriormente, D. António de Castro apoiou Filipe II de Espanha aquando da união dos tronos de Portugal e Castela, tendo ordenado o arvorar da bandeira castelhana no Castelo de São Jorge, no entanto acabou por ser vítima de nova acusação, desta vez de se preparar para entregar Cascais a D. António Prior do Crato, por isso foi desterrado para Espanha, juntamente com a família.
    Poderá parecer estranho, à primeira vista, que um poeta que cultiva um estilo elevado e que escreve uma obra monumental como Os Lusíadas aborde, nesta quadra humorística, uma questão menor como a alimentação, mas a verdade é que o tema da alimentação remonta às origens da literatura europeia, desde logo por se tratar de um bem essencial à sobrevivência dos seres vivos. Uma das estratégias indutoras doo cómico num texto é o contraste entre a superioridade de um sujeito em relação a uma vítima e a desilusão das suas expectativas. Neste caso, as duas figuras que preenchem a composição prestam-se ao referido contraste: de um lado, temos um destinatário de estatuto elevado, o poderoso D. António de Castro, enquanto no outro encontramos um poeta simples e modesto que se diminui fazendo uma cópia. A vida do primeiro caracteriza-se pelo bem-estar, ao passo que o segundo vive ansioso por confortar o seu estômago e satisfazer o seu palato. À promessa de seis galinhas feita pelo homem todo poderoso, segue-se a desilusão do poeta humilde pela receção de mera meia galinha, o que equivale a dizer que, novamente nas palavras da professora Rita Marnoto, “Às expectativas geradas pela plenitude de um delicioso recheio, corresponde uma ausência, como se a pulsão do corpo fosse remetida para o vazio material da concavidade da meia ave.”
    Retornando à análise da epígrafe, ficamos a saber que D. António, um homem poderoso, prometeu a Camões seis galinhas recheadas como pagamento por uma cópia que este lhe fizera, porém apenas lhe enviara meia. Note-se que, semanticamente, a meia dúzia é uma quantidade ligada à banalização, à indeterminação e até à escassez nos seus vários planos. Por sua vez, o verso inicial da quadra enuncia uma quantidade, a do débito, como se de um deficit se tratasse, que mensura uma substância alimentar: a galinha. As cinco galinhas e meia são antecipadas e postas em relevo pelo anacoluto, pois há uma inversão da ordem dos seus elementos, que seria “O senhor de Cascais deve cinco galinhas e meia”. O segundo verso identifica o débito (“deve” cinco galinhas e meia) e a figura histórica que corresponde ao devedor: D. António de Castro. Feita a substração, resta o que Camões efetivamente recebeu: meia galinha (“e a meia”), que vem cheia (adjetivo que se liga a outro – “recheadas” –, presente na epígrafe, por paronomásia a partir do mesmo étimo). Estamos perante uma espécie de eufemismo que aponta para o oposto daquilo a que se está a aludir: uma ausência. O registo das quantidades numéricas processa-se em decréscimo: de seis galinhas (epígrafe), passa-se a cinco galinhas e meia (v. 1), a seguir a meia (v. 3) e daí ao vazio (v. 4). Deste modo, é possível concluir que o adjetivo que aponta para a plenitude (“cheia”, do latim “plena”, que sugere exatamente a noção de plenitude) indicia, afinal, uma sucessão de faltas: do Senhor de Cascais, ao prometido; de comida, para o poeta; do recheio da meia galinha (sugerido pela ironia). Outra conclusão a que se pode chegar é que a “diminuição do quantitativo (em galinhas) é inversamente proporcional ao aumento dos apetites. (v. 4)”.
    O último verso assenta num jogo de palavras: o que preenche a galinha não corresponde à substância material do recheio, mas, por oposição, um apetite não satisfeito., o que, metaforicamente, pode ser interpretado como o vazio que se apodera do poeta. As suas expectativas foram traídas e a concavidade da meia galinha (personificada, ao ser dotada de apetites – não satisfeitos – a satisfazer) simboliza o seu desejo de comer. Deste modo, os apetites do poeta são transferidos para a meia galinha por hipálage. A metade do animal que Camões recebeu carrega consigo não um recheio material, mas o vazio onde se aloja o desejo em toda a sua plenitude, simbolicamente: é lá que se nutrem todos os anseios, todas as esperanças e todas as promessas que simbolizam “quanto de insaciável carrega a existência e com ela a escrita.” Note-se, por último, que, seguindo a tradição segundo a qual a redondilha deve apresentar uma estrutura circular, esta composição poética obedece a esse preceito, pois o último verso retoma o primeiro: “Cinco galinhas e meia” (v. 1); “de apetites para as mais” [cinco galinhas e meia].

Análise da cantiga "A la fé, Deus, se nom por Vossa Madre"

    Esta cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe), apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
    O «eu» poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”, ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
    Através do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda, neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”. O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”, ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da «senhor».
    No primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina, desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se “filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
    A terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”), deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
    Assim, chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora, completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
    Em suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval, vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um casamento arranjado pelas famílias.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Afons’ Afonses, batiçar queredes", de Afonso Sanches

    Só uma estrofe desta cantiga de Afonso Sanches nos chegou, a qual satiriza um indivíduo chamado Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que o poema se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado – e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do verso 6.
    Concretamente no que diz respeito a essa figura, não sabemos exatamente quem é este Afonso Afonses, o qual deseja batizar um criado (“Afons’ Afonses, batiçar queredes / vosso criad’”), porém não tem padre para presidir à cerimónia (“e cura nom havedes / que chamem clérig’”). Nestes versos, encontramos um jogo com a palavra «cura» no duplo sentido de “curar, tratar de” e “ter um padre”. Os últimos versos, nomeadamente o derradeiro, permite questionar quem é que, efetivamente, nunca tinha sido batizado, indiciando que se tratava do próprio Afonso Afonses: “como haverdes, / Afonso Afonses, nunca batiçado?”.
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