Esta
cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de
quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe),
apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e
belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal
governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode
considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
O «eu»
poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”,
ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos
eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se
na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por
meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é
caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel
até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
Através
do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda,
neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste
modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem
muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa
Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto
a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como
culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom
pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”.
O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do
motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma
tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta
surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”,
ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da
«senhor».
No
primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina,
desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que
pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se
“filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus
tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o
trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca
vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim
sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
A
terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus
tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”),
deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa
uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua
vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com
inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a
recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e
numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da
religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta
qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides
migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio
bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
Assim,
chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o
trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as
servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora,
completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal
governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as
encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
Em
suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval,
vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a
ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em
conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era
religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em
famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de
heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma
questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a
sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e
garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de
pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio
ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à
vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais
espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as
mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como
socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de
casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a
novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a
entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um
casamento arranjado pelas famílias.
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