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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tipos de sátira

                        . Pessoal.
                        . Social (moral e religiosa).

                        . Política.

Temas da cantiga de escárnio e maldizer

                        1. Sátira política e religiosa

            * A cobardia dos cavaleiros (guerra de Granada).
            * A corrupção e os desmandos do clero.
            * O ciclo dos castelos  -  a traição dos alcaides (deposição de D. Sancho II).


              2. Sátira social e moral

* A decadência da nobreza: a ambição e pelintrice dos infanções.
* O escudeiro famélico, pelintra, mas fanfarrão e pretensioso.
* Crítica contra as mulheres.
* A imoralidade feminina: a cruzada da Balteira.
* Os amores duvidosos entre fidalgos e plebeias.
* A ridicularização dos maus trovadores.
* As polémicas entre trovadores e jograis.
* O desconcerto do mundo – a decadência da sociedade.
* Reflexões sobre a moral e os bons costumes.


Cantigas de maldizer

            As cantigas de maldizer são aquelas em que a pessoa satirizada é nomeada. Não velavam o ataque sob formas ambíguas, como acontecia nas de escárnio. Estas ferem directamente, sem subterfúgios; o sujeito diz o que tem a dizer, com uma linguagem baixa, vil e bruta.

Cantigas de escárnio

            As cantigas de escárnio são as que satirizam, atacam directamente, a descoberto, escarnecem de alguém com palavras de dois sentidos, sob formas ambíguas, "per palavras cubertas que hajam dous entendimentos", ou seja, feriam delicadamente.
            Eram impessoais, de crítica velada e indirecta.

            O recurso estilístico predominante é a ironia.

(Sub)géneros da poesia satírica portuguesa


O sirventês provençal e a sátira trovadoresca

            A sátira trovadoresca vestiu-se muito cedo pelo figurino da literatura provençal, que explorava o género em grande escala. As composições satíricas cultivadas na Provença tinham o nome de sirventês, cantiga satírica provençal de alcance moral ou social.

            Havia três espécies:
1ª) o sirventês moral ou religioso: ridicularizava a decadência do ideal da cavalaria e a rudeza dos barões, as leviandades das mulheres, os costumes duvidosos, a corrupção e os desmandos do clero;

2ª) o sirventês político: explorava e ridicularizava os sucessos da época, sobretudo a luta dos reis ingleses com os senhores feudais da França, as guerras civis, a cruzada dos Albigenses;

3ª) o sirventês pessoal: ridicularizava determinados aspectos da vida íntima ou profissional dos indivíduos, mormente a variedade ridícula e as pretensões dos jograis ("sirventês joglaresc").


            Ao contactar com a estética provençal, os nossos poetas começaram a satirizar os mesmos tipos e pelos mesmos processos. É às produções desta espécie que chamamos cantigas de escárnio e maldizer.

Artifícios poéticos da cantiga de amor de influência provençal

            * Coblas: segundo a "Arte de Trovar", as estrofes tinham o nome de coblas ou cobras e o seu número ficava ao sabor do trovador.
            As estrofes podem classificar-se como:
                        - uníssonas: têm a mesma rima;
                        - singulares: apresentam rimas diferentes;
                        - doblas ou pareadas: cada grupo de duas coblas tem a mesma rima.
            As cantigas galaico-portuguesas têm, regra geral, três ou quatro coblas, com excepção das paralelísticas. Cada copla pode apresentar número variável de versos. Em todas se encontra o isossilabismo, o mesmo número de sílabas, reforçado pelo princípio da isometria, a mesma medida, dentro de cada composição.
            Pode ter um predomínio de quatro versos na cantiga de refrão e de sete na cantiga de mestria.
            O número máximo de versos numa copla era de dez e o número mínimo de dois (paralelísticas).

            * Refrão: é o estribilho, ao qual regressava o coro ou o solista entre a execução de duas coplas. Podia estar ligado ao corpo da copla pelo sentido, ou ser independente dela.
            Surge nas paralelísticas e, em geral, nas cantigas de amigo, mas não aparece nas de mestria.

            * Finda: é uma copla de menor extensão, de um a quatro versos, que encerra a cantiga em jeito de conclusão.
            A "arte de Trovar" define-a como "acabamento de rrazon", "versos-remate".
            Nas cantigas de mestria, rima, geralmente, com a segunda parte da última estrofe; nas de refrão, a rima faz-se, regra geral, com o refrão.
            Uma cantiga pode possuir mais do que uma finda.

            * Atafinda: é um processo de ligação de coplas, feita pela continuação do último verso de uma estrofe na copla seguinte. Essa ligação faz-se através de partículas como "e", "ca", "pois", "quando", "pero", "que", etc.
            Ocorre tanto nas cantigas de mestria como nas de refrão.

            * Verso / palavra perduda: verso/palavra sem correspondência temática/rimática que aparece no meio, início ou fim da copla e deve repetir-se no mesmo lugar.

            * Enjambement / transporte / encavalgamento: consiste em completar o sentido de um verso no verso seguinte. D. Dinis chegou até a dividir a palavra.
            Este processo é uma constante na poesia de todas as épocas.

            * Dobre: repetição da mesma palavra de rima duas ou mais vezes em lugares simétricos da estrofe, de preferência no primeiro e no último verso.


            * Mordobre / mozdobre: repetição da mesma palavra em lugares simétricos, porém jogando com as suas várias flexões.

Características e estética da cantiga de amor

            . Análise profunda da interioridade dos que amam, sendo surpreendente uma certa racionalização dos efeitos do amor sobre o sujeito, à maneira de Camões.

            . A idolatração da mulher amada, a atitude de veneração, de submissão perante ela, recorda-nos Petrarca.

            . O sujeito sente que não é senhor do seu coração. Este enganou-o, fê-lo apaixonar-se por uns olhos verdes, temática que nos remete para a lírica camoniana, tal como acontece com a confissão do poeta de ser "sandeu", "já o sen non á", tudo por causa de uns olhos verdes.

            . A simbologia dos olhos.

            . O amor espiritual conduz a um aperfeiçoamento através da aspiração ao objecto amado. A mulher é a ponte para a plenitude, para o infinito, nela se realiza e por ela se esquece de si próprio, para pensar só no ben da dama (conferir a cantiga "Desej' eu ben de mha senhor" com o soneto "Transforma-se o amador na cousa amada").
            Mas o trovador sofre imenso, desespera e chega a desejar vingar-se da "senhor", mas tudo não passa de um desejo, porque não consegue deixar de a amar, não pode enganar o seu coração (é a temática do poder cruel do amor que novamente nos recorda Camões).

            . Os trovadores valorizam sobretudo as qualidades morais da mulher, qualificando-a através de expressões convencionais: "tan comprida de todo o ben", "a que prez nem fermosura non fal", "Deus fez sabedor de todo ben", "mui comunal", "Deus deu-lhe bon sen / e falar mui ben e rir melhor", "é leal muit", "olhos verdes", "ben talhada", "tan poderosa", "boõ semelhar", Deus fê-la "das melhores melhor", "ben talhada", "de muito ben saber".
            Muitas destas qualidades da "senhor" serão mais tarde recuperadas pelos petrarquistas.

            . Refletindo a profunda religiosidade do ser medieval, Deus está sempre presente, quase como um confidente. O trovador desabafa com Ele e pede-Lhe até conselho.

            . A simbologia da luz, com o seu poder de fogo.


            . O amor do trovador pela mulher é um amor idólatra, absorvente, torturado, saudoso, de um fatalismo passional.

Classificação das cantigas de amor

* Cantigas de mestria: são cantigas sem refrão; são as mais perfeitas. Os versos têm sete a dez sílabas e o número de estrofes raramente ultrapassava as três ou quatro.
            Seguem alguns formalismos, denotando a influência provençal:
                        . o dobre;
                        . o mordobre;
                        . a finda;
                        . a atafinda;
                        . o verso perdudo.
            Nas cantigas de mestria, podiam aparecer subgéneros:
                        . prantos: poesias de carácter fúnebre para exprimir a dor de uma morte;
                        . tenções: retratam um diálogo entre dois trovadores.

* Cantigas de refrão: no fim da cada estrofe, repete-se um ou mais versos, à laia de estribilho, à maneira das cantigas de amigo. São mais espontâneas, mais naturais, mais líricas, menos artificiais.

* Descordos: são cantos magoados, de variedade métrica, estrutura estrófica diferente e de difícil compreensão. Existem apenas três nos nossos cancioneiros. Exprimem os conflitos do amor, um amor tumultuoso, revolto, em convulsão no peito.

* Tenções: cantigas dialogadas entre trovadores, em que um procura contrariar o outro.

* Prantos / lais: desabafos plangentes com lágrimas de coita de amor.


            Todos estes subgéneros são de origem provençal.

Temática da cantiga de amor

                        1. Autenticidade

            O lirismo provençal levou ao florescimento das cantigas de amor na Península, mas elas têm características que as diferenciam.
            De facto, a cantiga de amor nacional é mais espontânea, mais sentida, mais autêntica, e relaciona-se com a nossa alma romântica, saudosa, um pouco masoquista até (denota um certo prazer mórbido no sofrimento, o gosto de estar triste, uma certa melancolia), enquanto o lirismo provençal assenta no fingimento, na insinceridade.
            Na cantiga "Proençais soen mui ben trobar", D. Dinis acusa os trovadores provençais de não terem "gran coita no seu coraçon", é um fingimento, pois sé "troban no tempo da flor". É uma clara referência aos costumes dos trovadores saírem de preferência na Primavera a exibir as suas cantigas de castelo em castelo.


                        2. O formalismo do amor cortês

            João Baveca, segrel galego da corte de Afonso X de Castela, crê na autenticidade amorosa como sendo fonte de inspiração e crítica, como D. Dinis, o formalismo do amor cortês, o fingimento dos trovadores provençais, que prejudica os que amam de verdade, porque as donas não acreditam naqueles que realmente as amam e, se elas soubessem como alguém pode amar, teriam dó. Mas por causa dos outros, elas pensam "que todos taes son" e, por isso, todos os que amam sinceramente perdem. E o fingimento é tal que até parecem mostrar melhor que os outros o seu amor.
            Em suma, através desta cantiga sente-se bem o fingimento de amor cortês: o amor é apenas uma forma de atingir um certo engrandecimento, valorização pessoal. Nesse aspirar podia encontrar-se uma certa plenitude, um "comprazimento" até estético. Afinal, estamos perante uma arte.


                        3. Amor cortês versus amor erótico

            O trovador vê o amor cortês como uma força espiritual e mística em oposição ao amor erótico, sensual e carnal.
            A mesura, o respeito pela sua "senhor", leva-o a esquecer-se dele próprio, humilhando-se, apagando-se, com medo de desrespeitar a mulher. É o código da mesura, é um amor puro, desinteressado, cuja finalidade é aperfeiçoar-se moralmente. É o amor-adoração, que se satisfaz na idolatração e veneração pela mulher, enquanto o trovador cresce em espiritualidade.
            O mal da senhora é também mal para o trovador e o seu grande desejo é o bem dela, sem que a mulher perca algo da sua dignidade e virtude. Todavia, há muitos namorados que só pensam em si e no seu prazer, sem se preocuparem se fazem mal ou não às suas "senhores". Estes, que amam a sua "senhor" para seu próprio "ben", sem procurarem o "ben" dela, não a amam, mas a si próprios.
            E o trovador que respeita a sua dama chega a desejar-se mal, se tiver esse género de comportamento. Ele ama-a mais do que a si próprio.


                        4. Ver /Viver

            A maior parte das vezes o trovador sofre tanto com a não correspondência amorosa da sua senhora que até prefere morrer. Ela exerce um grande fascínio nele, de tal forma que é, simultaneamente, seu "mal" e seu "ben". Nota-se, frequentemente, uma certa obsessão, um certo masoquismo e comprazimento na dor do que são constantes da estética do amor cortês e típicos da forma de ser lusitana.
            Esta atitude submissa do trovador, que tem a ver com a mesura provençal, reflecte bem a vassalagem amorosa do amor cortês.
            Por outro lado, a saudade da mulher amada pode levar o trovador à morte, caso não consiga rapidamente vê-la. O pedido do trovador é feito a Deus, uma presença constante na alma do trovador como o único que pode ajudá-lo na sua "coita de amor", ou não seja esta uma época de grande religiosidade, em que o próprio platonismo molda as almas, num amor espiritual. Por vezes, quase responsabiliza Deus pela sua "coita", pois foi Ele que a criou, que a fez superior a todas quantas conhece. Este desejo de morte surge, à semelhança de Bocage, como forma de libertação, como fuga ao sofrimento.

            Numa cantiga de Pêro Garcia Burgalês ("Ai eu coitad', e por que vi"), encontramos a mesma temática: a saudade, a mesma obsessão, a mesma ânsia de ver a mulher, modelo de virtude e beleza, a mesma vassalagem amorosa, o mesmo masoquismo da dor... influência do amor cortês. E também não falta a mesura: nunca ele pode forçar ou prejudicar a sua "senhor", assim lhe ordena o rigoroso código de honra, de fidelidade e vassalagem amorosa, porque ele quer mais à sua "senhor" que a si próprio.


                        5. O cenário

            Nas nossas cantigas de amor é raro surgir a natureza, o espaço geográfico, como cenário, porque a "coita de amor" domina a alma do trovador de tal forma que não há lugar para atentar no espaço exterior. Tudo não passa de um lamento, de um imenso queixume que se arrasta, invade o poeta e o leva a desejar a morte perante a indiferença da mulher amada. Por vezes, contudo, o espaço está bem patente na alma do poeta, mas é só porque a sua "senhor" está intimamente ligada a ele e uma saudade imensa o desconcerta.


                        6. A interioridade do trovador, seus sentimentos

            1. A partida, a separação da dama pode levar o trovador à loucura ou à morte – fatalismo de amor.

            2. O amor-paixão leva ao sofrimento.

            3. O amor leva ao desconcerto do sujeito. A morte para ele é mal e bem (recorda os sonetos de Camões sobre os efeitos contraditórios do amor).

            4. O amor-paixão cega o trovador, ao comprazer-se no amor infeliz, no masoquismo da dor, no gostar de estar triste, ser cativo, estar preso sem conseguir fugir.

            5. O amor cruel dilacera e mata, mas o trovador não consegue fugir-lhe – masoquismo de amor.

            6. Mas a vingança pode surgir por um amor não correspondido. O sujeito lírico, em grande desespero e tensão, desabafa a sua dor, a sua revolta contra este amor que prende, sufoca, mata, querendo vingança da sua "senhor". Todavia, este desejo nunca se irá concretizar.

            7. O tormento de amor atinge o auge quando a mulher o proíbe de lhe confessar o seu amor – fatalismo de amor. Ele quer-lhe pedir que corresponda ao seu amor, mas receia que ela o trate mal, que se "assanhe" e, pior que tudo, que nunca mais lhe queira dirigir a palavra.

            8. Afinal, a culpa é do coração, que engana, passa rasteiras ao trovador. Para seu mal, apaixona-se por ela, que se recusa a acreditar na sua "coita de amor".

            9. Os efeitos do amor na alma do trovador são terríveis: desesperado, confessa à "senhor" que não é capaz de declarar todo o mal que lhe vem por causa dela, a quem quer mais do que a outra coisa qualquer.
            E confessa-lhe que a culpa foi de Deus que, para seu mal, o levou a querer-lhe bem, a amá-la. Numa atitude de desespero, confessa que está prestes a perder o juízo e não consegue dormir.

            10. A mesura e o segredo são indispensáveis para ele ser retribuído no seu amor: nunca poderá mencionar o nome da mulher amada, para não a prejudicar, não afectar a sua honra.


Explicações para o fenómeno da poética do amor cortês

            Para a explicação do aparecimento duma poesia que glorifica o amor como sentimento capaz de transfigurar a pessoa humana, têm sido apresentadas várias teses.
            Afirmam uns que os poetas occitânicos (provençais) terão conhecido a poesia clássica, sobretudo a Arte de Amar de Ovídio, e que terão transposto alguns dos seus tópicos como o elogio das virtudes da mulher que corresponderia ao elogio dos soberanos, o da nobreza de alma que conquista. No caso do amor cortês, pela exaltação amorosa, o vilão poder-se-ia tornar cortês. Todavia os antigos consideravam o amor como um elemento perturbador, enquanto os trovadores cantavam o seu poder ideal.
            Procuram outros encontrar correspondência na poesia árabe, na qual perpassa um certo platonismo, exaltando o amor ideal. Mas os árabes atribuem quer à mulher quer ao homem o grau de sublimidade através da força do amor.
            Ainda outros procuram no folclore o fundamento para a explicação da poesia cortês. Não há dúvida de que as festas pagãs da Primavera e das flores de Maio exprimem uma alegria erótica muito forte que se casaria bem com o conceito de amor livre e anticonjugal da poesia provençal. Mas o carácter aristocrático da canção provençal não pode ser explicado apenas por essa influência popular. Há que encontrar outras hipóteses.
            A liturgia católica estaria na base desta poesia. A Igreja sempre celebrou o culto de Nossa Senhora como a mulher perfeita e ideal, diante da qual o cristão se deveria prostrar e à qual deveria venerar. Mas o amor cortês cantado pelos provençais trazia consigo o estigma do amor adulterino, o que obriga a encontrar ainda outras influências.
            Ao mesmo tempo e no mesmo espaço – na Provença – apareceu uma heresia poderosa que foi combatida, em tipo de cruzada, pela Igreja, mas defendendo um conceito de amor muito próximo do dos trovadores: os cátaros. Provinda do maniqueísmo, defendia a dualidade radical dos seres: o bem e o mal, Deus e o Diabo. Rejeitando quase tudo o que a Igreja Católica defendia, tinha uma concepção estranha acerca do casamento: os puros ou perfeitos obrigavam-se a abster-se de todo o contacto com suas mulheres se fossem casados, ou não casavam, os imperfeitos tinham o direito de se casar mas viviam condenados pelos puros. O casamento era um pacto com o Diabo. Não podendo excluir a união sexual, necessária para a continuação da espécie humana, cantavam o amor livre, fora de todos os laços matrimoniais. Há, efectivamente, uma relação entre o amor dos trovadores e o amor dos cátaros. Em ambos os casos, procurava-se um esquecimento do corpo e a fuga ao amor interessado do casamento. A aparição da amada perfeita – na teoria cátara, a alma era bissexual antes de encarnar no corpo miserável – salvava o trovador, abafando todos os desejos corporais. Mas há diferenças assinaláveis, porque os cátaros afirmaram sempre a superioridade do homem sobre a mulher. Há que procurar ainda outras fontes.
            O afrouxamento da autoridade e dos poderes traz uma possibilidade nova de admitir a mulher, mas a coberto duma idealização e até de uma divinização do princípio feminino. O que só pode avivar a contradição entre os ideais e a realidade vivida. A psique e a sensualidade naturais debatem-se nesses ataques convergentes, nessas condenações antitéticas, nesses constrangimentos teóricos e práticos, nessas liberdades muito obscuramente pressentidas na sua fascinante novidade.
            É no âmago dessa situação inextricável, é como uma resultante de tantas confusões que aí se deviam ligar, que aparece a cortesia, "religião" literária do Amor casto, da mulher idealizada, com a sua "piedade" particular, a joy d' amors, seus "ritos" precisos, a retórica dos trovadores, a sua moral da homenagem e do serviço, a sua "teologia" e as suas disputas teológicas, os seus "iniciados", os trovadores, e os seus "crentes", o grande público, culto ou não, que escuta aqueles e faz a sua glória mundana em toda a Europa. Ora, nós vemos esta religião do amor que enobrece ser celebrada pelos mesmos homens que persistem em considerar a sexualidade como "vil"; e vemos frequentemente no mesmo poeta um adorador entusiasta da Dama, que ele exalta, e alguém que despreza a mulher, que ele rebaixa.


            De amor sei que dá facilmente grande alegria àquele que observa suas leis, diz Guilherme, sexto conde de Poitiers e nono duque da Aquitânia, o primeiro trovador conhecido, que morreu em 1127. Desde o princípio do séc. XII, essas "leis de Amor" estão já portanto fixadas, como um ritual. São: Mesura, Serviço, Proeza, Longa Espera, Castidade, Segredo e Mercê, e essas virtudes conduzem à Alegria que é sinal e garantia de Vray Amor.

O fingimento de amor

            As cantigas de amor fazem uma análise bastante profunda do coração apaixonado. O amor é, para o trovador, uma felicidade, uma elevação, mesmo quando sofre com a sua indiferença; é um amor capaz de anestesiar todas as dores que sente na ausência dela.
            Claro que tudo isto é uma fórmula literária para tratar um amor que se queria comedido e mesurado em todos os aspectos.
            Este amor tinha que ser um amor fingido. É este amor que plasma nos cantares de amores provençais, um amor cerebrino, artificial, platónico. É mais um amor construído, fruto da inteligência e de um certo malabarismo verbal, do que fruto do coração, da sensibilidade.
            Wechssler chama à poesia trovadoresca "uma poesia de mentiras", mas tal afirmação não é inteiramente verdadeira, pois o amor pela senhora era espiritual, sublime. Através dela elevava o seu espírito, porque a senhora era um estímulo para a perfeição moral. E ela sentia-se fascinada com os olhares de todos os que imploravam os seus favores, pois adoravam ser cortejadas.
            O trovador vê no amor da sua "senhor" «uma fonte de enobrecimento da alma». É através da beleza feminina que o amante atinge o amor supremo. A sua beleza é um testemunho de Deus na terra. Na ascese amorosa, alimentada pelas qualidades morais da sua dama, o trovador reconhece o seu lado sublime, a capacidade de renunciar a tudo.

            Festa e jogo, o amor cortês realiza a evasão para fora da ordem estabelecida e a inversão das relações naturais. Adúltero por princípio, começa por desforrar-se das servidões matrimoniais. Na sociedade feudal, o casamento visava aumentar a glória e a riqueza duma casa. O negócio era tratado friamente, sem curar dos impulsos de coração, pelos mais velhos das duas linhagens. Estes fixavam as condições da troca, da aquisição da esposa, que devia tornar-se, para o futuro senhor, guardiã da sua moradia, ama dos seus criados e mãe dos seus filhos. Era preciso sobretudo que fosse rica, de boa estirpe e fiel. As leis sociais ameaçavam com as piores sanções a esposa adúltera e aquele que tentasse desviá-la. Mas concediam toda a liberdade aos homens. Complacentes, damas não casadas oferecem-se em cada castelo aos cavaleiros andantes das narrativas corteses. O amor cortês não foi portanto simples divagação sexual. É eleição. Realiza a escolha que o processo dos esponsais proibia. No entanto, o amante não escolhe uma virgem, mas a mulher de outro. Não a toma por força, conquista-a. Perigosamente. Vence pouco a pouco as suas resistências. Espera que ela se renda, que lhe ceda os seus favores. Para esta conquista desenvolve uma estratégia minuciosa, que aparece de facto como uma transposição ritualizada das técnicas da caçada, da justa, do assalto das fortalezas. Os mitos da perseguição amorosa decorrem como cavalgadas na floresta. A dama eleita é uma torre cercada.
            Mas esta estratégia coloca o cavaleiro em posição de servidão. O amor cortês inverte, ainda aqui, as relações normais. No real da vida, o senhor domina inteiramente a esposa. No jogo amoroso, serve a dama, inclina-se perante os seus caprichos, submete-se às provas que ela decide impor-lhe. Vive ajoelhado diante dela, e nesta postura de devotamento se encontram desta vez traduzidas as atitudes que, na sociedade dos guerreiros, regulavam a subordinação do vassalo ao seu senhor. Todo o vocabulário e todos os gestos da vida cortês saem das fórmulas e dos ritos da vassalidade. Em primeiro lugar, a própria noção de serviço e o seu conteúdo. Como o vassalo para com o senhor, o amante deve ser leal para com a dama. Empenhou a sua fé, não pode traí-la, e este laço não é daqueles que se desatam. Mostra-se valente, combate por ela, e são as vitórias sucessivas das suas armas que o fazem avançar nos seus caminhos. Finalmente, deve rodeá-la de atenção. Faz-lhe a corte, o que quer dizer que a serve ainda, tal como os vassalos reunidos em corte feudal em redor do seu senhor. Mas, como o vassalo, o amante entende que por esse serviço obterá um dia recompensa e ganhará sucessivos dons.
            Neste plano, o jogo do amor sublima o impulso sexual e transpõe-no. (...) No comum dos ritos de corte, o amor vive da esperança dum triunfo final que levará a dama a entregar-se toda, uma vitória secreta e perigosa sobre a proibição maior e sobre os castigos prometidos aos amplexos adúlteros. Contudo, enquanto a espera dura, e convém que se prolongue por muito tempo, o desejo tem de satisfazer-se com pouco. Ao amante que quer conquistar a eleita, importa que se domine. De todas as provas que o amor lhe impõe, a que tem o mais claro símbolo das necessidades do prazo consentido é "a experiência" que as canções dos trovadores celebram: a dama ordena ao cavaleiro que se deite ao lado dela, em comum nudez, mas que domine o seu desejo. O amor reforça-se nesta disciplina e nas alegrias imperfeitas dos afagos comedidos. Os seus prazeres tornam-se então sentimento. A centelha amorosa não reúne corpos, mas corações. (...) Além disso, no próprio momento em que as regras da cortesia se impunham pouco a pouco à cavalaria do Ocidente, o culto de Maria invadia a cristandade latina. Nos progressos da sua conquista, a espiritualização do instinto sexual e a transferência dos valores femininos para a piedade enriqueceram-se com uma mútua permuta. A Virgem depressa surgiu como a Dama por excelência, Nossa Senhora, que cada um deve servir de amor. Quiseram-se dela imagens elegantes, graciosas, sedutoras. Para melhor atingir o coração dos pecadores, as Virgens do século XIV mostram-se toucadas, penteadas, ataviadas como princesas corteses. E a fantasia divagante de certos místicos aventurou-se por vezes na contemplação dos seus encantos corporais. Inversamente, a dama eleita esperou do seu amante sinais de devoção, laudes que fossem buscar as suas metáforas aos cantos do amor místico. (...)
            O amor cortês continuou a ser um jogo, um divertimento secreto. Vive de piscadelas de olho cúmplices. Discreto, dissimula-se sob aparências enganadoras. Mascara-se sob o esoterismo do trobar clus, dos gestos simbólicos, das divisas de duplo sentido, duma linguagem que só os iniciados sabem decifrar. Por essência, e nas formas que exprime, é todo ele fuga para fora do real, como a festa. É um intermédio apaixonante, mas de total gratuidade, que não compromete o fundo da pessoa.

                                   Georges Duby, O Tempo das Catedrais (19179), pp. 152-153

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Amor cortês e casamento

            O facto de este amor ser aceite resulta do facto de o casamento medieval ser visto como um contrato, uma união de heranças, patrimónios e famílias. Era um casamento por interesse: mal acabavam de nascer, os pais destinavam logo os seus filhos, tal como ainda hoje acontece em algumas tribos africanas. Não há, no casamento, qualquer referência ao sentimento amoroso, ao afecto. Por isso, não é ilógico que se fale de amor entre pessoas que não são casadas, trovador e sua "senhor".
            A mulher casada, em geral, não conhecia o amor e os trovadores pensaram que talvez a pudesse compensar dessa falta. Eles iam cantar as "donas", que tinham, além disso, muito poder económico.
            O cavaleiro começou, progressivamente, a ausentar-se menos, vivendo mais na companhia da mulher e da família. O barão, no seu lar, mais palaciano, começou a constituir uma corte onde tinham ocasião de florescer as graças femininas, aonde eram mandados os filhos e as filhas dos vassalos a aprender as artes e as maneiras próprias dos donzéis e das donzelas, e à qual menestréis, vendedores ambulantes e outros educadores vagabundos levavam notícias do mundo e os produtos da sua indústria. Começava a florir de novo a civilização. A música, a poesia, as artes manuais, a pintura, a escultura, a arquitectura novamente surgiam para a vida.
            Foi neste ambiente que surgiu "a requintada galanteria do amor cortês" e, para expressá-lo, a chamada cantiga ou cantar de amor, um amor puro, delicado e inatingível, o amor-adoração, puramente platónico. De facto, o amor cortês é altruísta, generoso, sem obrigações nem contratos e só podia existir entre pessoas não casadas. Claro que isto é uma formulação teórica e poética do amor. Mas não se pense que estamos perante um amor absolutamente platónico; podia ser físico e isto não era desmesurado. Com efeito, o pedido do trovador ia até "obter o galardão máximo", um encontro a sós com a sua "senhor". Por isso, a ideia da morte de amor é fingida, porque esta formulação de amor é muito fantasista e idealizada.
            É conhecido o drama do poeta Guilherme de Cabestanh que se deixou apaixonar por Seremonda. O marido não gostou, matou-o com requintes de malvadez, arrancou-lhe o coração e mandou-o servir assado à sua "senhor" Seremonda. E, não contente, no fim da refeição, informou-a de onde lhe veio tal manjar. Horrorizada, a senhora atirou-se pela janela e morreu.
            As cantigas de amor seguem a mesma fórmula:
                        * louvor da dama;
                        * referência ao sofrimento que o trovador diz sentir;
                        * auto-elogio do trovador, quando fala do seu sofrimento;
                        * mesura no comportamento do trovador e da dama.


O amor cortês

            As cantigas de amor veiculam um conceito de amor muito próprio: amor cortês, porque este tipo de cantar teve a sua origem na corte e, por isso, transmite um certo refinamento de atitudes e comportamentos. Este amor é um amor fino, refinado, que traduz uma certa excelência em termos morais (cortesia) a que corresponde um comportamento social (mesura): saber falar, andar, olhar, rir.
            Este amor obedecia a um código designado por fin' amors, que implicava determinadas regras:
-» este amor era, para o trovador, fonte de felicidade e, mesmo quando não correspondido,  ele devia continuar a servi-la,  pois essa atitude só mostrava como era mesurado e comedido;
-» o sofrimento inicial do trovador é necessário para que ele se mostre digno dela;
-» para se aproximar e alcançar a mercê da dama, à maneira do vassalo para com o seu senhor, o trovador seguia um certo ritual, composto por várias fases:
1.ª- suspirante ou fenhedor: tímido, olha a dama de longe, suspirando e ansiando;
2.ª- suplicante ou precador: já consegue/ousa dirigir-se à dama, solicitando-lhe atenção para a sua humilde pessoa e correspondência ao seu amor;
3.ª- namorado ou entendedor: consegue ser ouvido pela dama e a correspondência é quase completa;
4.ª- amante ou drudo: o trovador é correspondido espiritual e fisicamente (na cantiga de amor lusa, era raríssimo atingir o grau de drudo, pois este amor era a arte pela arte, um amor puro, platónico);
-» o amor é uma submissão de vontades e compromisso de prestação de serviços do trovador à dama: ele humilha-se, serve, ajoelha e adora-a;
-» se não queria incorrer na sanha (ira) da sua "senhor", o trovador deveria ter presente as seguintes obrigações:
                                   . vassalagem amorosa, humilde e paciente;
                                   . obediência e sujeição absoluta à dama;
                                   . servi-la e honrá-la até à morte;
                                   . ocultar o nome da "dona" cantada, através do uso do senhal;
. ter em atenção a  mesura  e  a  cortesia  ( a  falta  deste preceito podia acarretar a sanha da dama e "quitar-lhe o preito", isto é, romper a fidelidade a que se obrigavam).
            Como se pode constatar, a mulher cortejada pelos trovadores não era a donzela, a mulher solteira, mas a casada, pois a donzela, no feudalismo, não tinha importância: não era independente, não possuía bens materiais.

            Neste tipo de cantiga, o trovador empreende a confissão, dolorosa e quase elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões porque de superior estirpe social, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído. Uma atmosfera plangente, suplicante, de litania, varre a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de identidade ou contemplação platónica, mas entranham-se-lhe no mais fundo dos sentidos: o impulso erótico situado na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se. Tudo se passa como se o trovador "fingisse", disfarçando com o véu do espiritualismo, obediente às regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença, o verdadeiro e oculto sentido das solicitações dirigidas à dama. À custa de "fingidos" ou incompreendidos, os estímulos amorosos transcendentalizam-se, graças ao torturante sofrimento interior que se segue à certeza da inútil súplica e da espera dum bem que nunca chega. É a coita (= sofrimento) de amor que, afinal, ele confessa.
            As mais das vezes, quem usa da palavra é o próprio trovador, dirigindo-a em vassalagem e subserviência à dama de seus cuidados (mia senhor ou mia dona = minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. E este orienta-se de acordo com um rígido código de comportamento ético: as regras do "amor cortês", recebidas da Provença. Segundo elas, o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha), e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases: a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda é da precador, de quem ousa declarar-se e pedir; entendedor é o namorado; drut, o amante. O lirismo trovador português conheceu as duas últimas fases, mas o drut (drudo em português) encontrava-se exclusivamente na cantiga de escárnio e maldizer. Também a senha era desconhecida do nosso trovadorismo. O trovador, portanto, subordina todo seu sentimento às leis da corte amorosa, e ao fazê-lo, conhece as dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que o levaria à consecução dum bem impossível. Mais ainda: dum bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requestos do trovador) que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria pôr fim ao seu tormento masoquista, ou início dum outro maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa.
            E, ao tentar exprimir-se, a plangência da confissão do sentimento que o avassala – apoiada numa melopeia própria de quem mais murmura suplicantemente do que fala – vai num crescendo até à última estrofe (a estrofe era chamada, na lírica trovadoresca, de cobra); podia ainda receber o nome de cobla ou de talho. Visto uma ideia obsessiva estar empolgando o trovador, a confissão gira em torno dum mesmo núcleo, para cuja expressão o enamorado não acha palavras muito variadas, tão intenso e maciço é o sofrimento que o tortura. Ao contrário, parece que seu espírito, caminhando dentro dum círculo vicioso, acaba por se repetir monotonamente, apenas mudando o grau de lamento, que aumenta em avalanche até ao fim. O estribilho ou refrão, com que o trovador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante ideia fixa para a qual ele não encontra expressão diversa.
            Quando presente o estribilho, que é recurso típico da poesia popular, a cantiga chama-se de refrão. Quando ausente, a cantiga recebe o nome de maestria, por tratar-se dum esquema estrófico mais difícil, intelectualizado, sem o suporte facilitador daquele expediente repetitivo.

                                               Massaud Moisés

            O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, (...) a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o Homem. A nossa cantiga d' amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica.
            O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura: todo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa. É uma voz que vem dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga d' amor um cunho de obsessão, de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas.
            Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram: o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. (...) Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo para cada estrofe, é inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes de forma.

                        Manuel Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, pp. 132-133

A supremacia da mulher e a cantiga de amor

            No sul de França, a mulher dispunha de uma certa independência social e económica, que tem o seu reflexo na poesia provençal.
            Com efeito, a mulher é o centro do cantar de amor. Ao contrário do cantar de amigo, aqui a dama é sempre casada e, por isso, o trovador, quando se lhe dirige, usa uma espécie de código ou senha (senhal) – referência à cor dos olhos, do cabelo, expressões como "mia senhor", etc. – para evitar a sua identificação. Por isso, o retrato que nos é dado é de natureza genérica e pouco concreta: bela, devota, sabe falar e estar socialmente, é bondosa, meiga e cordata.
            Mas este amor cortês, puro, impõe um ritual bem apertado, à maneira da estrutura feudal: assim como o vassalo deve vassalagem e obediência ao seu senhor, também o trovador deve vassalagem e obediência à sua dama – ela é a sua suserana, ele seu vassalo. O trovador coloca-se abaixo da mulher cantada e que ele quer servir. Por isso se diz que esta relação é uma verdadeira relação feudal.


            Daí o trovador tratar a dama por "mia senhor"/"midons". Outras palavras ligadas ao feudalismo são: "liam" (vínculo suserano-vassalo // senhora-trovador), vassalo, serviço. etc. O amor é um serviço feudal que implica o mesmo ritual sócio-político e que vive da admiração recíproca.
            O trovador admira a sua dama, sobretudo as suas virtudes morais, a sua dignidade, a sua fidelidade. É um amor quase idólatra, um amor absorvente, torturado, saudoso, de um fatalismo passional.
            Vários são os elementos que contribuem, na Provença, para o nascimento deste hino amoroso: o clima ameno, a terra, fértil, o contacto com o Mediterrâneo e a sua abertura para as civilizações que por ali passaram. As suas gentes eram alegres, a paisagem verdejante, com horizontes a perder de vista. Tudo era favorável ao despertar do amor e desse lirismo de amor.

            A mulher que, na Grécia e em Roma, no paganismo, era até desprezada, considerada pior que uma besta (Séneca via-a como impudens animal), começa a ser reabilitada com o cristianismo e agora, no regime feudal, vai ser exaltada, endeusada, sobretudo no sul da Provença, onde ela gozava de uma situação privilegiada: herdava e possuía bens próprios e podia dispor deles, a seu belo prazer, independentemente do consentimento do marido. Era, afinal, uma espécie de compensação para os efeitos negativos que a guerra lhe trazia: o marido partia para a guerra e a mulher ficava só a enfrentar a vida.

O lirismo de amor

            A partir de determinada altura, a guerra começa a esmorecer, outros interesses renascem e no sul desponta um novo ideal amoroso. Uma elite de nobres e clérigos procura nas letras outras distracções que tivessem mais a ver com as suas almas sensíveis e líricas. E no século XI desperta o espírito cortês, cria-se um universo novo de sonho e fantasia, que faz nascer uma literatura popular, que se tornou artística e penetrou nas cortes senhoriais e reais.
            Como a canção do povo era cantada e bailada, os trovadores distinguem-se não só pela arte de trovar, como de "cantar e bailar a la provençalesca". E a poesia, cuja origem radica no desafogo da vida burguesa durante a época das cruzadas, entre a primeira, em 1095, e a segunda, em 1268, entra, assim, nas cortes e é imitada por reis e príncipes, mas nem por isso deixa de perder a sua origem plebeia. E não é só a divulgação deste lirismo por toda a Europa: é o renascer destas canções nas populações românicas.
            O cavaleiro já não combate mais pelo seu Deus nem pelo seu senhor, mas pela sua dama.
            Nasce, então, a arte dos trovadores, a arte do amor cortês, o amor puro que leva à virtude, à perfeição, à razão de existir.


Canções de gesta

            No Norte de França floresce uma literatura de exaltação nacional e mística. Os trovadores cantam e imortalizam os feitos heróicos de cavaleiros que partem, indómitos e ferozes, a defender a pátria e a fé de Cristo, criando epopeias onde celebram a coragem, a honra, o heroísmo, a determinação desses homens bravos que ficarão para sempre imortalizados na alma dos povos. Estas epopeias dirigem-se a todas as classes, cantando e celebrando o presente e recriando um passado através de tradições e mitos fabulosos e heróicos.

            No Norte estes cantares, de tom épico, heróico, majestoso, conduzem à morte. São as canções de gesta.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Abreviações e particípio passado


     Mais uma peça da imprensa...

     Pelo menos dois erros são evidentes:

     1.º) A abreviação sem o pontinho: 1.ª e não «1ª».

     2.º) O complexo verbal «ter aceite» está incorreto. Determinados verbos possuem duas formas de particípio passado. É o caso de «aceitar»: «aceitado» e «aceite». Ora, a primeira forma é usada com o auxiliar "ter", enquanto «aceite» é utilizada com o auxiliar «ser»:
 
          - Williams foi o único a ter aceitado a proposta.

          - A proposta foi aceite por Williams.
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