Este
poema breve de tom irónico, da autoria de Luís Vaz de Camões, escrito em
redondilha maior, com características de repentismo, nas palavras da professora
Rita Marnoto, é, de acordo com a epígrafe inicial, dirigido a D. António,
Senhor de Cascais. Convém recordar que, por vezes, as epígrafes eram
acrescentadas a um poema por um copista que sentia necessidade de o
contextualizar. Trata-se, por outro lado, de uma quadra em redondilha maior, na
esteira da Corrente Tradicional, precedida de uma epígrafe, e com um esquema
rimático abab, ou seja, rima cruzada. As duas rimas, em -eia e -ais,
contém uma aliteração em /i/, que nos versos 1 e 3 se estende ao interior do
verso. Além disso, a rima em /a/ é reforçada pela repetição da primeira palavra
rimante no interior do terceiro verso – «meia». Relativamente ao ritmo, este é
rápido, tendo em conta o uso do verso curto, e ganha vivacidade com a divisão
de cada um em dous segmentos paralelos, ligados através do encavalgamento. O
primeiro apresenta a situação, enquanto o segundo a comenta e explicita.
O D.
António, senhor de Cascais, referido na epígrafe e no segundo verso, é D.
António de Castro, um aristocrata muito poderoso, filho primogénito de D. Luís
de Castro e D. Violante de Ataíde. Casou com D. Inês Pimentel, uma senhora que era
aparentada com os Távora, e foi IV Conde de Monsanto por designação de Filipe
II de Espanha em carta datada de 23 de outubro de 1582. O seu nome esteve envolvido
na agitada vida que caracterizou a época que assistiu aos derradeiros anos de
vida de Camões. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, D. Luís
de Ataíde, vice-rei da Índia, regressou do Oriente envolto em triunfos e
glória, ao mesmo tempo que a forte e dispendiosa armada formada para apoiar a
liga entre o Papado, a Espanha e a França contra o inimigo turco não passava a
barra do Tejo, em virtude de a aliança ter sido dificultada por diversas
convulsões políticas. Em agosto desse ano, D. Sebastião ordenou a prisão de D.
António de Castro nos subterrâneos do Castelo de Lisboa, enquanto a sua família
e os seus criados foram encarcerados na prisão do Limoeiro. A razão para tal
relacionava-se com a acusação de que tinha sido alvo por parte de um criado de
apoiar os luteranos e de estar a organizar a entrega do Forte de São João da
Barra aos franceses. No entanto, a denúncia era falsa, pelo que todos foram
libertados. Posteriormente, D. António de Castro apoiou Filipe II de Espanha
aquando da união dos tronos de Portugal e Castela, tendo ordenado o arvorar da
bandeira castelhana no Castelo de São Jorge, no entanto acabou por ser vítima
de nova acusação, desta vez de se preparar para entregar Cascais a D. António
Prior do Crato, por isso foi desterrado para Espanha, juntamente com a família.
Poderá parecer
estranho, à primeira vista, que um poeta que cultiva um estilo elevado e que
escreve uma obra monumental como Os Lusíadas aborde, nesta quadra humorística,
uma questão menor como a alimentação, mas a verdade é que o tema da alimentação
remonta às origens da literatura europeia, desde logo por se tratar de um bem
essencial à sobrevivência dos seres vivos. Uma das estratégias indutoras doo
cómico num texto é o contraste entre a superioridade de um sujeito em relação a
uma vítima e a desilusão das suas expectativas. Neste caso, as duas figuras que
preenchem a composição prestam-se ao referido contraste: de um lado, temos um
destinatário de estatuto elevado, o poderoso D. António de Castro, enquanto no
outro encontramos um poeta simples e modesto que se diminui fazendo uma cópia.
A vida do primeiro caracteriza-se pelo bem-estar, ao passo que o segundo vive
ansioso por confortar o seu estômago e satisfazer o seu palato. À promessa de
seis galinhas feita pelo homem todo poderoso, segue-se a desilusão do poeta
humilde pela receção de mera meia galinha, o que equivale a dizer que,
novamente nas palavras da professora Rita Marnoto, “Às expectativas geradas
pela plenitude de um delicioso recheio, corresponde uma ausência, como se a
pulsão do corpo fosse remetida para o vazio material da concavidade da meia ave.”
Retornando
à análise da epígrafe, ficamos a saber que D. António, um homem poderoso,
prometeu a Camões seis galinhas recheadas como pagamento por uma cópia que este
lhe fizera, porém apenas lhe enviara meia. Note-se que, semanticamente, a meia
dúzia é uma quantidade ligada à banalização, à indeterminação e até à escassez
nos seus vários planos. Por sua vez, o verso inicial da quadra enuncia uma
quantidade, a do débito, como se de um deficit se tratasse, que mensura
uma substância alimentar: a galinha. As cinco galinhas e meia são antecipadas e
postas em relevo pelo anacoluto, pois há uma inversão da ordem dos seus
elementos, que seria “O senhor de Cascais deve cinco galinhas e meia”. O
segundo verso identifica o débito (“deve” cinco galinhas e meia) e a figura
histórica que corresponde ao devedor: D. António de Castro. Feita a substração,
resta o que Camões efetivamente recebeu: meia galinha (“e a meia”), que vem
cheia (adjetivo que se liga a outro – “recheadas” –, presente na epígrafe, por
paronomásia a partir do mesmo étimo). Estamos perante uma espécie de eufemismo
que aponta para o oposto daquilo a que se está a aludir: uma ausência. O registo
das quantidades numéricas processa-se em decréscimo: de seis galinhas
(epígrafe), passa-se a cinco galinhas e meia (v. 1), a seguir a meia (v. 3) e
daí ao vazio (v. 4). Deste modo, é possível concluir que o adjetivo que aponta
para a plenitude (“cheia”, do latim “plena”, que sugere exatamente a noção de
plenitude) indicia, afinal, uma sucessão de faltas: do Senhor de Cascais, ao
prometido; de comida, para o poeta; do recheio da meia galinha (sugerido pela
ironia). Outra conclusão a que se pode chegar é que a “diminuição do
quantitativo (em galinhas) é inversamente proporcional ao aumento dos apetites.
(v. 4)”.
O
último verso assenta num jogo de palavras: o que preenche a galinha não
corresponde à substância material do recheio, mas, por oposição, um apetite não
satisfeito., o que, metaforicamente, pode ser interpretado como o vazio que se
apodera do poeta. As suas expectativas foram traídas e a concavidade da meia galinha
(personificada, ao ser dotada de apetites – não satisfeitos – a satisfazer)
simboliza o seu desejo de comer. Deste modo, os apetites do poeta são
transferidos para a meia galinha por hipálage. A metade do animal que Camões
recebeu carrega consigo não um recheio material, mas o vazio onde se aloja o
desejo em toda a sua plenitude, simbolicamente: é lá que se nutrem todos os
anseios, todas as esperanças e todas as promessas que simbolizam “quanto de
insaciável carrega a existência e com ela a escrita.” Note-se, por último, que,
seguindo a tradição segundo a qual a redondilha deve apresentar uma estrutura
circular, esta composição poética obedece a esse preceito, pois o último verso
retoma o primeiro: “Cinco galinhas e meia” (v. 1); “de apetites para as mais”
[cinco galinhas e meia].
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