As cantigas de amor fazem uma
análise bastante profunda do coração apaixonado. O amor é, para o trovador, uma
felicidade, uma elevação, mesmo quando sofre com a sua indiferença; é um amor
capaz de anestesiar todas as dores que sente na ausência dela.
Claro que tudo isto é uma fórmula
literária para tratar um amor que se queria comedido e mesurado em todos os
aspectos.
Este amor tinha que ser um amor
fingido. É este amor que plasma nos cantares de amores provençais, um amor
cerebrino, artificial, platónico. É mais um amor construído, fruto da
inteligência e de um certo malabarismo verbal, do que fruto do coração, da
sensibilidade.
Wechssler chama à poesia
trovadoresca "uma poesia de mentiras", mas tal afirmação não é
inteiramente verdadeira, pois o amor pela senhora era espiritual, sublime.
Através dela elevava o seu espírito, porque a senhora era um estímulo para a
perfeição moral. E ela sentia-se fascinada com os olhares de todos os que
imploravam os seus favores, pois adoravam ser cortejadas.
O trovador vê no amor da sua
"senhor" «uma fonte de enobrecimento da alma». É através da beleza
feminina que o amante atinge o amor supremo. A sua beleza é um testemunho de
Deus na terra. Na ascese amorosa, alimentada pelas qualidades morais da sua
dama, o trovador reconhece o seu lado sublime, a capacidade de renunciar a
tudo.
Festa e jogo, o amor cortês realiza
a evasão para fora da ordem estabelecida e a inversão das relações naturais.
Adúltero por princípio, começa por desforrar-se das servidões matrimoniais. Na
sociedade feudal, o casamento visava aumentar a glória e a riqueza duma casa. O
negócio era tratado friamente, sem curar dos impulsos de coração, pelos mais
velhos das duas linhagens. Estes fixavam as condições da troca, da aquisição da
esposa, que devia tornar-se, para o futuro senhor, guardiã da sua moradia, ama
dos seus criados e mãe dos seus filhos. Era preciso sobretudo que fosse rica,
de boa estirpe e fiel. As leis sociais ameaçavam com as piores sanções a esposa
adúltera e aquele que tentasse desviá-la. Mas concediam toda a liberdade aos
homens. Complacentes, damas não casadas oferecem-se em cada castelo aos
cavaleiros andantes das narrativas corteses. O amor cortês não foi portanto
simples divagação sexual. É eleição. Realiza a escolha que o processo dos esponsais
proibia. No entanto, o amante não escolhe uma virgem, mas a mulher de outro.
Não a toma por força, conquista-a. Perigosamente. Vence pouco a pouco as suas
resistências. Espera que ela se renda, que lhe ceda os seus favores. Para esta
conquista desenvolve uma estratégia minuciosa, que aparece de facto como uma
transposição ritualizada das técnicas da caçada, da justa, do assalto das fortalezas.
Os mitos da perseguição amorosa decorrem como cavalgadas na floresta. A dama
eleita é uma torre cercada.
Mas esta estratégia coloca o
cavaleiro em posição de servidão. O amor cortês inverte, ainda aqui, as
relações normais. No real da vida, o senhor domina inteiramente a esposa. No
jogo amoroso, serve a dama, inclina-se perante os seus caprichos, submete-se às
provas que ela decide impor-lhe. Vive ajoelhado diante dela, e nesta postura de
devotamento se encontram desta vez traduzidas as atitudes que, na sociedade dos
guerreiros, regulavam a subordinação do vassalo ao seu senhor. Todo o
vocabulário e todos os gestos da vida cortês saem das fórmulas e dos ritos da
vassalidade. Em primeiro lugar, a própria noção de serviço e o seu conteúdo.
Como o vassalo para com o senhor, o amante deve ser leal para com a dama.
Empenhou a sua fé, não pode traí-la, e este laço não é daqueles que se desatam.
Mostra-se valente, combate por ela, e são as vitórias sucessivas das suas armas
que o fazem avançar nos seus caminhos. Finalmente, deve rodeá-la de atenção.
Faz-lhe a corte, o que quer dizer que a serve ainda, tal como os vassalos
reunidos em corte feudal em redor do seu senhor. Mas, como o vassalo, o amante
entende que por esse serviço obterá um dia recompensa e ganhará sucessivos
dons.
Neste plano, o jogo do amor sublima
o impulso sexual e transpõe-no. (...) No comum dos ritos de corte, o amor vive
da esperança dum triunfo final que levará a dama a entregar-se toda, uma
vitória secreta e perigosa sobre a proibição maior e sobre os castigos
prometidos aos amplexos adúlteros. Contudo, enquanto a espera dura, e convém
que se prolongue por muito tempo, o desejo tem de satisfazer-se com pouco. Ao
amante que quer conquistar a eleita, importa que se domine. De todas as provas
que o amor lhe impõe, a que tem o mais claro símbolo das necessidades do prazo
consentido é "a experiência" que as canções dos trovadores celebram:
a dama ordena ao cavaleiro que se deite ao lado dela, em comum nudez, mas que
domine o seu desejo. O amor reforça-se nesta disciplina e nas alegrias
imperfeitas dos afagos comedidos. Os seus prazeres tornam-se então sentimento.
A centelha amorosa não reúne corpos, mas corações. (...) Além disso, no próprio
momento em que as regras da cortesia se impunham pouco a pouco à cavalaria do
Ocidente, o culto de Maria invadia a cristandade latina. Nos progressos da sua
conquista, a espiritualização do instinto sexual e a transferência dos valores
femininos para a piedade enriqueceram-se com uma mútua permuta. A Virgem depressa
surgiu como a Dama por excelência, Nossa Senhora, que cada um deve servir de
amor. Quiseram-se dela imagens elegantes, graciosas, sedutoras. Para melhor
atingir o coração dos pecadores, as Virgens do século XIV mostram-se toucadas,
penteadas, ataviadas como princesas corteses. E a fantasia divagante de certos
místicos aventurou-se por vezes na contemplação dos seus encantos corporais.
Inversamente, a dama eleita esperou do seu amante sinais de devoção, laudes que
fossem buscar as suas metáforas aos cantos do amor místico. (...)
O amor cortês continuou a ser um
jogo, um divertimento secreto. Vive de piscadelas de olho cúmplices. Discreto,
dissimula-se sob aparências enganadoras. Mascara-se sob o esoterismo do trobar clus, dos gestos simbólicos, das
divisas de duplo sentido, duma linguagem que só os iniciados sabem decifrar.
Por essência, e nas formas que exprime, é todo ele fuga para fora do real, como
a festa. É um intermédio apaixonante, mas de total gratuidade, que não
compromete o fundo da pessoa.
Georges Duby,
O Tempo das Catedrais (19179), pp.
152-153
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