O poema, da autoria de Fiama Hasse Pais Brandão, é constituído por uma única estrofe, constituída por 13 versos livres, brancos ou soltos, e aborda a temática da infância, convocando a memória para a rememoração desse tempo e do impacto que teve na formação espiritual e emocional do sujeito poético. De facto, a experiência sensorial da Natureza molda-o-
O sujeito lírico recorda um passado distante – o da infância –, daí o recurso ao pretérito perfeito do indicativo (“Fui criança.”). Metaforicamente, retrata-o como um carreiro, que simboliza o percurso dessa fase da vida, uma passagem inicial, rodeada pela Natureza. Esse carreiro desagua no mar, um espaço que remete para a ideia de vastidão, de descoberta, de aventura. O mar, de facto, simboliza a vastidão da vida, a liberdade e o desconhecido – o destino para onde a criança caminha, representando a passagem para um mundo mais amplo e complexo – o da adultez. Durante o percurso, o «eu» poético vai de mão dada (supostamente com alguém), um gesto que representa afeto, proteção e cumplicidade: a criança não está sozinha, há quem a acompanhe e guie (talvez um adulto – um pai, uma mãe) através da Natureza – “entre árvores, pedras, insetos e aves” (esta enumeração de elementos naturais caracteriza-se pela diversidade e vida exuberante e evidencia a atenção que o «eu» infantil dedica ao que o rodeia – a Natureza funciona, assim, como companhia e cenário). Resumidamente, o carreiro simboliza o caminho estreito e inicial da infância, o percurso inicial, ainda protegido e embalado pela Natureza, rumo ao mar (a descoberta / a maturidade), em direção à maturidade.
O verso 4 recorda a poesia de Cesário Verde e Alberto Caeiro: “Toda a Natureza me coube nas pupilas”. O sujeito poético capta o mundo por meio dos sentidos, das sensações, nomeadamente, no caso do verso citado, da visão. Além das sensações visuais, nele ocorre uma hipérbole: toda a Natureza «caber» nos olhos do «eu» sugere a sua capacidade de maravilhamento, característica da infância. O verso seguinte personifica-a como mestra, isto é, como «algo» que ensina, e apresenta-se a si mesmo como «discípula», ou seja, como alguém que aprende a lição que a professora ministra. Note-se que o uso do feminino clarifica que o «eu» poético é uma mulher. Quer isto dizer que a infância é uma fase de aprendizagem, concretizada através da experiência sensorial do mundo. A Natureza é, em síntese, representada como uma mestra viva e sensível, que educa o «eu» através do que os sentidos conseguem captar. Através dos seus elementos (som, cor, movimento, etc.) e das suas ausências (silêncio, distância), ela ensina o sujeito lírico a sentir emoções como o prazer, a perda, a dor e a pertença. Neste contexto, as pupilas constituem uma espécie de portal sensorial através do qual a criança absorve o mundo – trata-se de uma espécie de abertura, de aprendizagem. A criança que o «eu» foi é, portanto, a discípula da Natureza, alguém que absorve o mundo com total abertura sensorial e emocional, conduzido e protegido pela mão de um adulto.
Quando o «eu» fechava os olhos e deixava de contemplar a Natureza, esta punia-o “com o silêncio cruel das ondas” (a ausência do som natural – sensação auditiva – é opressiva e dolorosa), com a “mudez imerecida dos insetos” (novamente o silêncio e nova sensação auditiva, representando um castigo injusto e vulnerável) e com a distância das aves, que lhe causava dor. Ou seja, o «eu» lírico relacionava-se com a Natureza, que o deixava maravilhado, através dos sentidos e das sensações, nomeadamente do olhar, o primordial. Fechando os olhos, deixa de poder contemplá-la, de se maravilhar com ela, e isso causa-lhe sofrimento e dor. Como castigo, a Natureza fica em silêncio, impedindo-o de com ela contactar, na ausência de visão, através do sentido seguinte mais abrangente: a audição. Esse sofrimento e essa dor intensificam-se com a distância de outro elemento natural: as aves. Além do corte da visão e do silêncio, a separação física delas – símbolo de liberdade – ampliam a sensação de perda e intensifica, a dor, pois representam a perda da ligação imediata e afetiva com o mundo natural e, simbolicamente, com a liberdade e a inocência da infância.
Quando abria os olhos e voltava a contemplar a Natureza com o olhar, o mundo regressava, abundante, generoso, acolhedor (o contacto com ela através dos sentidos é essencial para a plenitude), apaziguador e dele(a) (nota-se aqui um sentimento de pertenças forte, uma fusão entre o sujeito poético e o ambiente natural que o rodeia. No entanto, quem o guiava no tempo da infância – a “mão que me trazia a mão” (a repetição do nome «mão» reforça a ideia da ligação entre a infância e o amparo proporcionado pelos adultos, mas também o caminho em direção para uma nova fase da existência) – levava-o além da atitude de contemplação da Natureza, puxava-o – a mão que puxa representa o crescimento inevitável – para o crescimento, para a “luz de cada dia”, isto é, o quotidiano, o amadurecimento inevitável, para o qual é conduzido pelo adulto, experiente, conhecedor da vida e que já enfrentou aquele caminho, aquele processo. Assim sendo, a “luz de cada dia” associar-se-á à consciência, à maturação, à entrada consciente no mundo dos adultos. Por outro lado, essa transição da infância para a adultez constitui um movimento gradual, mas inevitável: o «eu», ligado à Natureza, é conduzido pela mão em direção ao futuro.