Português: Análise da cantiga "Agora oí d’ua dona falar", de Fernão Rodrigues de Calheiros

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Agora oí d’ua dona falar", de Fernão Rodrigues de Calheiros

    Esta cantiga de escárnio e maldizer é constituída por duas sextilhas, antecedidas por uma rubrica que clarifica que o poema se centra numa dona que tinha uma ligação com um criado chamado Vela, como se verá na primeira estrofe.
    O verso inicial remete para a cantiga de amor e a sua temática, a partir da referência a uma dona, cuja fama chega ao conhecimento do sujeito poético, antes mesmo de a conhecer pessoalmente, o atrai e desperta nele o amor “de longe”. Ele ouviu falar dessa dona (“Agora oí d’ua dona falar”), a quem quer bem (“que quero bem”), porém não a conhece, nunca a viu (“pero a nunca vi”), pois ela soube guardar-se muito bem, isto é, soube preservar a sua boa reputação (“por tam muito que fez por se guardar”). Como? A mulher guardou-se, pondo “vela sobre si”. Ora, o uso do nome «Vela» é ambíguo, dado que se presta a um duplo entendimento: por um lado, a expressar “pôr Vela sobre si” significava, em sentido corrente, “pôr-se sob vigilância”, resguardar-se, conservar a sua reputação; por outro, «Vela» é um nome de um seu criado, como nos informa a rubrica, um homem de condição social inferior, portanto um par inadequado para uma dona, uma mulher nobre (“por se guardar de uma nomeada, / filhou-s’e e pôso Vela sobre si”). “Pôso” é uma forma arcaica de «pôr», contudo presta-se ao equívoco “pôs o”. Neste sentido, “pôso Vela sobre si” constitui uma alusão de caráter sexual bem explícita: a dona “pôso Vela sobre si.”, isto é, pôs o criado sobre si.
    Em suma, na primeira estrofe, o trovador dirige a cantiga a uma dona não identificada, que mantinha uma relação com um seu criado, mas procurava resguardar-se da má fama.
    José Carlos Ribeiro Miranda, professor da Universidade do Porto, considera que esta mulher era solteira e fez-se monja, mesmo contra a vontade do pai, a cuja guarda se encontrava (“nunca end’ouve seu padre sabor”; “e, a pesar dele, sem’o seu grado”), para se “guardar”. A referência ao pai permite questionar os papéis tradicionais de pais e filhas neste contexto: tradicionalmente, são aqueles que velam as filhas, que as “guardam”, porém, na cantiga, é a filha que resolve “pôr vela” sobre si própria. Tendo em conta a epígrafe da composição poética, na realidade a «vela» que a dona decidiu pôr sobre si é o “peom Vela”, numa “aequivocatio” que é esclarecido pelo pequeno texto em prosa que antecede o poema. Deste modo, podemos concluir que a composição poética configura uma crítica implícita às “liberalidades” paternas. Deste modo, a dona conseguiu iludir a vigilância paterna por não estar devidamente “guardada”.

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