A vertente satírica da literatura galego-portuguesa medieval
é representada pelas cantigas de escárnio e maldizer. A designação de
«cantigas» justifica-se pelo facto de, à semelhança das cantigas de amigo e de
amor, associarem a poesia, a música, o canto e a dança e se destinarem a terem
acompanhamento musical: flauta, guitarra, harpa, arrabil, alaúde, giga,
pandeiro, adufe, bandurra, saltério, doçaina, trompa, exabeba, gaita, tambor,
viola e anafil. Como se sabe, o compositor era, fundamentalmente, o trovador,
enquanto o jogral cantava e tocava instrumentos.
Para compreender estas composições,
assumem grande importância dois textos medievais: a célebre Arte de Trovar e a
Lei XXX, do Título IX, da Segunda das Sete Partidas de Afonso X. A Arte de
Trovar é um pequeno tratado em prosa sobre a poesia galego-portuguesa, de autor
desconhecido, que define regras e géneros a que trovadores e jograis deveriam
obedecer. A peça não chegou inteira até nós, apenas fragmentos, e foi
transcrita por Angelo Colocci, um humanista italiano que mandou copiar o
Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
Sobre a cantiga de escárnio, reza o
seguinte a Arte de Trovar, mais concretamente o capítulo V: “Cantigas d’escarneo
som aquelas que os trobadores fazem querendo dizer mal d’algue[n] em elas, e
dizem-lho per palavras cubertas que ajan dous entendymentos, pera lhe-lo non
entenderem… ligeyramente; e estas palavras chamam os clerigus hequivocatio. E
estas cantigas se podem fazer outros de mestria ou de rrefran.”
Já as Sete Partidas são sete
livros compostos por D. Afonso X, os quais “fundaram o sistema jurídico de Leão
e Castela e, mais tarde, da Espanha moderna e dos países sob sua colonização”
(SODRÉ, Paulo Roberto. A Arte de Trovar e “jugar de palavras”…). A
primeira parte da obra aborda a Igreja medieval e regula a vida de clérigos e
leigos, enquanto a segunda trata da vida dos reis e seus oficiais; a terceira, dos
advogados e do seu ofício; a quarta, das relações domésticas e dos casamentos;
a quinta regula o mundo do comércio, do mar e dos contratos; a sexta ocupa-se
dos testamentos; e a sétima, dos marginais, crimes e penas. Além disso, o texto
contém a Lei XXX, do Título IX, da Segunda Partida, que consiste num pequeno
tratado poético destinado a orientar os trovadores no uso de determinados
recursos poéticos, com o objetivo de produzir cantigas bem construídas e numa
linguagem adequada ao ambiente da corte. Quando se refere ao cantar de
escárnio, aponta o «jugar de palavras» como o recurso mais importante.
Assim sendo, os trovadores deveriam usá-lo ou «escarnecer», isto é, não
deveriam abordar de forma direta o aspeto risível de um cortesão benquisto pelo
rei, antes fazer uso do chamado «equívoco», ou «equivocatio», ou seja, o
poeta deveria socorrer-se daquilo que poderemos designar por «jogo de avessos».
Por exemplo, se o nobre visado numa cantiga fosse um cobarde, no poema deveria
aparecer retratado como corajoso, o que significava que o poeta estaria a “jogar”,
ou a brincar, com a sua cobardia. Há autores, porém, que o «juglar de
palavras» se associa à literatura oral.
No capítulo VI, a Arte de Trovar
aborda as cantigas de maldizer, definindo-as da seguinte forma: “Cantigas de
maldizer som aquela[s] que fazem os trobadores […] descobertamente. E[n] elas
entran palavras que queren dizer mal e non aver outro entendimento se non aquel
que queren dizer chãamente.” Quer isto dizer que os trovadores ridicularizam os
vícios ou as ações de certo indivíduo de forma direta e achincalhante. Estatisticamente,
dentro do contexto da sátira, é a cantiga de maldizer que predomina nos
cancioneiros, o que significa que os trovadores peninsulares preferiam a invetiva
individual e particularista, pessoal e insultuosa. De facto, os poetas parecem
ter optado por este caminho em detrimento da abordagem de assuntos de interesse
geral.
Há autores, porém, que contestam
esta distinção entre a cantiga de escárnio e a de maldizer. É o caso de G.
Tavani, que considera que a distinção entre palavras «encobertas» e «descobertas»
é ambígua e de “difícil aplicação na prática”. Para este autor, a diferença
entre as duas categorias reside no uso ou não d termos obscenos. Assim sendo,
se estivessem presentes obscenidades, a cantiga seria de maldizer; caso não
houvesse, seria de escárnio. Por seu turno, Elsa Gonçalves julga que a marca
distintiva radica na «equivocatio». E dá como exemplo a cantiga de Pero
da Ponte contra Maria Peres, a Balteira, que, não obstante identificar o algo
da sátira pelo nome próprio e conter linguagem obscena, classifica como de
escárnio, “cujo sentido decorre do equívoco construído pelo trovador sobre o duplo
sentido da palavra «maeta» (GONÇALVES, Elsa e RAMOS, Maria Ana. A lírica
galego-portuguesa).
Para Graça Videira Lopes, a
distinção entre escárnio e maldizer reside no nível da complexidade da leitura
(ou do «entendimento») exigida pela leitura: “Assim, enquanto nas
cantigas de maldizer o seu entendimento, como sátira, seria imediato e irrecusável”
(«e nom aver entendimento senom aquel que querem dizer chaamen[te]» – Arte de
Trovar), o entendimento das cantigas de escárnio implicaria um trabalho de descodificação,
já que todas elas se construiriam a partir de um jogo com duplos sentido (os ‘dous
entendimentos’ de que fala o texto). As ‘palavras cubertas’ não se refeririam,
pois, ao nome dos visados, mas simplesmente ao processo retórico de ataque que,
como diz o texto, ‘chamam os clérigos hequivocatio.”
Além das cantigas de escárnio e
maldizer, a Arte de Trovar refere também o «joguete de arteiro» e a
«cantiga de risadilha» ou «risabelha», no Capítulo V, as «tenções», as
«cantigas de vilão» e as «cantigas se seguir». De acordo com o referido tratado
poético apenso ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional, os «joguetes de arteiro» são
cantigas que “non son mais ca d’escarnho, nem ham outro entendimento; enquanto
as «cantigas de risadilha» ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chamam-lhes
assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria
nem outro bem haja.” Por seu turno, as tenções são cantigas dialogadas entre
dois interlocutores, podendo ser líricas ou satíricas (“Estas se podem fazer
d’amor ou d’amigo ou d’escarnho ou de maldizer, pero que devem de ser de
mestria”). Quanto às «cantigas de vilão», só se podem fazer suposições, visto
que o capítulo da Arte de Trovar que aborda este assunto é o mais
estropiado que chegou até nós, contendo uma definição curta e amputada:
“Outrossi outras cantigas fazem os trobadores a que chamam de vilaã[os]. Estas
cantigas […] sem mao leng[uagem] nom som per al err[a]das por que as nom
escarniom no […]. Como outras cantigas podem as fazer de quantos tal[h]os […].”
A cantiga de seguir constitui uma imitação jocosa ou uma paródia de uma
cantiga, da qual adotava a melodia e, por vezes, até o metro e a rima: “Outra
maneira há hi em que trobam dois homens e que chamam seguir, e chamam-lhe assi
por que convem de seguir cada um outra cantiga a som ou em p[alav]ras ou em
todo.”
Além de todas as categorias
enunciadas, existem outras espécies não conceituadas ou referidas na Arte de
Trovar. É o caso do sirventês; do «descordo»; de «variações na invetiva»,
como o «maldizer aposto», a «despersonalização», a «’defesa’ do visado»; além
dos «ciclos narrativos»; da «paródia»; de «outros recursos», como «o jogo com
os limites de géneros»; e das «questões de linguagem».
De acordo com Rodrigues Lapa, as
composições satíricas da poesia galego-portuguesa distribuem-se por seis grupos
temáticos:
• Entrega dos castelos ao Conde de Bolonha;
• Cruzada da Balteira;
• Escândalo das amas e tecedeiras;
• Impertinência do jogral Lourenço;
• Traição dos cavaleiros na Guerra de Granada;
• Decadência dos infanções.
Estes grupos não esgotam,
obviamente, as visões sobre a sátira trovadoresca. Assim sendo, segundo Scholberg,
é possível apontar outras temáticas: cantigas dirigidas a outros trovadores,
jograis ou segréis [a hierarquia dos intérpretes da poesia trovadoresca, embora
não muito rígida, era a seguinte: trovador, jogral, segrel, menestrel. O trovador
era o artista completo: tratava-se, regra geral, de um fidalgo decaído, que
compunha, cantava e chegava até a instrumentar as cantigas. O jogral
pertencia a uma classe social inferior, porém, se tivesse mérito, poderia ascender
a trovador; era o ator mímico ou o músico. O segrel era um artista
profissional e ganhava dinheiro apresentando composições próprias ou alheias,
de corte em corte. Por fim, o menestrel era o músico da corte.], cujo
assunto é formado pelo aspeto físico, pelos defeitos de caráter, a vida
desairada, a infelicidade no amor, a velhice, a falta de talento literário.
Depois, havia sátiros que visavam as soldadeiras, mulheres assim
chamadas porque recebiam um soldo e estavam sujeitas à corte. A sua função era
cantar e dançar e vendiam não só o canto e a dança, como também o próprio
corpo. Foram várias a protagonizar poemas, como Domingas Eanes, Elvira Lopes,
Luzia Sanches, Maria do Grave, Maria Garcia, Maria Leve, Maria Negra, Maria
Mateu, Marinha Crespa, Marinha Lopes Ourana e Urraca Lopes, mas a mais famosa
foi Maria Peres, a Balteira. Um terceiro núcleo temático centra-se em
determinadas classes sociais e profissionais, como a dos infanções,
ricos-homens avaros ou decaídos, fidalgos pretensiosos, religiosos impudicos;
médicos, advogados, juízes, negociantes; mouros e judeus. Os membros das
classes nobres eram satirizados por não disporem de boa comida ou não a
oferecerem aos artistas que frequentavam a sua casa, pela sua decadência, pela
forma de vestir e pela decrepitude dos cavalos. Os pequenos fidalgos eram
visados pela sua glutoneria e embriaguez, enquanto alguns escudeiros e
cavaleiros, por almejarem uma ascensão social rápida e fácil, sem a merecerem.
A quarta categoria dirige-se aos vícios e costumes. Neste capítulo, um dos
assuntos mais focados era o da avareza, de que é exemplo uma cantiga, da
autoria de D. Dinis, que satiriza um funcionário por ter acumulado uma avultada
soma de dinheiro, apenas para os seus herdeiros dissiparem à vontade após a sua
morte, enquanto ele “vivia” atormentado no Inferno. Outro conjunto de
composições vituperava os costumes matrimoniais, nomeadamente os enlaces entre
pessoas pertencentes a classes sociais diferentes. Um poema de Martim Soares
retrata o rapto de Dona Elvira Eanes da Maia por um infanção, Rui Gomes de
Briteiros. Na época (século XIII), o rapto, embora fosse crime e o infrator
fortemente penalizado, constituía uma forma habitual de obter a mulher amada.
Voltando à cantiga, o que mais escandalizou não foi propriamente o rapto, mas o
facto de a raptada ter sido conivente e a família dos Sousas não ter procurado
lavar a sua honra e dignidade. A homossexualidade também não passou
despercebida aos poetas galego-portugueses, daí não ser de estranhar que tenha
sido abordada em várias cantigas de escárnio com “palavras cubertas”, isto é,
de duplo sentido, que podiam interpretar-se de forma inocente ou obscena. Um
quinto conjunto de poemas abordava questões político-militares, que focavam,
essencialmente, dois factos que marcaram o século XIII: a deposição de D.
Sancho II e a covardia dos vassalos de D. Afonso X, o Sábio, na guerra contra
os mouros. O sexto conjunto diz respeito a sátiras de cariz moral que denunciam
a subversão de valores, a falta de verdade, a lealdade, o amor ou a amizade,
recordando um passado (idealizado e distante da realidade de então) em que
predominavam as virtudes. Um sétimo núcleo compreende a paródia ao amor cortês
e ao idealismo heroico, nomeadamente a gratuidade do serviço amoroso, os dotes
físicos da mulher amada, a morte por amor, etc. Uma outra modalidade satírica
apontava para a géstica, sendo denunciados aspetos como os guerreiros feitos à
pressa, ser armas adequadas, nem espírito combativos.
Por seu turno, para Giuseppe Tavani
e Giulia Lanciani, as mais de 400 cantigas satíricas que enformam a poesia
galego-portuguesa agrupam-se em quatro áreas: a sátira política, a sátira
social (pessoal e de costumes), a sátira literária e a sátira moral.