Português: Análise da cena 2 do ato V de Hamlet

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Análise da cena 2 do ato V de Hamlet

    A cena final de Hamlet é um festival de sangue e morte. São várias as personagens que perdem a vida e de diversas formas: veneno, espada, execução. As causas de tal mortandade radicam no desejo de vingança e de justiça. A obsessão pela vingança faz recair a morte sobre todos os diretamente envolvidos.
    Nos momentos que antecedem o duelo, Hamlet parece em paz. Embora sentindo uma certa tristeza no coração, aparenta estar reconciliado com a ideia da morte e ter afastado os receios relativos ao sobrenatural. Por outro lado, o desejo de ser perdoado por Laertes confirma essa mudança operada no príncipe. Até aqui, vivia centrado em si e na sua família – a morte do pai, a vingança da sua morte, a mãe –, porém agora parece sentir empatia pelos outros. No entanto, acaba por nunca assumir a responsabilidade pela morte de Polónio, mas a morte de Ofélia tê-lo-á levado a refletir e a agir de outra forma.
    Nesta cena derradeira, finalmente consuma a sua vingança e mata Cláudio, porém essa morte não deriva de qualquer plano traçado, mas enquanto reação às palavras acusatórias de Laertes, que o denuncia como o autor do envenenamento da espada e do vinho. Assim sendo, o único ato de vingança praticado por Hamlet resulta de novo momento impulsivo, tal como tinha sucedido com o assassinato de Polónio. Ambos os atos resultam de fúria momentânea, de impulso, o que significa que acaba por nunca superar a sua indecisão e as suas hesitações relativamente ao consumar da vingança. Ele não tem tempo para pensar, antes é empurrado para agir, forçado a responder aos acontecimentos. A decisão de aceitar o desafio de esgrima pode ter sido estratégica, mas também entendida como um ataque ao seu orgulho (afinal, Cláudio aposta na vitória de Laertes), todavia o que é certo é que Hamlet cai na armadilha montada pelo tio e por Laertes. Novamente, o príncipe não age, reage.
    De facto, Hamlet aceita o desafio, mas não sem expressar algumas reticências a Horácio, que o aconselha a desistir, porém o príncipe considera uma desistência um gesto irracional. Nesta sequência, interioriza a possibilidade de morrer, mostrando que está “pronto” para tal. Estes dados significam também que ele está bem ciente da ameaça que o confronto com Laertes representa. Além disso, as suas palavras carregadas de fatalismo e pressagiantes prenunciam a sua morte.
    O relato que faz a Horácio acerca da forma como subverteu os planos de Cláudio mostram que Hamlet é uma pessoa inteligente, astuta e manipuladora. Em simultâneo, no momento em que engana Rosencrantz e Guildenstern, está, na prática, a traí-los e a condená-los à morte, à semelhança do que estes estavam prontos para lhe fazer. Assim sendo, coloca-se ao nível dos antigos amigos, o que mostra que superou o tempo em que considerava que dois erros não faziam um acerto. Por outro lado, tudo isto vem confirmar a ideia de que abandonou grande parte das suas preocupações morais.
    O destino de Gertrudes, como não poderia deixar de ser, é igualmente a morte. Ela é vítima inconsciente dos atos do segundo marido, que não lhe eram dirigidos: sem saber, bebe o vinho envenenado que era destinado a Hamlet, seu filho. Deste modo, estamos perante novo caso de uma mulher que morre por causa da ação dos homens que fazem parte da sua vida e que a dominam. Por outro lado, os acontecimentos indiciam que a rainha não estava ciente do envolvimento de Cláudio no assassinato do rei Hamlet.
    Apesar de esse não envolvimento, morre em consequência da violência e do desejo de vingança dos homens, que parecem mover-se todos com base nesses estados de alma. Por tudo o que a peça foi narrando, parece lícito concluir que as mulheres da época eram seres infelizes que tinham as suas vidas condicionadas por homens imperfeitos e poderosos, em suma, por uma sociedade medieval patriarcal.
    Outra morte é a do próprio Hamlet, que não é heroica nem vergonhosa. Finalmente, obtém a vingança do seu pai, mas apenas conduzido a tal por circunstâncias extremas e macabras: a morte da mãe, causada, ainda que indiretamente, pelo próprio marido. A sociedade em que está inserido valoriza imenso os sentidos da honra e da vingança, porém o desenlace da peça permite questionar esses valores sociais. De facto, Hamlet consegue vingar pessoalmente a morte do pai, mas a que preço? As personagens centrais da obra morrem todas, à exceção de Horácio e mesmo este considera o suicídio, para acompanhar o destino do amigo príncipe, e apenas não o concretiza porque este último lhe pede que viva para contar a sua história ao mundo. Além disso, Hamlet não ascende ao trono e não governa a Dinamarca. Em vez disso, Fortinbras reaparece como um líder político e militar vencedor, racional e sensato, e reclama o trono dinamarquês. Assim sendo, de que valeram os atos e os esforços de Hamlet?
    Quando o duelo entre Hamlet e Laertes chega ao fim, este último revela o plano traiçoeiro de Cláudio, constituindo-se como um momento crucial da peça, pois o príncipe que está prestes a morrer. É também esta perceção que o leva a matar o rei, pois já não tem nada a perder. Além disso, dada a iminência da sua morte, não tem tempo para refletir sobre os seus atos, precisa de agir rapidamente. Por outro lado, as palavras finais de Laertes sugerem que a violência só leva à morte e à destruição e reconhece que ele próprio foi vítima disso e dos seus atos. De facto, ele feriu mortalmente Hamlet com a espada envenenada e acabou por lhe suceder o mesmo quando o príncipe se apossou do seu florete e o atingiu também. Deste modo, Laertes foi derrubado pela sua própria perversidade.
    Cláudio introduziu na Dinamarca a decadência e a corrupção morais, ao assassinar o próprio irmão para obter o poder. Como «prémio» adicional, desposa a antes cunhada. Porém, o modo adotado para combater essa corrupção moral – a violência extrema – acaba por resultar apenas em violência generalizada que acarreta uma sucessão de mortes: violência gera mais violência e morte gera mais morte. Será também por isso que Hamlet hesita tanto em matar Cláudio. No entanto, o desenlace consiste mesmo na morte do rei e o que resulta daí é o desmoronamento da monarquia dinamarquesa e a ascensão ao trono de um rei estrangeiro. Tal como se vê, por exemplo, no filme de animação Rei Leão, é necessário destruir totalmente o que existe, para que algo novo possa emergir. De facto, com a morte de todas as personagens ligadas ao poder, a Dinamarca está livre da corrupção, da ambição desmedida, da violência reinantes até então, pelo que está livre para um recomeço bem diferente. Horácio parece reconhecer a nova situação quando jura fidelidade a Fortinbras. A família real dinamarquesa estava marcada pela corrupção e, por isso, enfraquecida. Pelo contrário, Fortinbras representa um líder forte, carismático e capaz de restaurar a autoridade moral do Estado. Se o consegue ou não, não é assunto da peça. Note-se que o Fortinbras que surge em cena no final da peça não é o mesmo do início: antes limitava-se a agir; presentemente, pensa enquanto age. O tempo e a experiência tornaram-no uma pessoa mais sensata, ponderada e moderada. Ele mostra-se ousado, mas atencioso quando se depara com o salão cheio de corpos. Perante esse cenário, alguém tem de assumir o controlo dos acontecimentos: Fortinbras fá-lo.
    Horácio é o amigo leal de Hamlet, responsável por dar a conhecer a história do príncipe. Começa por narrar a Fortinbras o que aconteceu recentemente, começando por traçar uma visão geral dos eventos e avisa que os ouvintes irão escutar uma história prenhe de atos carnais, sangrentos e não naturais. Ora, estes termos apontam para toda a violência que teve lugar, bem como para o casamento de Gertrudes com o irmão do seu falecido marido, algo que soou aos ouvidos de Hamlet como antinatural e perturbador.
    Horácio alude também a “julgamentos acidentais” e as mortes «casuais», o que corresponde aos dados da peça, como é o caso do assassinato acidental de Polónio às mãos de Hamlet, que pensava estar a liquidar Cláudio. Por outro lado, estas palavras de Horácio têm a intenção de isentar o seu amigo de responsabilidades, o que é compatível com o desejo de o apresentar como um herói. Ou seja, ele tem consciência de que a história de Hamlet está repleta de imperfeições, porém é seu entendimento que, não obstante, merece ser celebrado.
    Curiosamente, Fortinbras, ao exigir que o corpo de Hamlet seja transportado até uma plataforma para que possa ser homenageado, está a trata-lo como um herói militar que merece ser celebrado, mas o contraste entre ambos é evidente: Fortinbras dedicou-se inteiramente à conquista da Polónia, ao passo que Hamlet se mostrou incapaz de vingar a morte do pai até ao momento derradeiro. Assim sendo, é algo irónico e incongruente que se celebre alguém tão inseguro e que duvida da sua própria pessoa como uma figura respeitável. Se Hamlet for efetivamente celebrado, é provável que o seu legado será bastante idealizado, o que quer dizer que o seu verdadeiro ser não será lembrado.
    Uma das temáticas que perpassa a peça é a oposição entre verdade e engano. Toda ela gira em torno do ato primitivo de Cláudio: o assassinato do irmão, a posse da coroa dinamarquesa e da rainha. Curiosamente, esse tema estende-se até à cena final: o rei engendrou novo esquema para garantir o seu poder. A sua morte em consequência de tal dá a sensação do fechamento de um círculo.

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