Antes de
mais, convém esclarecer o seguinte: os coveiros são designados por um termo que
podemos traduzir por «palhaços», contudo, na época de Shakespeare, o vocábulo
não tinha o mesmo significado que no século XXI (um artista de circo ou uma
pessoa brincalhona e engraçada), antes se referia a uma pessoa rústica ou a um
camponês. Deste modo, os coveiros representam um tipo humorístico comumente
presente nas peças de Shakespeare, ou seja, o plebeu astuto e matreiro que
«vence» personagens de um estrato social superior através da sua astúcia e
inteligência, o que fazia com que as peças / representações atraíssem pessoas
de classes sociais inferiores, nomeadamente os chamados «groundlings», isto é,
aqueles que não tinham possibilidades de pagar assentos e, por isso, se
sentavam no chão. Dito isto, nesta cena em particular, os coveiros são figuras
macabras, pois os seus ditos jocosos e provocações são produzidos no cemitério
enquanto abrem a sepultura que constituirá a derradeira morada de Ofélia,
rodeados de ossos de mortos. Não obstante, o diálogo que travam a propósito da
jovem, cuja identidade desconhecem, foca um tema importante: a questão do
suicídio e a forma como a religião e a sociedade o encaram e tratam.
De facto, o
suicídio é fortemente condenado na época, o que decorre das raízes, da
influência, cristãs da sociedade. O cristianismo encarava-o como uma renúncia,
uma rejeição da vida, considerada uma dádiva divina, constituindo, portanto, um
desrespeito a Deus. Assim, na sequência desta visão da questão, a maioria das
pessoas que se suicidava era privada de um sepultamento cristão. É isto que
explica a pressão de Laertes sobre o padre para proporcionar um enterro digno e
adequado à irmã, bem como a relutância do religioso em o fazer, pois seria
contrário à prática cristã. Por outro lado, o facto de o padre fazer alguma
concessão evidencia a importância do status social na época, ou seja,
como Ofélia era nobre e pertencia a uma família respeitada e com ligações ao
poder, o religioso fez o possível para lhe proporcionar um enterro condigno,
mesmo que essa atitude contrarie os princípios cristãos.
Esta cena
levanta outra questão presente ao longo da obra: a figura da mulher numa
sociedade patriarcal. No início da peça, tanto Polónio como Laertes aconselham
Ofélia no sentido de proteger a sua honra e a sua inocência, tidas como
fundamentais para as mulheres nobres da época. É esse mesmo sentimento que
anima Laertes a tentar convencer o padre a enterrar Ofélia como uma jovem
inocente, sem pecado. Sucede, porém, que ela se suicidou, pelo que o irmão não
pode mais proteger a sua irmã nem exercer a sua vontade sobre a rapariga. Deste
modo, podemos concluir que é na morte que Ofélia se liberta finalmente da
influência e do domínio dos homens na sua vida.
Após a
descoberta do crânio de Yorick, Hamlet faz uma reflexão filosófica e mórbida
sobre a morte. Ao recordar o quão cheio de vida e alegre era o bobo da corte,
essa recordação desperta nele o reconhecimento de que não importa o estrato
social, o poder ou a forma de ser da pessoa, pois todos acabarão por morrer e
transformar-se num amontoado de ossos. Quando se apercebe de que o crânio fede,
conclui que mesmo os grandes vultos e heróis da humanidade, como, por exemplo,
Alexandre, o Grande, morrem e apodrecem. Deste modo, Hamlet conclui que ninguém
é imune à passagem e devastação do tempo e à morte. Nesta cena, o príncipe
imagina o pó do cadáver decomposto de Júlio César a ser usado para remendar uma
parede, o que se relaciona com uma fala sua proferida no ato IV, quando declara
que um homem pode pescar com o verme que comeu de um rei e comer do peixe que
se alimentou daquele verme, uma imagem que, no fundo, ilustra a ideia de que um
rei pode passar pelas entranhas de um mendigo. Estamos na presença de temas
abordados já na literatura da Antiguidade e retomados pelos autores do
Renascimento. Em última análise, o príncipe conclui que nada importa – o que é
ou o que fizer –, pois inevitavelmente morrerá. Essa noção liberta-o de alguma
forma, daí que finalmente dê um passo em direção à vingança na cena seguinte.
Ele sempre se preocupou em fazer o que é correto e honrado, o que leva a
hesitar constantemente sobre como agir, contudo, ao interiorizar a
inevitabilidade da morte, as suas preocupações sobre o modo certo de agir
parecem-lhe insignificantes. O que importa se ajo corretamente ou não, se vou
morrer de qualquer forma?
Outro ponto
interessante é o facto de, em nenhum momento, Hamlet expressar qualquer
sentimento de culpa relativamente à morte de Ofélia, de que é indiretamente
culpado, não só por causa da forma fria e desconcertante como a tratou, mas
também por ter assassinado o seu pai. O único momento em que se nota algum
traço de arrependimento está presente na cena seguinte, concretamente no
momento em que se desculpa perante Laertes antes do duelo, culpando a sua
«loucura» pela morte do pai. No entanto, este passo parece incoerente, visto
que Hamlet já declarara anteriormente estar apenas a fingir que estava louco.
Tudo isto questiona a sua moralidade, porém, tendo em conta as suas constantes
hesitações e indefinições, bem como a dor e o conflito interior que sempre o dilaceraram,
é possível que, se assumisse a totalidade da sua responsabilidade e culpa nos
acontecimentos, nomeadamente na morte de Polónio, fosse incapaz de suportar o
tormento psicológico daí resultante. Seria, provavelmente, um peso demasiado
grande para ele suportar. Neste caso, nem a descoberta recente do efeito equalizador
da morte e da decomposição física (tanto os grandes homens como os mendigos se
transformam em pó) o levam a desprender-se da sua «persona» e a agir
corretamente.
Por último,
o confronto de Hamlet e Laertes no túmulo de Ofélia antecipa o confronto final
que está iminente. O facto de ter lugar num cemitério, mais concretamente numa
sepultura, constitui um presságio de morte de ou de ambos. Eles vão
enfrentar-se num combate de esgrima, portanto a morte pode atingir qualquer um
dos dois.
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