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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O sirventês provençal

            Entre as produções satíricas da Idade Média sobressai o chamado sirventês, que nasceu e floresceu na Provença, sul de França, por volta do século XII, na «langue d’oc», sendo, portanto, contemporâneo do lirismo que celebrava o amor cortês.
            Desde o século XI, a região da Provença constituía um importante centro de atividade literária, sobretudo graças à prática do mecenato cultural por parte dos senhores feudais locais. Não é, por isso, de estranhar que lá se tenha desenvolvido a primeira grande escola de poesia romântica em «langue d’oc», assumida posteriormente pela «langue d’oil», isto é, pelo francês falado no Norte.
            O legado mais importante da escola provençal foi a «cansó», uma composição que versava a temática amorosa em 5 a 7 coblas. Inequivocamente, embora tenho sido a vertente lírica do trovadorismo a que teve mais sucesso, a satírica possui também bastante qualidade. Segundo Rodrigues Lapa (in Lições de Literatura Portuguesa – Época Medieval), “A cantiga escarninha toma, na Provença, dum modo geral, o nome de ‘sirventês’. […] em nada difere da canção, e até o nome parece indicar que a sua estrutura seguiria ‘servilmente’ a melodia duma canção. O tema era, todavia, diferente, tinha caráter mais objetivo, refletia as opiniões e os sentimentos do trovador sobre os homens e a vida social. Daqui necessariamente o seu caráter moral e satírico.”
            Chegaram até nós cerca de duas centenas de sirventeses provençais, poemas de circunstância que refletem a realidade da sua época e deixam transparecer, em certa medida, a opinião pública de então. Esses tempos eram constituídos por invetivas pessoais, críticas às diferentes classes sociais, elogios, reflexões morais genéricas e até lamentações fúnebres.
            Tal como sucede com vários outros vocábulos, a origem etimológica de «sirventês» não é muito clara. Assim, há autores que afirmam que o termo não advém diretamente de «servir», mas de «sirven», acrescido do sufixo -isc.
            Durante o século XIII, a forma «serventois» era usada no Norte da França para designar textos semelhantes ao sirventês meridional. Essa forma setentrional surgiu inicialmente na Normandia: «serventeis», formada a partir de «servant» (do latim «servantem»), ou de «sergent» (dolatim «servientem»), pelo que, em rigor, deveria ser «servanteis» ou «sergenteis». Talvez «serventeis» tenha resultado da influência dos trovadores sobre a poesia do Norte da França.
            Para Martin de Riqueur, tanto no Norte, como no Sul, «sirventês» designava a canção do «sirven», isto é, do servidor de um senhor poderoso que compunha versos destinados a atacar os inimigos do patrão ou a defendê-lo das críticas que lhe fossem dirigidas. Sucede que foram muitos aqueles que serviram os seus senhores quer através das armas quer através do canto, daí que seja de considerar a existência de relações estreitas entre o «sirven» e o trovador. Desta relação deveriam estar afastados os jograis, dado que eram apenas os intérpretes dos poemas e não os compositores [função restrita aos trovadores]. Além disso, os jograis eram plebeus, pelo que não podiam usar espada, ao contrário dos trovadores que, enquanto nobres e cavaleiros, possuíam a faculdade de servir os seus senhores com a espada e com os seus textos satíricos.
            No que diz respeito à forma, o sirventês, inicialmente, fez uso de elementos de métrica romana, mas acabou por se tornar epígono da cantiga, quando esta se sobrepôs às demais modalidades poéticas. Relativamente à temática, o sirventês distancia-se da cantiga; por outro lado, permite classifica-la em três modalidades: sirventês pessoal, moral e político.
            O primeiro compreende composições poéticas injuriosas, de linguagem solta, que se focam na crítica a certos aspetos da vida íntima ou profissional das pessoas. Aquelas que visavam os jograis designavam-se «sirventês joglaresc». Alguns dos cultores desta modalidade foram nomes como Guillem de Berguedam, Bertran de Born, Manfredi Lancia e Peire Cardenal, a que se odem acrescentar outros como Peire d’Alvergne e Le Moine Montaudon, estes últimos representantes do sirventês pessoal literário, dirigido a poetas.
            O sirventês moral aborda temas como o desconcerto do mundo e a iniquidade da época, a denúncia dos vícios, a decadência de certos valores e o enaltecimento das virtudes, a falta de respeito e a avareza dos nobres, em comparação com tempos anteriores (mais idealizados do que corresponde à realidade da época), em que eram valorizados – os trovadores – e bem remunerados com roupa, alimento e dinheiro. Se, inicialmente, o sirventês moral atacava somente a nobreza, a partir do início do século XIII, a crítica estende-se a outras classes, o que incluía comerciantes, clérigos, homens da lei, agricultores, estalajadeiros, médicos, boticários, advogados, estudantes, mendigos e até os próprios reis, pelos mais diversos vícios (conflitos, exploração, injustiças, etc.). O trovador mais célebre a cultivar esta modalidade foi Peire Cardenal, que denuncia nos seus textos a hipocrisia, a mentira, a fraude, a violência ou a corrupção. Desiludido com o mundo, escreve uma parábola demolidora: certo dia, caiu sobre uma cidade uma chuva que fazia enlouquecer todos os que molhava. A totalidade dos habitantes, à exceção de um, foi atingida, e começaram a praticar as maiores loucuras, sem que ninguém estranhasse tal. Assim sendo, a única pessoa que se mantivera lúcida acabou por ser considerada louca, sendo maltratada pelos demais e forçada, em consequência, a fugir da cidade. É evidente que a localidade simboliza o mundo: a verdadeira sabedoria que nele se pode praticar resume-se ao amor e ao temor a Deus, de acordo com os mandamentos. Com a queda da chuva de orgulho e cobiça que todos corrompeu, perdeu-se a sabedoria. Deste modo, quando surge alguém que honra Deus, é considerado louco e escorraçado. O sirventês moral focado nos temas da mulher e do amor foi escasso, tendo sobressaído, neste caso, nomes como Marcabru ou Peire Cardenal.
            Por seu turno, o tema central do sirventês político são os grandes acontecimentos da época, como as cruzadas do Oriente, a Reconquista Espanhola, a luta dos reis ingleses com os senhores feudais franceses, as lutas internas italianas ou a guerra dos albigenses. A principal figura a cultivar esta modalidade foi Bertran de Born, figura que amava a guerra por si mesma e semeava a discórdia, nomeadamente entre suseranos e vassalos, irmãos contra irmãos, filhos contra pais, etc. Um dos temas centrais – as guerras santas – era cultivado sob a forma de propaganda. No fundo, o sirventês político constituiu um excelente veículo de propaganda de ideais políticos, sem deixar de ser, em simultâneo, o testemunho da paixão e da reação que determinados acontecimentos provocaram, bem como a conduta de certas figuras.
            Além destas, existem outras espécies menores de sirventês provençal, como as chamadas «caps», que relatam ações heroicas, mesmo algumas de realização impossível, ou os «planhs», lamentos fúnebres.
            Em suma, o sirventês provençal está na génese da sátira medieval galego-portuguesa.

domingo, 21 de novembro de 2021

Conceito de sátira

             Não há certezas sobre a origem do termo sátira, no entanto grande parte dos estudiosos liga-a ao nome dos sátiros, divindades gregas secundárias associadas a zombarias e farsas. Outros consideram que deriva do vocábulo «satur», um adjetivo que era aplicado a pessoas embriagadas.
            Para Jules Humbert e Henri Berguin, a etimologia de sátira radica no latim «satura», cujo primeiro significado, presente na expressão «satura lanx», é “prato de oferendas diversas, oferecidas aos deuses nas celebrações que envolviam sacrifícios. Além disso, «satura» designa uma pasta feita de diferentes carnes. Por outro lado, a linguagem parlamentar usava a expressão «per saturam» na aceção de “em bloco”, aludindo ao processo rápido pelo qual se regulamentavam vários negócios de uma só vez.
            O gramático latino Diomedes (século IV d.C.) apresenta quatro hipóteses relativamente à etimologia do termo, entendido pelos romanos como composição em versos pertencente a uma miscelânea de poesias. Deste modo, a primeira hipótese relacioná-la-ia com os sátiros, que, tal como sucede na sátira, dizem e fazem coisas ridículas e vergonhosas. A segunda leva-nos até «satura», um prato cheio de muitas e variadas primícias, que os antigos camponeses ofereciam aos deuses em festividades religiosas. Esse prato era assim chamado por causa da abundância e fartura de componentes. A terceira associa-o a «satura», um determinado tipo de recheio com muitos ingredientes. Por último, a quarta remete para uma lei chamada «satura», em que, numa única petição, se incluíam, simultaneamente, muitas coisas, “como acontece na composição versificada do mesmo nome, que reúne diferentes poemas.”
            Salvatore D’Onofrio opta pela derivação de «satura lanx», que significava “prato cheio” de oferendas aos deuses, em ação de graças, um ritual que se incluía num ambiente de festa, a que estavam associados a música, ao canto, à dança e a troca de desafios onde se misturavam o sagrado e o profano, atingindo por vezes o obscuro.
            Outros autores associam o termo a diferentes significados. Assim, Énio remete para a ideia de mistura, tendo em conta os diversos sentidos que «satura» adquire no título Saturae, que deu a alguns dos seus poemas de metros heterogéneos. Em Lucílio, «satura» traduz a variedade de tom e assunto e designa um género original.
            Aparentemente, o género satírico parece ser de origem romana e surge associado a dois traços distintivos: o gosto pela troça e o da observação moral. O já citado Lucílio parece ter definido o domínio característico da sátira – a crítica à sociedade – e a sua forma poética – o hexâmetro –, pelo que é considerado por muitos o verdadeiro criador da sátira como género literário.
            Na Idade Média, a produção satírica foi abundante, sobretudo no século XII, em França. Os principais temas eram os abusos da Igreja, as inovações educativas, o governo secular, a moral e os costumes dos cortesãos. A inspiração desses autores medievais centrava-se em autores latinos, como Horácio e Juvenal, bem como noutros que não eram inteiramente satíricos, como Ovídeo (Ars amatória), Marcial (Epigramas), Séneca (Apocolocyntosis) e Petrónio (Cena Trimalchionis). Recorriam também às Sagradas Escrituras e à liturgia cristã, visando a sátira dos clérigos e das ordens religiosas. São exemplo deste tipo de literatura os Carmina Burana, uma coletânea de poemas e textos dramáticos manuscritos do século XIII, maioritariamente picantes, irreverentes e satíricos, escritos em latim medieval e línguas vernáculas. Além dos já mencionados, são ainda tratados temas como os vícios da corte, misoginia e misogamia. Existia ainda a chamada «satira communis», que focava as diversas classes sociais: o rei, o Papa, os nobres e todas as profissões e ofícios da época, exemplificada por obras como o De contempto mundi, de Bernardo Morval, e o Speculum Stultorum, de Nigel de Canterbury.
            A partir dos múltiplos estudos sobre a sátira, é possível identificar duas categorias: a formal (ou direta) e a indireta. Aquela surge na primeira pessoa e compreende duas formas: a primeira evoca ironicamente as loucuras e os absurdos dos seres humanos, enquanto a segunda possui um caráter moralista, sério, visando a repreensão forte dos vícios humanos. Já a sátira indireta é redigida na terceira pessoa e surge sob a forma de uma narrativa, cujos protagonistas se revelam ridículos através das suas opiniões, das suas ações, das suas falas ou pensamentos.
            Outro tipo de sátira é a chamada menipeia, que deve a designação ao seu criador, o filósofo grego Menipo. Esta forma satírica é igualmente conhecida por varrónica, dado que foi cultivada também por Varrão, discípulo de Menipo, e intercala momentos em prosa com outros em verso. A sátira menipeia é originária da Grécia.

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