Português: 10/08/25

domingo, 10 de agosto de 2025

A expulsão contemporânea do Paraíso

Mohr


    O cartune de Burkhard Mohr, intitulado Expulsion from paradise (publicado a 5 de agosto de 2025), funciona como uma alegoria sobre a catástrofe ambiental contemporânea e a insuficiência das respostas políticas para o problema. Numa primeira apreciação, vemos as figuras bíblicas de Adão e Eva, nuas e enquadradas no contexto da iconografia clássica, viajando numa jangada minúscula que ainda sustenta uma árvore verde. No lado oposto, irrompe uma massa avassaladora de detritos, uma onda onde a palavra PLASTIC (plástico) se impõe em letras maiúsculas e onde um documento intitulado AGREEMENT (Acordo) é engolido e rasgado. A referência bíblica estabelece de imediato um enquadramento moral e mítico (queda, perda do paraíso), enquanto os objetos quotidianos que compõem a onda, concretamente os copos, as garrafas, os talheres e os sacos, mostram que o “pecado” moderno não é metafísico, mas material e social.
    A jangada é desenhada com traço firme mas económico; ela é frágil, feita de troncos, e a árvore é pequena, o que sugere que o “paraíso” remanescente é mínimo e vulnerável. Em contraste, a massa de plástico é desenhada com maior densidade de sinais: traços soltos, rasgos, objetos reconhecíveis sobrepostos, uma coloração que mistura amarelo e verde doentio, e até um núcleo quase negro, um buraco voraz que confere à onda uma qualidade de máquina devoradora. A tipografia manual de PLASTIC, dispersa no interior da massa, converte o material em força discursiva; não se trata apenas de lixo, mas de um sujeito-agente que age sobre o mundo.
    Da boca de Adão sai um balão que contém uma fala sua: “The apple tasted good anyway!”. Ela constitui simultaneamente uma ironia e uma crítica mordaz: ironia, porque reduz o drama à satisfação imediata; crítica, porque salienta a lógica que sustenta a crise, isto é, o prazer momentâneo, o consumo imediato, a dissonância cognitiva perante consequências coletivas. Ao remeter explicitamente para o fruto que originou a expulsão bíblica, a frase transforma o plástico numa espécie de novo “fruto proibido”: agradável, conveniente, mas letal a longo prazo. Há aqui uma crítica dupla: ao indivíduo hedonista que prefere o prazer imediato e aos sistemas que transformam esse prazer em hábito de massa (indústria do descartável, publicidade, infraestruturas que normalizam o uso único).
    A folha de papel contendo a palavra “AGREEMENT”, presa à onda prenhe de lixo por uma espécie de pionés, configura uma denúncia do consumismo, bem como da forma como as pessoas poluem o ambiente. Por outro lado, a inscrição do cartune no contexto de uma conferência da ONU realizada em Genebra sobre a poluição por plástico, explicitada na legenda, convida o leitor a ver o acordo como algo que existe, se negoceia, porém, na prática, é impotente diante do comportamento quotidiano das pessoas. A imagem sugere que os compromissos são frágeis, ou seja, não passam de pedaços de papel arrastados por lógica económica que os supera. Além disso, a hiperbolização do tamanho da onda face à pequenez humana dramatiza a assimetria de poder entre sistemas (indústrias, cadeias de consumo, ecossistemas) e indivíduos. Outra leitura crítica possível gira em torno de um certo fatalismo. A imagem da onda inexorável e a folha do AGREEMENT a ser arrastada podem gerar uma sensação de desesperança: se até os acordos se rasgam, que eficácia cabe à ação política?
    Em suma, Expulsion from paradise é um cartune que condensa uma denúncia complexa em imagens nítidas e memoráveis: converte o plástico em personagem e em agente destruidor, transforma acordos em papel inútil e usa o mito de Adão e Eva para sublinhar uma perda histórica e comportamentos que condenam o ambiente terrestre.

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