Português: 2021

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A distribuição de presentes

Andy Davey, Inglaterra

 

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Selfie

1. Origem

        A palavra "selfie" é de origem inglesa, mais concretamente um diminutivo de "self", por sua vez uma redução do termo "self-portrait", ou seja, autorretrato.


2. Género

    Não conheço ninguém (o que não quer dizer que não exista) que não utilize "selfie" como pertencente ao género feminino.

    Por seu turno, os gramáticos dividem-se. Assim, há os que defendem que os empréstimos (as palavras importadas de uma língua estrangeira) devem manter o género que têm na língua de origem, enquanto outros sustentam que esses vocábulos devem assumir em português o género do seu equivalente vernáculo. Deste modo, segundo o primeiro princípio, devemos dizer, por exemplo "a Deutsche Bank", visto que "Bank" é feminino em alemão; porém, de acordo com o segundo, a forma correta é: "o Deutsche Bank", dado que nos estamos a referir a um banco, que, na língua de Camões, é do género masculino.

    No caso de "selfie", em inglês o seu género é neutro (ou natural, como alguns gramáticos o designam), visto que a palavra "portrait" o é. Em virtude de, em português, não existir o género neutro, devemos atribuir a "selfie" o género masculino, pois as palavras neutras latinas assumiram o masculino na língua portuguesa, com raras exceções.

    Se adotarmos o segundo critério, a palavra "selfie" é masculina, visto que adota o género de "retrato". Assim, qualquer que seja o princípio adotado, de acordo com a gramática, o vocábulo "selfie" é masculino em português.

    Sucede, no entanto, que o comum dos falantes associa "selfie" a fotografia (e não a "retrato"), por isso a usa como pertencendo ao género feminino: "a selfie", "uma selfie".

Plural dos nomes terminados em -s, -r, -z ou -n

     Os nomes agudos terminados em -s, -r, -z ou -n formam o plural acrescentando a terminação -es ao singular.

    É o que sucede com o nome «pionés», cujo plural é «pioneses».

    Ao formal o plural, estes nomes passam de agudos a graves.

"Aparte" e "à parte"

     A palavra aparte é um nome da área teatral que se refere à fala de um ator que simula falar consigo próprio e é ouvida apenas pelo público, ou a um comentário marginal feito no meio de um discurso.
            Ex.: Só um aparte: sabes que amanhã faço anos?

    Por sua vez, a locução à parte significa "em particular, em separado, isoladamente".
            Ex.: A Maria e o Manuel ficaram a conversar à parte durante horas.

"Estrambólico" e "estrambótico"

     O adjetivo estrambólico significa "extravagante, esquisito, ridículo" e surgiu pela alteração de outro: estrambótico, que, por sua vez, deriva por estrambote + -ico e quer dizer "que é singular, invulgar, diferente em todos os sentidos, excêntrico; que causa certa repugnância ou aversão, ridículo".
    Por seu turno, estrambote - cujo significado é "versificação: adição de um ou mais versos, geralmente de um terceto, aos 14 versos de um soneto, estramboto; música: estrofe acrescentada ao vilancico, à guisa de coda" - tem origem em estramboto, que é uma forma de poesia italiana muito antiga sobre temas amorosos ou satíricos.
    Assim sendo, é possível que estrambólico se tenha formado por analogia com outras palavras, como diabólico, hiperbólico ou simbólico, visto que a terminação -ólico parece ser mais frequente do que -ótico.
    Não obstante, grande parte dos estudiosos defende o uso preferencial do adjetivo estrambótico em contextos formais, em detrimento de estrambólico, cujo uso deve ser restrito a contextos informais.

Pink Panther: episódio 10

Mens ag|itat mol|em - Parte II


domingo, 26 de dezembro de 2021

O meteoro natalício

André Lado, Canadá

 

Caracterização / Retrato de Ulisses

    Ulisses é o protagonista da sua própria epopeia – a Odisseia, que retrata o seu regresso a Ítaca, após o final da guerra de Troia.
    É pela boca de Helena que ficamos a conhecer alguns dados da vida desta personagem. Assim, Ulisses será filho de Laertes, um rei muito respeitado, e vem de Ítaca, onde deixou a família. Fisicamente, trata-se de um homem forte, de ombros largos, aspeto imponente e voz a que nenhum mortal poderia resistir. Ora, este último traço indicia o papel fundamental desta figura na Ilíada. Com efeito, o Ulisses que Homero nos apresenta não é tanto o guerreiro, como Aquiles, mas o homem sábio, diplomata e conciliador que procura resolver os problemas. É essa sua sabedoria, aliada à coragem e à voz forte que é escutada, que faz dele um líder estimado e respeitado. O rei de Ítaca é, pois, uma personagem racional, estável e madura, com tato, um estratega hábil (ou não fosse ele a sugerir o estratagema do cavalo de pau), tudo qualidades que um rei e um verdadeiro líder deverão possuir e que faltam, por exemplo, a Agamémnon.
    Recuemos até ao primeiro canto. Agamémnon e Aquiles enfrentaram-se, o que motivou o segundo a abandonar a guerra, ato que teve como consequência a morte de inúmeros soldados aqueus. Quando o primeiro compreende que, sem o filho de Tétis, a guerra está perdida, recua e procura reconciliar-se com ele, porém este recusa. Encurralado, Agamémnon envia Ulisses como embaixador até junto de Aquiles, no entanto o líder dos Mirmidões recusa novamente a proposta e as riquezas oferecidas pelo rei dos Aqueus. Ora, Ulisses não insiste nem discute com Aquiles, pois sabe que tal é inútil e poderá acarretar efeitos ainda mais perniciosos, antes regressa ao acampamento e explica a Agamémnon o motivo da raiva do filho de Tétis. Deste modo, o que se destaca neste passo da obra é a forma como Ulisses, inteligentemente, apresenta os seus argumentos a Aquiles e, depois, escuta, em silêncio, a nega furiosa daquele, sem retorquir, pois tal poderia unicamente agravar a situação. O marido de Penélope compreende, sabiamente, que é inútil discutir com alguém tão orgulhoso e dominado pela cólera. Outro momento que evidencia as qualidades da personagem tem lugar quando Aquiles se apresta, furioso, para atacar o exército troiano, quando toma conhecimento da morte de Pátroclo. Calmamente, Ulisses intervém e aconselha-o a deixar que os soldados se alimentem primeiro, argumentando que, se forem combater sem estarem devidamente alimentados e dessedentados, a sua força e capacidade de lutar e vencer os inimigos será menor. Aquiles, porém, não escuta e insiste em combater de imediato, mas o rei de Ítaca contrapõe que batalhar sem descanso e uma alimentação adequada diminuirá o moral das tropas e gerará um inevitável descontentamento. Note-se que, neste passo, a atitude de Ulisses difere muito da referente ao episódio mencionado anteriormente, visto que, agora, Ulisses enfrenta Aquiles e se recusa a ceder o que quer que seja que esteja relacionado com o bem-estar, a saúde e a segurança dos soldados. Ora, é evidente que esta postura lhe granjeia um enorme respeito e consideração junto das tropas, que o veem como um líder forte e confiável, que as defende e protege.
    Por outro lado, pelo exposto fica claro o contraste que existe entre Ulisses e Agamémnon e mesmo Aquiles, concretamente pela sua capacidade de aconselhamento e de diplomacia, bem como pela calma, racionalidade e poder de análise dos problemas, características que constituem a antítese da precipitação, da emotividade, da tendência para a fúria e da incapacidade para estabelecer pontes e sarar diferenças e conflitos com tato e diplomacia.
    Em suma, recuperando as palavras de Maria Helena da Rocha Pereira (Estudos de História da Cultura Clássica, p. 75), “Ulisses é ao mesmo tempo o guerreiro valente e o homem prudente e avisado, escolhido para as missões delicadas, como a de restituir Criseida ao pai e a de chefiar a embaixada a Aquiles; é quem, no Canto II, impede os Aqueus de se precipitarem numa fuga desordenada, e a sua sensatez é por vezes comparada à de Zeus.”

sábado, 25 de dezembro de 2021

Caracterização / Retrato de Agamémnon

    Irmão de Menelau, Agamémnon é o comandante-chefe do exército aqueu e, simultaneamente, o rei de Micenas, tendo herdado o reino do seu pai. A sua comunidade espera que ele, enquanto monarca, estabilize a sociedade, julgue e arbitre as disputas e presida às assembleias. Quer Ulisses quer Nestor, dois dos seus comandantes, esforçam-se por manter a autoridade de Agamémnon entre os soldados, pois reconhecem que o apoio a Agamémnon constitui a única forma de garantir uma política e ordem social efetivas.
    No entanto, apesar de ser efetivamente o rei e detentor de um grande poder e uma posição social única e privilegiada, esta personagem não é necessariamente a mais qualificada para governar. Neste contexto, o velho, experiente e sábio Nestor desempenha um papel fundamental enquanto seu conselheiro, tanto mais que Agamémnon tem um temperamento irascível e um orgulho bem acentuado de deixa que as suas emoções súbitas e descontroladas influenciem a tomada de decisões muito importantes e críticas. É, por isso, que os conselhos de Nestor assumem uma relevância tão grande, como é demonstrado logo no início do poema, quando o velho conselheiro o insta a não «roubar» Briseida (o prémio de guerra) a Aquiles. Como sabemos, o rei dos Micenas não o escuta, dando assim início a uma série de acontecimentos que terá consequências trágicas, nomeadamente a morte de centenas de soldados aqueus. Os seus erros quase custam a vitória dos Aqueus na guerra.
    Por outro lado, usa o seu poder para intimidar os outros e obter o que quer. Por exemplo, ele sacrifica a sua filha pra conseguir vento favorável para os barcos que enviará para Troia. De facto, se é verdade que estamos na presença de um grande guerreiro, não o é menos que não é um grande rei: magoa a própria família, comete muitos erros, ignora os seus comandantes e os conselhos dos mais próximos e quase perde a guerra, tudo por causa do seu orgulho e da sua teimosia. Mesmo depois de perceber os elevados custos da sua postura e das suas atitudes, apenas oferece reparações e não desculpas sinceras e sentidas.
    Para compreender o Agamémnon que encontramos retratado na Ilíada, é importante recuar no tempo, até às origens. Ele é irmão de Menelau, o rei de Esparta, que desposou a mulher mais bela de todas, Helena. Quando esta fugiu com Páris, Agamémnon reuniu um poderosíssimo exército no sentido de auxiliar o irmão a resgatá-la, dando, assim, início à guerra de Troia. Ele é casado com Clitemnestra, a irmã gémea de Helena, com quem teve quatro filhos, dentre os quais se destaca Ifigénia, a mais velha de todos. Reza a lenda que, quando Agamémnon se preparava para navegar em direção a Troia, se deparou com ventos desfavoráveis. Perante tal dificuldade, para ganhar o favor dos ventos, sacrificou Ifigénia, o que lhe valeu a inimizade e o ódio da esposa, com consequências futuras trágicas para si próprio.
    Voltando ao presente, embora seja um grande guerreiro, não é o líder mais inteligente. Por exemplo, antes do Canto I, tomou Criseida como prémio de guerra e fez dela sua concubina. No entanto, Crises, o seu pai, um sacerdote de Apolo, demanda a sua restituição, mas o rei dos Gregos recusa, o que tem como consequência o envio de uma praga sobre o exército aqueu que provoca a morte de muitos soldados. Mesmo aconselhado por figuras experientes e sábias como Nestor e Ulisses, Agamémnon mantém-se obstinado. Só mais tarde anui, apenas sob uma condição: exige, em troca, que Briseida, o prémio de Aquiles, lhe seja dada em substituição de Criseida. O líder dos Mirmidões não concorda e resiste, mas acaba por ceder, pois o rei dos Aqueus é, afinal, o seu líder. Esta obstinação e a afronta a Aquiles é um erro monumental que quase lhe custa a vitória na guerra. Apenas no Canto IX Agamémnon toma consciência do seu erro e cede, devolvendo Briseida a Aquiles, afirmando que nunca lhe tocou. Esta decisão salva a guerra para os Gregos.
    Por outro lado, existem momentos que evidenciam que a sua conduta relativamente aos seus comandantes está longe também de ser a mais adequada. Por exemplo, não aceita os conselhos de Nestor, como já foi notado, apesar de mais do que adequados às circunstâncias, e «agride-o» citando a sua idade avançada enquanto impeditiva da condição de soldado. Este traço alia-se a outra deficiência de caráter: a não assunção das suas responsabilidades, procurando sempre culpar outro(s) pelas suas falhas, seja um soldado, seja Zeus ou o próprio Destino. Estas características possibilitam concluir que Agamémnon, em muitos momentos, não é digno do título que ostenta. Ele é um grande guerreiro, forte e hábil, mas não um grande rei; toma decisões erradas, é injusto por vezes, arrogante e orgulhoso. Mais: não alcança as limitações do poder. Se disso tivesse consciência, jamais ofenderia Aquiles ao exigir, absurdamente, Criseida, ou aceitaria devolvê-la ao pai, quando este o solicita. No seu pensamento, a restituição da cativa a Crises equivaleria a uma perda de prestígio e até de autoridade. Além disso, parece não alcançar que um rei não pode submeter-se às suas emoções e desejos, nem compreender que o poder e a autoridade vivem de mãos dadas com a responsabilidade e que o bem comum, de todos, deve sobrepor-se aos desejos pessoais.
    Ao longo do poema, Homero contrapõe as figuras de Agamémnon e Aquiles, indiciando os aspetos que os aproximam e os que os afastam. No que diz respeito às diferenças, Aquiles é muito apegado e protetor daqueles que ama, porém, em contraponto, bastante cruel para com quem se lhe opõe ou é seu inimigo. Por seu turno, como já foi dito, Agamémnon vive preocupado essencialmente consigo mesmo e com as suas questões, não hesitando em fazer uso do seu poder e da sua autoridade ou em manipular quem necessitar para obter o que pretende. Faz constantemente da assunção da responsabilidade pessoal, procurando responsabilizar outros pelas suas falhas e omissões. No final da obra, a adesão do leitor dirige-se a Aquiles e não a Agamémnon-
    Não obstante o mundo que os separa, há traços que os aproximam. Por exemplo, ambos possuem um caráter orgulhoso, até obstinado. Quando Aquiles se retira da guerra, a morte que se abate sobre o exército grego é consequência tando da arrogância e obstinação do rei dos Aqueus como do orgulho e teimosia do líder dos Mirmidões. Todavia, mesmo aqui existem aspetos que os diferenciam. Assim, fica claro que o orgulho de Aquiles desperta somente quando é ferido pela exigência de Agamémnon, ao passo que este não perde uma oportunidade para exibir o seu e fazer os demais sentirem os respetivos efeitos. Nesta sequência, convém, de novo, recordar a sua exigência de ficar com a maior parte dos saques, apesar de correr menos riscos físicos durante as batalhas, e insiste em liderar o exército contra os Troianos, não obstante o facto de ser Menelau, seu irmão, o verdadeiro ofendido, pois Helena era sua esposa.
    Em suma, Agamémnon é o comandante supremo da expedição a Troia, o líder arrogante e prepotente que acaba por se retratar quando erra, mesmo que mais tarde do que cedo. É um guerreiro mais competente do que Menelau, mas também um carniceiro cruel e desumano no campo de batalha.

"O Nascimento de Cristo", de Albrecht Altdorfer


 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

"O Nascimento de Cristo", Paul Gauguin


 

Análise de "As árvores e os livros"

 
As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
 
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.
 
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
 
É evidente que não podes plantar
no teu quarto plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
 
            Jorge de Sousa Braga é um escritor português natural de Cervães, onde nasceu em 1957. Em 1981, concluiu o curso de Medicina na Universidade do Porto, tendo optado pela especialidade de Obstetrícia/Ginecologia. Mais recentemente, tem-se dedicado à investigação no campo da infertilidade. Em paralelo, dedica-se à sua carreira poética e à escrita de livros infantis.
            O poema “As árvores e os Livros” faz parte da obra Herbário, publicada em 1999, que foi distinguida com o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil. Relembre-se que os livros são constituídos por folhas de papel, o qual provém de uma pasta obtida a partir da madeira das árvores.
            Logo no primeiro verso o sujeito poético associa as árvores e os livros através de uma comparação. Mas, afinal, o que têm os dois em comum? Ambos têm folhas com margens (lisas ou recortadas); os livros têm capas e as árvores, copas (é evidente o jogo de palavras entre «capas» e «copas»); da mesma forma que as árvores possuem flores que se destacam entre as suas folhas, os livros estão muitas vezes divididos em capítulos, que se evidenciam entre as suas folhas; estes contêm “letras de oiro nas lombadas” (podemos, a este propósito, recordar os cancioneiros medievais e as suas extraordinárias iluminuras), enquanto as árvores possuem “desenhos” formados pelas reentrâncias dos troncos.
            Por outro lado, os livros estão repletos de histórias e aventuras; são, portanto, espaços repletos de vida e de surpresas, o mesmo que podemos encontrar nas florestas, locais caracterizados pela abundância e diversidade de vida, pela surpresa e aventura. Daí a metáfora do verso 9: “As florestas são imensas bibliotecas” – nas primeiras, há imensas árvores; nas segundas, muitos livros, feitos de papel, proveniente delas.
            Além disso, tanto os livros como as árvores podem ser admirados pela sua beleza exterior (capa, lombada, contracapa, etc.) e pela beleza interior, pois permitem-nos conhecer “histórias de reis” e “histórias de fadas” e viver “as mais fantásticas aventuras”. Esta associação entre bibliotecas e florestas cria, na parte final do poema, um certo efeito lúdico no poema, pela conexão entre bibliotecas especializadas e florestas temperadas, ou seja, florestas que são constituídas apenas por um determinado tipo de árvores, tal como as bibliotecas especializadas são formadas por somente um tipo de livros.
            A última quadra assenta na ironia: de forma complacente, o «eu» informa o «tu» de que não pode plantar no seu quarto árvores (plátanos ou azinheiras). Tal é uma realidade impossível de concretizar. Porém, recorrendo novamente à ironia, informa-o de que, para começar uma biblioteca, “basta um vaso de sardinheiras”. Ou seja, biblioteca começa por pouco, por um simples livro?

 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

"Natividade", Tintoretto


Vírus

     A palavra vírus é de origem latina e designava um veneno ou um líquido fétido de origem animal, entre outros significados, que não diferiam muito dos referidos.

    Nos finais do século XIX, um cientista holandês chamado Martinus Beijerinck descobriu que algumas doenças eram transmitidas por algo mais pequeno que uma bactéria. Para designar esses micróbicos, adotou o velho nome latino virus, que já há muito havia desaparecido da boca dos falantes.

    A partir dos artigos de Beijerinck, o termo espalhou-se pelo mundo com o significado que o cientista holandês o cunhou.

    Os mais curiosos talvez estejam a questionar-se acerca do motivo que terá levado Martinus a selecionar este termo. Pois bem, a explicação é relativamente simples. Nos finais do século XIV, quando virus deixara de ser usado pelo latim e pelas línguas que dele derivaram, as quais tinham optado por outros vocábulos para se referir a um veneno, o termo foi recuperado na Inglaterra, tornando-se uma palavra inglesa. Quatro séculos depois (XVIII), adquiriu um novo sentido: o de «agente que provoca doenças». Este significado foi-se espalhando gradualmente pelas línguas europeias, surgindo inclusive nos imortais Os Maias, o célebre romance de Eça de Queirós. Ora, isto quer dizer que o velhinho virus latino já tinha sido associado ao campo da Medicina, contudo foi o seu uso por parte de Martinus Beijerinck que fez com que a palavra se espalhasse com  o significado que hoje lhe damos.

    Resumindo, o termo virus provém do latim (que o terá herdado de outra língua); com o tempo, deixou de ser usado pelos falantes de línguas latinas, mas acabou por ser recuperado pelos ingleses, que lhe atribuíram um novo sentido; posteriormente, um cientista holandês conferiu-lhe um significado preciso e assim se disseminou pelas línguas do mundo inteiro.

    Porém, como as línguas - e as palavras - estão em permanente evolução, o vocábulo vírus, depois de ser reinventado para designar um novo tipo de germe, adquiriu novos sentidos. Atualmente, pode também referir um programa de computador que danifica, de alguma forma, as máquinas onde se aloja. Este novo significado foi criado pela língua inglesa, nos anos 70 do século XX, e espalhou-se pelo globo.

    E outros sentidos, de caráter metafórico, surgiram entretanto e são usados pelo comum dos mortais.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Pink Panther: episódio 8

Fernando Pessoa, o ortónimo


Análise de "Que escada de Jacob?", de Ana Luísa Amaral

             O título do poema de Ana Luísa Amaral relaciona-se com a escada mencionada no livro do Génesis e que constitui o meio de que os anjos se servem para subir e descer do céu. De acordo com o texto bíblico, foi criada por Jacob nos seus sonhos, depois de se ter confrontado com o seu irmão Esaú.
            Relacionando o conteúdo do texto do Génesis com este poema, podemos afirmar que a escada sonhada por Jacob representaria a possibilidade de contactarmos com os anjos e os entes mortos queridos, sempre presentes na nossa memória saudosa, uma espécie de ponte entre a vida e a morte.
            Ora, tendo em conta a dedicatória que abre a composição, a ideia da morte e da ausência (neste caso, do pai do «eu») estão presentes no texto desde o seu início. Note-se, por outro lado, que a dedicatória está datada: 23 de dezembro de 2002, a antevéspera de Natal, a efeméride que celebra o nacimento de Cristo, cuja morte, por outro lado, está na base da fundação da religião católica, cujo princípio essencial será, provavelmente, o amor e a fraternidade.
            O verso inicial do poema alude à noite em que o ser humano pisou a Lua pela primeira vez, o culminar da corrida espacial que Estados Unidos e União Soviética travaram durante anos, que teve o seu marco inicial em 1957, com o lançamento do Sputnik 1. Outra data marcante é o dia 12 de abril de 1961, quando o cosmonauta russo Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ir para o espaço.
            Voltando ao poema, o verso 2 remete para outra realidade: a televisão ainda a preto e branco (portanto, nos primórdios do seu surgimento), através da qual o «eu» e o seu pai assistiram a esse momento extraordinário da história humana. Segue-se-lhe uma referência aos escafandros (elemento que ressurge no texto), que estabelecem uma analogia entre o vestuário dos astronautas que pisam a Lua e a roupa dos mergulhadores. Qual o sentido desta analogia? O Homem, quando mergulha nas profundezas do mar, necessita de fatos especiais para poder sobreviver debaixo de água; o mesmo acontece quando abandona a atmosfera terrestre e voa para o espaço.
            Na primeira estrofe ainda, o «eu» refere os vários momentos e aspetos que caracterizaram a imagem que os espectadores tiveram da chegada à Lua: a escada que desce do veículo que transportou os astronautas até à superfície, o pó que foi levantado quando aqueles pisaram o solo lunar, a ausência de gravidade. Além disso, o sujeito poético – feminino – localiza os acontecimentos no tempo (duas horas da manhã) e afirma a presença do seu pai (“estavas comigo” – v. 7), assistindo ambos ao feito histórico.
            A segunda estrofe do poema coloca-nos num cenário preciso: o lar onde morava com a sua família, associado a e caracterizado por vários elementos: o lar em sim, a casa, a família, o passado, nomeadamente o da infância, a sala com televisão a preto e branco, o prato de sopa comido às quatro horas da manhã. E o «eu» recorda os vários objetos presentes na sala onde assistiu à chegada à Lua: a mesa ao fundo e o sofá grande. Ele [ela] tinha 11 anos e tudo ficou gravado na sua memória, que agora é recordado, à distância de muitos anos, com nostalgia. Apesar da sua tenra idade, nesse dia sentiu-se «grande», porque o pai assim a fez sentir. O crescimento do «eu» é, simultaneamente, testemunhado e fomentado pelo seu progenitor, como se fosse quase um deus que está sempre presente. Note-se que os dois versos finais desta estrofe associam todo este ambiente à ideia da condição humana. De facto, o ser humano, ao concretizar tal façanha, tinha-se libertado da sua prisão na Terra, onde tinha estado confinado até aí. Observe-se, no entanto, que a questão da condição humana não se esgota nesse passo, dado que a composição poética foca outras questões, como o nascimento, a vida e a morte. Mais: a questão do nascimento deixa de ser um acontecimento meramente fisiológico, de cariz eminentemente feminino e restrito à esfera privada (atente-se no facto de a poeta ter nascido na década de 50 do século passado), e é apresentado sob a forma de um símbolo da iniciativa e da esperança.
            A terceira estrofe situa-nos no dia de verão em que o sujeito poético realizou o seu exame, pelas três horas da tarde, vivido com angústia, desde logo porque estava consciente da sua «ignorância» em matéria de ciências: “eu sem saber o grau das equações, que incógnitas havia a resolver”. Mas lá estava, mais uma vez, o seu pai, sempre presente e próximo dela (“sentado atrás de mim, na carteira de trás”), também ele nervoso enquanto progenitor face à «prova» da filha, mas terno e carinhoso como era seu timbre. Essa presença afetuosa certamente constituía um porto de abrigo e um mar de tranquilidade e segurança que acalmava o «eu».
            Apesar da «ignorância», o sujeito poético superou o exame (“Passei”), o que deixou, naturalmente, o pai feliz (“E eu vejo ainda o teu sorriso”). Tinha 15 anos, ou seja, quatro se tinham passado desde a primeira estrofe, isto é, a chegada do Homem à Lua, em 1969. Esse foi mais um passo no seu crescimento; “a sentir-me grande”.
            A estrofe seguinte abre com a alusão a outro momento importante da vida do «eu», este marcado pela dor, uma dor tipicamente feminina (a do parto). Atente-se na expressividade do adjetivo “nova” a qualificar a “dor”. Ora, se esta é uma “nova” dor, tal significa que houve outras antes. Quais? A da primeira menstruação e a da iniciação sexual, por exemplo, todas elas femininas e essencialmente uterinas. Esse dia, em que o «eu» deu à luz, marcou também o nascimento da poeta e da mãe, o que emociona profundamente os eu pai (“e tu, a soluçar baixinho, retalhado entre amor/e alegria”), sempre presente nos momentos importantes da vida da filha. Pelas segunda e terceira vezes, surgem os escafandros, uma alusão, provavelmente, aos médicos e/ou enfermeiros, que “utilizam batas como escafandros” e que tentam sossegar o pai do sujeito poético. A imagem dos escafandros remeterá, certamente, para as batas do pessoal médico, constituindo um modo de despersonalizar essas pessoas, já que, envergando, de facto, um escafandro, o indivíduo não possui traços distintivos ou fisionomia visíveis. Foi, em suma, um dia longo, “tão longo em que o sol caminhou até ao fim”, mas esse fim do dia marcou, por contraste, o nascimento de um novo ser.
            A penúltima estrofe anuncia a morte do pai, “Na noite em que a lua te deixou”, marcada pela ausência do «eu», da filha, algo que a perturba e deixa ressentida: “eu não estava contigo”. O pai, que parecia omnipresente, porque sempre estivera presente em todos os momentos importantes da filha, passou a estar ausente, tal como ela está no momento da morte do pai, marcando-se, assim, um contraste entre presença e ausência. A mesma Lua que assiste a um nascimento, de uma “outra” condição humana, é associada agora a uma partida, a uma morte, o que enfatiza um outro lado da condição humana: a da fragilidade do Homem, da sua finitude e mortalidade. Segue-se nova menção aos escafandros “cinzentos”, bem como a referência à “noite dos fantasmas”. Neste passo, os escafandros, à semelhança do que sucedia antes, anunciarão provavelmente algo novo; o momento da morte do pai. Esta interpretação da figura do escafandro como o anunciador de algo novo pode fazer-se também relativamente aos outros passos do poema em que surge: da primeira vez associa-se à chegada do ser humano à Lua; da segunda, ao nascimento do(a) filho(a) da poeta.
            Por outro lado, com a morte do pai, o sujeito poético parece ganhar consciência da finitude do ser humano, de que todos iremos um dia morrer. Nesse momento de partida, ressalta a impotência do «eu» para o impedir, desde logo porque estava ausente, mas esse momento serviu igualmente como o despoletar da recordação dos eventos mais importantes vividos por pai e filha, “como s só depois da morte do pai, diante da solidão, e da memória, às vésperas do dia de Natal, fosse possível perceber a dimensão daquela figura no decorrer da sua própria vida. A ausência da figura paterna agora (ele, que estivera sempre presente na vida dela) une-se à ausência da filha (que tivera a companhia/presença dele nos eventos mais importantes da sua existência) no momento da sua morte.
            O dístico com que a composição encerra é constituído por duas interrogações: “A que sabia a sopa que comemos? / Que escada de Jacob?” A primeira interrogação parece sugerir que o pai sabia de algo que a menina de outrora – aquela que a comera na noite da chegada à Lua – desconhecia. A segunda questionará a existência da tal escada que liga a Terra ao Céu, através da qual o «eu» poderia/irá subir um dia e reencontrar o seu pai?

"Adoração dos Pastores", de van der Goes


 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O sirventês provençal

            Entre as produções satíricas da Idade Média sobressai o chamado sirventês, que nasceu e floresceu na Provença, sul de França, por volta do século XII, na «langue d’oc», sendo, portanto, contemporâneo do lirismo que celebrava o amor cortês.
            Desde o século XI, a região da Provença constituía um importante centro de atividade literária, sobretudo graças à prática do mecenato cultural por parte dos senhores feudais locais. Não é, por isso, de estranhar que lá se tenha desenvolvido a primeira grande escola de poesia romântica em «langue d’oc», assumida posteriormente pela «langue d’oil», isto é, pelo francês falado no Norte.
            O legado mais importante da escola provençal foi a «cansó», uma composição que versava a temática amorosa em 5 a 7 coblas. Inequivocamente, embora tenho sido a vertente lírica do trovadorismo a que teve mais sucesso, a satírica possui também bastante qualidade. Segundo Rodrigues Lapa (in Lições de Literatura Portuguesa – Época Medieval), “A cantiga escarninha toma, na Provença, dum modo geral, o nome de ‘sirventês’. […] em nada difere da canção, e até o nome parece indicar que a sua estrutura seguiria ‘servilmente’ a melodia duma canção. O tema era, todavia, diferente, tinha caráter mais objetivo, refletia as opiniões e os sentimentos do trovador sobre os homens e a vida social. Daqui necessariamente o seu caráter moral e satírico.”
            Chegaram até nós cerca de duas centenas de sirventeses provençais, poemas de circunstância que refletem a realidade da sua época e deixam transparecer, em certa medida, a opinião pública de então. Esses tempos eram constituídos por invetivas pessoais, críticas às diferentes classes sociais, elogios, reflexões morais genéricas e até lamentações fúnebres.
            Tal como sucede com vários outros vocábulos, a origem etimológica de «sirventês» não é muito clara. Assim, há autores que afirmam que o termo não advém diretamente de «servir», mas de «sirven», acrescido do sufixo -isc.
            Durante o século XIII, a forma «serventois» era usada no Norte da França para designar textos semelhantes ao sirventês meridional. Essa forma setentrional surgiu inicialmente na Normandia: «serventeis», formada a partir de «servant» (do latim «servantem»), ou de «sergent» (dolatim «servientem»), pelo que, em rigor, deveria ser «servanteis» ou «sergenteis». Talvez «serventeis» tenha resultado da influência dos trovadores sobre a poesia do Norte da França.
            Para Martin de Riqueur, tanto no Norte, como no Sul, «sirventês» designava a canção do «sirven», isto é, do servidor de um senhor poderoso que compunha versos destinados a atacar os inimigos do patrão ou a defendê-lo das críticas que lhe fossem dirigidas. Sucede que foram muitos aqueles que serviram os seus senhores quer através das armas quer através do canto, daí que seja de considerar a existência de relações estreitas entre o «sirven» e o trovador. Desta relação deveriam estar afastados os jograis, dado que eram apenas os intérpretes dos poemas e não os compositores [função restrita aos trovadores]. Além disso, os jograis eram plebeus, pelo que não podiam usar espada, ao contrário dos trovadores que, enquanto nobres e cavaleiros, possuíam a faculdade de servir os seus senhores com a espada e com os seus textos satíricos.
            No que diz respeito à forma, o sirventês, inicialmente, fez uso de elementos de métrica romana, mas acabou por se tornar epígono da cantiga, quando esta se sobrepôs às demais modalidades poéticas. Relativamente à temática, o sirventês distancia-se da cantiga; por outro lado, permite classifica-la em três modalidades: sirventês pessoal, moral e político.
            O primeiro compreende composições poéticas injuriosas, de linguagem solta, que se focam na crítica a certos aspetos da vida íntima ou profissional das pessoas. Aquelas que visavam os jograis designavam-se «sirventês joglaresc». Alguns dos cultores desta modalidade foram nomes como Guillem de Berguedam, Bertran de Born, Manfredi Lancia e Peire Cardenal, a que se odem acrescentar outros como Peire d’Alvergne e Le Moine Montaudon, estes últimos representantes do sirventês pessoal literário, dirigido a poetas.
            O sirventês moral aborda temas como o desconcerto do mundo e a iniquidade da época, a denúncia dos vícios, a decadência de certos valores e o enaltecimento das virtudes, a falta de respeito e a avareza dos nobres, em comparação com tempos anteriores (mais idealizados do que corresponde à realidade da época), em que eram valorizados – os trovadores – e bem remunerados com roupa, alimento e dinheiro. Se, inicialmente, o sirventês moral atacava somente a nobreza, a partir do início do século XIII, a crítica estende-se a outras classes, o que incluía comerciantes, clérigos, homens da lei, agricultores, estalajadeiros, médicos, boticários, advogados, estudantes, mendigos e até os próprios reis, pelos mais diversos vícios (conflitos, exploração, injustiças, etc.). O trovador mais célebre a cultivar esta modalidade foi Peire Cardenal, que denuncia nos seus textos a hipocrisia, a mentira, a fraude, a violência ou a corrupção. Desiludido com o mundo, escreve uma parábola demolidora: certo dia, caiu sobre uma cidade uma chuva que fazia enlouquecer todos os que molhava. A totalidade dos habitantes, à exceção de um, foi atingida, e começaram a praticar as maiores loucuras, sem que ninguém estranhasse tal. Assim sendo, a única pessoa que se mantivera lúcida acabou por ser considerada louca, sendo maltratada pelos demais e forçada, em consequência, a fugir da cidade. É evidente que a localidade simboliza o mundo: a verdadeira sabedoria que nele se pode praticar resume-se ao amor e ao temor a Deus, de acordo com os mandamentos. Com a queda da chuva de orgulho e cobiça que todos corrompeu, perdeu-se a sabedoria. Deste modo, quando surge alguém que honra Deus, é considerado louco e escorraçado. O sirventês moral focado nos temas da mulher e do amor foi escasso, tendo sobressaído, neste caso, nomes como Marcabru ou Peire Cardenal.
            Por seu turno, o tema central do sirventês político são os grandes acontecimentos da época, como as cruzadas do Oriente, a Reconquista Espanhola, a luta dos reis ingleses com os senhores feudais franceses, as lutas internas italianas ou a guerra dos albigenses. A principal figura a cultivar esta modalidade foi Bertran de Born, figura que amava a guerra por si mesma e semeava a discórdia, nomeadamente entre suseranos e vassalos, irmãos contra irmãos, filhos contra pais, etc. Um dos temas centrais – as guerras santas – era cultivado sob a forma de propaganda. No fundo, o sirventês político constituiu um excelente veículo de propaganda de ideais políticos, sem deixar de ser, em simultâneo, o testemunho da paixão e da reação que determinados acontecimentos provocaram, bem como a conduta de certas figuras.
            Além destas, existem outras espécies menores de sirventês provençal, como as chamadas «caps», que relatam ações heroicas, mesmo algumas de realização impossível, ou os «planhs», lamentos fúnebres.
            Em suma, o sirventês provençal está na génese da sátira medieval galego-portuguesa.

domingo, 21 de novembro de 2021

Conceito de sátira

             Não há certezas sobre a origem do termo sátira, no entanto grande parte dos estudiosos liga-a ao nome dos sátiros, divindades gregas secundárias associadas a zombarias e farsas. Outros consideram que deriva do vocábulo «satur», um adjetivo que era aplicado a pessoas embriagadas.
            Para Jules Humbert e Henri Berguin, a etimologia de sátira radica no latim «satura», cujo primeiro significado, presente na expressão «satura lanx», é “prato de oferendas diversas, oferecidas aos deuses nas celebrações que envolviam sacrifícios. Além disso, «satura» designa uma pasta feita de diferentes carnes. Por outro lado, a linguagem parlamentar usava a expressão «per saturam» na aceção de “em bloco”, aludindo ao processo rápido pelo qual se regulamentavam vários negócios de uma só vez.
            O gramático latino Diomedes (século IV d.C.) apresenta quatro hipóteses relativamente à etimologia do termo, entendido pelos romanos como composição em versos pertencente a uma miscelânea de poesias. Deste modo, a primeira hipótese relacioná-la-ia com os sátiros, que, tal como sucede na sátira, dizem e fazem coisas ridículas e vergonhosas. A segunda leva-nos até «satura», um prato cheio de muitas e variadas primícias, que os antigos camponeses ofereciam aos deuses em festividades religiosas. Esse prato era assim chamado por causa da abundância e fartura de componentes. A terceira associa-o a «satura», um determinado tipo de recheio com muitos ingredientes. Por último, a quarta remete para uma lei chamada «satura», em que, numa única petição, se incluíam, simultaneamente, muitas coisas, “como acontece na composição versificada do mesmo nome, que reúne diferentes poemas.”
            Salvatore D’Onofrio opta pela derivação de «satura lanx», que significava “prato cheio” de oferendas aos deuses, em ação de graças, um ritual que se incluía num ambiente de festa, a que estavam associados a música, ao canto, à dança e a troca de desafios onde se misturavam o sagrado e o profano, atingindo por vezes o obscuro.
            Outros autores associam o termo a diferentes significados. Assim, Énio remete para a ideia de mistura, tendo em conta os diversos sentidos que «satura» adquire no título Saturae, que deu a alguns dos seus poemas de metros heterogéneos. Em Lucílio, «satura» traduz a variedade de tom e assunto e designa um género original.
            Aparentemente, o género satírico parece ser de origem romana e surge associado a dois traços distintivos: o gosto pela troça e o da observação moral. O já citado Lucílio parece ter definido o domínio característico da sátira – a crítica à sociedade – e a sua forma poética – o hexâmetro –, pelo que é considerado por muitos o verdadeiro criador da sátira como género literário.
            Na Idade Média, a produção satírica foi abundante, sobretudo no século XII, em França. Os principais temas eram os abusos da Igreja, as inovações educativas, o governo secular, a moral e os costumes dos cortesãos. A inspiração desses autores medievais centrava-se em autores latinos, como Horácio e Juvenal, bem como noutros que não eram inteiramente satíricos, como Ovídeo (Ars amatória), Marcial (Epigramas), Séneca (Apocolocyntosis) e Petrónio (Cena Trimalchionis). Recorriam também às Sagradas Escrituras e à liturgia cristã, visando a sátira dos clérigos e das ordens religiosas. São exemplo deste tipo de literatura os Carmina Burana, uma coletânea de poemas e textos dramáticos manuscritos do século XIII, maioritariamente picantes, irreverentes e satíricos, escritos em latim medieval e línguas vernáculas. Além dos já mencionados, são ainda tratados temas como os vícios da corte, misoginia e misogamia. Existia ainda a chamada «satira communis», que focava as diversas classes sociais: o rei, o Papa, os nobres e todas as profissões e ofícios da época, exemplificada por obras como o De contempto mundi, de Bernardo Morval, e o Speculum Stultorum, de Nigel de Canterbury.
            A partir dos múltiplos estudos sobre a sátira, é possível identificar duas categorias: a formal (ou direta) e a indireta. Aquela surge na primeira pessoa e compreende duas formas: a primeira evoca ironicamente as loucuras e os absurdos dos seres humanos, enquanto a segunda possui um caráter moralista, sério, visando a repreensão forte dos vícios humanos. Já a sátira indireta é redigida na terceira pessoa e surge sob a forma de uma narrativa, cujos protagonistas se revelam ridículos através das suas opiniões, das suas ações, das suas falas ou pensamentos.
            Outro tipo de sátira é a chamada menipeia, que deve a designação ao seu criador, o filósofo grego Menipo. Esta forma satírica é igualmente conhecida por varrónica, dado que foi cultivada também por Varrão, discípulo de Menipo, e intercala momentos em prosa com outros em verso. A sátira menipeia é originária da Grécia.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

O sirventês galego-português

A vertente satírica da literatura galego-portuguesa medieval é representada pelas cantigas de escárnio e maldizer. A designação de «cantigas» justifica-se pelo facto de, à semelhança das cantigas de amigo e de amor, associarem a poesia, a música, o canto e a dança e se destinarem a terem acompanhamento musical: flauta, guitarra, harpa, arrabil, alaúde, giga, pandeiro, adufe, bandurra, saltério, doçaina, trompa, exabeba, gaita, tambor, viola e anafil. Como se sabe, o compositor era, fundamentalmente, o trovador, enquanto o jogral cantava e tocava instrumentos.
            Para compreender estas composições, assumem grande importância dois textos medievais: a célebre Arte de Trovar e a Lei XXX, do Título IX, da Segunda das Sete Partidas de Afonso X. A Arte de Trovar é um pequeno tratado em prosa sobre a poesia galego-portuguesa, de autor desconhecido, que define regras e géneros a que trovadores e jograis deveriam obedecer. A peça não chegou inteira até nós, apenas fragmentos, e foi transcrita por Angelo Colocci, um humanista italiano que mandou copiar o Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
            Sobre a cantiga de escárnio, reza o seguinte a Arte de Trovar, mais concretamente o capítulo V: “Cantigas d’escarneo som aquelas que os trobadores fazem querendo dizer mal d’algue[n] em elas, e dizem-lho per palavras cubertas que ajan dous entendymentos, pera lhe-lo non entenderem… ligeyramente; e estas palavras chamam os clerigus hequivocatio. E estas cantigas se podem fazer outros de mestria ou de rrefran.”
            Já as Sete Partidas são sete livros compostos por D. Afonso X, os quais “fundaram o sistema jurídico de Leão e Castela e, mais tarde, da Espanha moderna e dos países sob sua colonização” (SODRÉ, Paulo Roberto. A Arte de Trovar e “jugar de palavras”…). A primeira parte da obra aborda a Igreja medieval e regula a vida de clérigos e leigos, enquanto a segunda trata da vida dos reis e seus oficiais; a terceira, dos advogados e do seu ofício; a quarta, das relações domésticas e dos casamentos; a quinta regula o mundo do comércio, do mar e dos contratos; a sexta ocupa-se dos testamentos; e a sétima, dos marginais, crimes e penas. Além disso, o texto contém a Lei XXX, do Título IX, da Segunda Partida, que consiste num pequeno tratado poético destinado a orientar os trovadores no uso de determinados recursos poéticos, com o objetivo de produzir cantigas bem construídas e numa linguagem adequada ao ambiente da corte. Quando se refere ao cantar de escárnio, aponta o «jugar de palavras» como o recurso mais importante. Assim sendo, os trovadores deveriam usá-lo ou «escarnecer», isto é, não deveriam abordar de forma direta o aspeto risível de um cortesão benquisto pelo rei, antes fazer uso do chamado «equívoco», ou «equivocatio», ou seja, o poeta deveria socorrer-se daquilo que poderemos designar por «jogo de avessos». Por exemplo, se o nobre visado numa cantiga fosse um cobarde, no poema deveria aparecer retratado como corajoso, o que significava que o poeta estaria a “jogar”, ou a brincar, com a sua cobardia. Há autores, porém, que o «juglar de palavras» se associa à literatura oral.
            No capítulo VI, a Arte de Trovar aborda as cantigas de maldizer, definindo-as da seguinte forma: “Cantigas de maldizer som aquela[s] que fazem os trobadores […] descobertamente. E[n] elas entran palavras que queren dizer mal e non aver outro entendimento se non aquel que queren dizer chãamente.” Quer isto dizer que os trovadores ridicularizam os vícios ou as ações de certo indivíduo de forma direta e achincalhante. Estatisticamente, dentro do contexto da sátira, é a cantiga de maldizer que predomina nos cancioneiros, o que significa que os trovadores peninsulares preferiam a invetiva individual e particularista, pessoal e insultuosa. De facto, os poetas parecem ter optado por este caminho em detrimento da abordagem de assuntos de interesse geral.
            Há autores, porém, que contestam esta distinção entre a cantiga de escárnio e a de maldizer. É o caso de G. Tavani, que considera que a distinção entre palavras «encobertas» e «descobertas» é ambígua e de “difícil aplicação na prática”. Para este autor, a diferença entre as duas categorias reside no uso ou não d termos obscenos. Assim sendo, se estivessem presentes obscenidades, a cantiga seria de maldizer; caso não houvesse, seria de escárnio. Por seu turno, Elsa Gonçalves julga que a marca distintiva radica na «equivocatio». E dá como exemplo a cantiga de Pero da Ponte contra Maria Peres, a Balteira, que, não obstante identificar o algo da sátira pelo nome próprio e conter linguagem obscena, classifica como de escárnio, “cujo sentido decorre do equívoco construído pelo trovador sobre o duplo sentido da palavra «maeta» (GONÇALVES, Elsa e RAMOS, Maria Ana. A lírica galego-portuguesa).
            Para Graça Videira Lopes, a distinção entre escárnio e maldizer reside no nível da complexidade da leitura (ou do «entendimento») exigida pela leitura: “Assim, enquanto nas cantigas de maldizer o seu entendimento, como sátira, seria imediato e irrecusável” («e nom aver entendimento senom aquel que querem dizer chaamen[te]» – Arte de Trovar), o entendimento das cantigas de escárnio implicaria um trabalho de descodificação, já que todas elas se construiriam a partir de um jogo com duplos sentido (os ‘dous entendimentos’ de que fala o texto). As ‘palavras cubertas’ não se refeririam, pois, ao nome dos visados, mas simplesmente ao processo retórico de ataque que, como diz o texto, ‘chamam os clérigos hequivocatio.”
            Além das cantigas de escárnio e maldizer, a Arte de Trovar refere também o «joguete de arteiro» e a «cantiga de risadilha» ou «risabelha», no Capítulo V, as «tenções», as «cantigas de vilão» e as «cantigas se seguir». De acordo com o referido tratado poético apenso ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional, os «joguetes de arteiro» são cantigas que “non son mais ca d’escarnho, nem ham outro entendimento; enquanto as «cantigas de risadilha» ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chamam-lhes assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja.” Por seu turno, as tenções são cantigas dialogadas entre dois interlocutores, podendo ser líricas ou satíricas (“Estas se podem fazer d’amor ou d’amigo ou d’escarnho ou de maldizer, pero que devem de ser de mestria”). Quanto às «cantigas de vilão», só se podem fazer suposições, visto que o capítulo da Arte de Trovar que aborda este assunto é o mais estropiado que chegou até nós, contendo uma definição curta e amputada: “Outrossi outras cantigas fazem os trobadores a que chamam de vilaã[os]. Estas cantigas […] sem mao leng[uagem] nom som per al err[a]das por que as nom escarniom no […]. Como outras cantigas podem as fazer de quantos tal[h]os […].” A cantiga de seguir constitui uma imitação jocosa ou uma paródia de uma cantiga, da qual adotava a melodia e, por vezes, até o metro e a rima: “Outra maneira há hi em que trobam dois homens e que chamam seguir, e chamam-lhe assi por que convem de seguir cada um outra cantiga a som ou em p[alav]ras ou em todo.”
            Além de todas as categorias enunciadas, existem outras espécies não conceituadas ou referidas na Arte de Trovar. É o caso do sirventês; do «descordo»; de «variações na invetiva», como o «maldizer aposto», a «despersonalização», a «’defesa’ do visado»; além dos «ciclos narrativos»; da «paródia»; de «outros recursos», como «o jogo com os limites de géneros»; e das «questões de linguagem».
            De acordo com Rodrigues Lapa, as composições satíricas da poesia galego-portuguesa distribuem-se por seis grupos temáticos:
• Entrega dos castelos ao Conde de Bolonha;
• Cruzada da Balteira;
• Escândalo das amas e tecedeiras;
• Impertinência do jogral Lourenço;
• Traição dos cavaleiros na Guerra de Granada;
• Decadência dos infanções.
            Estes grupos não esgotam, obviamente, as visões sobre a sátira trovadoresca. Assim sendo, segundo Scholberg, é possível apontar outras temáticas: cantigas dirigidas a outros trovadores, jograis ou segréis [a hierarquia dos intérpretes da poesia trovadoresca, embora não muito rígida, era a seguinte: trovador, jogral, segrel, menestrel. O trovador era o artista completo: tratava-se, regra geral, de um fidalgo decaído, que compunha, cantava e chegava até a instrumentar as cantigas. O jogral pertencia a uma classe social inferior, porém, se tivesse mérito, poderia ascender a trovador; era o ator mímico ou o músico. O segrel era um artista profissional e ganhava dinheiro apresentando composições próprias ou alheias, de corte em corte. Por fim, o menestrel era o músico da corte.], cujo assunto é formado pelo aspeto físico, pelos defeitos de caráter, a vida desairada, a infelicidade no amor, a velhice, a falta de talento literário. Depois, havia sátiros que visavam as soldadeiras, mulheres assim chamadas porque recebiam um soldo e estavam sujeitas à corte. A sua função era cantar e dançar e vendiam não só o canto e a dança, como também o próprio corpo. Foram várias a protagonizar poemas, como Domingas Eanes, Elvira Lopes, Luzia Sanches, Maria do Grave, Maria Garcia, Maria Leve, Maria Negra, Maria Mateu, Marinha Crespa, Marinha Lopes Ourana e Urraca Lopes, mas a mais famosa foi Maria Peres, a Balteira. Um terceiro núcleo temático centra-se em determinadas classes sociais e profissionais, como a dos infanções, ricos-homens avaros ou decaídos, fidalgos pretensiosos, religiosos impudicos; médicos, advogados, juízes, negociantes; mouros e judeus. Os membros das classes nobres eram satirizados por não disporem de boa comida ou não a oferecerem aos artistas que frequentavam a sua casa, pela sua decadência, pela forma de vestir e pela decrepitude dos cavalos. Os pequenos fidalgos eram visados pela sua glutoneria e embriaguez, enquanto alguns escudeiros e cavaleiros, por almejarem uma ascensão social rápida e fácil, sem a merecerem. A quarta categoria dirige-se aos vícios e costumes. Neste capítulo, um dos assuntos mais focados era o da avareza, de que é exemplo uma cantiga, da autoria de D. Dinis, que satiriza um funcionário por ter acumulado uma avultada soma de dinheiro, apenas para os seus herdeiros dissiparem à vontade após a sua morte, enquanto ele “vivia” atormentado no Inferno. Outro conjunto de composições vituperava os costumes matrimoniais, nomeadamente os enlaces entre pessoas pertencentes a classes sociais diferentes. Um poema de Martim Soares retrata o rapto de Dona Elvira Eanes da Maia por um infanção, Rui Gomes de Briteiros. Na época (século XIII), o rapto, embora fosse crime e o infrator fortemente penalizado, constituía uma forma habitual de obter a mulher amada. Voltando à cantiga, o que mais escandalizou não foi propriamente o rapto, mas o facto de a raptada ter sido conivente e a família dos Sousas não ter procurado lavar a sua honra e dignidade. A homossexualidade também não passou despercebida aos poetas galego-portugueses, daí não ser de estranhar que tenha sido abordada em várias cantigas de escárnio com “palavras cubertas”, isto é, de duplo sentido, que podiam interpretar-se de forma inocente ou obscena. Um quinto conjunto de poemas abordava questões político-militares, que focavam, essencialmente, dois factos que marcaram o século XIII: a deposição de D. Sancho II e a covardia dos vassalos de D. Afonso X, o Sábio, na guerra contra os mouros. O sexto conjunto diz respeito a sátiras de cariz moral que denunciam a subversão de valores, a falta de verdade, a lealdade, o amor ou a amizade, recordando um passado (idealizado e distante da realidade de então) em que predominavam as virtudes. Um sétimo núcleo compreende a paródia ao amor cortês e ao idealismo heroico, nomeadamente a gratuidade do serviço amoroso, os dotes físicos da mulher amada, a morte por amor, etc. Uma outra modalidade satírica apontava para a géstica, sendo denunciados aspetos como os guerreiros feitos à pressa, ser armas adequadas, nem espírito combativos.
            Por seu turno, para Giuseppe Tavani e Giulia Lanciani, as mais de 400 cantigas satíricas que enformam a poesia galego-portuguesa agrupam-se em quatro áreas: a sátira política, a sátira social (pessoal e de costumes), a sátira literária e a sátira moral.

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