· Pré-abordagem do texto: distinção entre autor e eu lírico, entre
ouvinte e destinatário.
O autor é aquele que escreve o texto, o eu lírico ou sujeito poético
é a entidade que se expressa no texto. Ouvinte
é aquele que lê / ouve o texto, destinatário
é aquele a quem o texto é dirigido.
· Assunto:
o sujeito poético (a donzela) convida as amigas a bailarem em San Simon de Val
de Prados para atrair os amigos, enquanto as mães, que aquelas acompanham numa
romaria, acendem velas e fazem promessas.
· Tema: o amor, metaforizado pelo baile e interligado à religiosidade
do homem medieval.
· Estrutura interna
Personagens: Mães Donzelas Amigos
ß ß ß
"candeas
queimar" "bailaremos
i" "por cousir"
Atitudes
® cumprir promessas ¾¾® divertir-se, bailar ¾® divertir-se e observar
e rezar e encontrar-se com as
donzelas
os amigos
¯ ¯ ¯
objetivo religioso objetivos
profanos
· Caráter narrativo:
. ação ® ida de um grupo de donzelas,
acompanhadas pelas suas mães, a uma romaria, que funciona como pretexto para
dançarem e se ²mostrarem² aos seus amigos;
. personagens e sua caracterização:
- donzelas - temperamento juvenil:
- traquinas;
- sedutoras ("Nossos amigos iram por cousir / como bailamos..."),
sensuais e provocantes (“en cós”);
- matreiras;
- irreverentes em relação à atitude das mães
e à religião (refrão);
- irónicas;
- orgulhosas e exibicionistas da sua beleza
física;
- alegres;
- entusiasmadas;
- garridas e felizes;
- belas (“fremosas”,
“de bom parecer”);
- sensuais e provocantes ("en cós");
. motivações
das personagens:
- amigos:
. apreciar a beleza e a
graciosidade das meninas;
. escolher um par amoroso (“iran por cousir”);
- mães: peregrinação e devoção;
- donzelas: bailar diante dos namorados para
os seduzir, daí dançarem “en cós”,
isto é, sem manto, de modo a que as suas formas feminis possam ser apreciadas
por eles;
. relação entre as donzelas e os amigos: cumplicidade e confidência,
visível nos versos iniciais da 2.ª estrofe;
. espaço ® "San Simon de Val de
Prados" (Galiza), local da romaria / peregrinação;
. tempo ® presente, com ideia de
futuridade.
A romaria aparece-nos, nesta
composição, no seu duplo aspecto: lúdico e religioso (como as romarias
actuais).
· Classificação
.
Cantiga de amigo: composição poética do género
lírico, cujo sujeito é uma donzela do povo que exprime a sua vida amorosa, os
seus sentimentos, em relação ao amigo, duma forma simples, num ambiente rural
ou familiar.
a) Quanto ao tema: romaria (cantiga em que há
referência explícita a uma peregrinação religiosa) e bailia
(cantiga em que há referências ao baile).
b) Quanto à forma: cantiga de refrão (dístico).
· Características orais / populares da cantiga:
-» tema (ida à romaria);
-» forma (linguagem repetitiva e
refrão).
· Recursos estilísticos e linguísticos
1.º) Nível fónico
3 coblas (quadra +
refrão dístico)
. Estrofes isomórficas: 4 + 2
versos;
singulares: as rimas mudam de estrofe para estrofe;
isométricas: mesmo número de sílabas métricas.
. Métrica ® versos decassílabos;
® acentos dominantes: 4.ª e 10.ª
sílabas.
esquema rimático: ABBACC / DEEDCC / FGGFCC;
tipo: interpolada e emparelhada;
natureza: masculina ou aguda ("Simion" /
"enton");
.
Rima qualidade: consoante ("Simion" /
"enton");
rica ("Simion" / "enton") e pobre
("queimar" / "andar");
refrão: monórrimo.
. Ritmo binário,
apropriado ao canto e à dança.
.
Aliterações: "candeas queimar"; "queimem
candeas, por nós e por si";
em v e b (vv. 14-15).
. Transporte: vv. 1-2, 3-4, 4-5, 7-8, 8-9, 10-11, 13-14, 14-15, 16-17.
dístico;
. Refrão monórrimo;
profundamente irónico, estabelecendo o contraste entre os objectivos/comportamento
das donzelas e das mães: à devoção destas contrapõem-se a alegria e o
entusiasmo das donzelas por verem os seus amigos.
alternância de sons abertos e fechados;
.
Musicalidade predomínio de sons agudos;
aliterações suaves;
alternância de monossílabos e polissílabos.
. Assonância: alternância ô, á, ó, i.
Em síntese, as características
fónicas adaptam-se à expressão de uma mensagem alegre, num texto destinado a
ser cantado e dançado.
2.º) Nível morfossintáctico
.
Substantivos: madres, San Simon, Val de Prados, candeas,
meninhas, amigos, cós, moças, parecer constituem um vocabulário popular e
conferem ao poema um tom ou colorido epocal;
parecer: é vulgar, na poesia
trovadoresca, o uso do infinitivo "parecer" como substantivo: o
"bon parecer" das moças, ou seja, a sua beleza;
meninhas: as donzelas das cantigas de
amigo.
.
Adjectivos: fremosas, bom são adjectivos ligados ao
"bon parecer" das donzelas. Os substantivos e os adjectivos têm como
objectivo vincar e exaltar a beleza das donzelas, o fulcro e a razão do amor.
Se o trovador coloca o texto na boca da donzela, a verdade é que esta é uma
forma de o trovador exprimir, indirectamente, a sua admiração e o seu amor pela
mulher;
fremosas, bon parecer: elegantes,
formosas, que despertam o amor (intenção: vincar a beleza das donzelas).
. Pronomes: nossas, nós, si, nossos,
eles, elas, todos, e os
. Advérbios: i, lá, enton, ant', alá,
mui, conferem à cantiga um tom popular.
. Verbos: o uso dos modos e tempos verbais confere à cantiga cor epocal.
Logo
no primeiro verso utiliza-se o presente
"vam" com o valor de futuro ("irão"), porque se
pretende apresentar o facto como certo: as donzelas vão, ou seja, estão já a
ir. É esta certeza que dá às moças a oportunidade de irem à romaria, de aí
dançarem e serem observadas, e consequentemente atraírem, pelos amigos (ex.: o
emprego do futuro "iran",
andaremos nós bailando"). Porém, como as donzelas anteviam essa
hipótese futura como uma certeza presente, surge de novo o presente com valor de futuro,
na terceira estrofe ("bailamos",
"podem veer"). Atente-se ainda no valor exortativo do modo conjuntivo: "punhemos
d'andar", "queimem", e da perifrástica
("punhemos d'andar") a
sugerir o movimento.
De notar ainda que quer os verbos
quer os substantivos traduzem acção e objectividade.
. Frases -
tipo: declarativo;
-
construção oracional ® hipotaxe
® parataxe (o predomínio da parataxe – coordenação - sobre a
hipotaxe (subordinação) é também uma marca de linguagem popular e arcai a:
® hipotaxe: "Pois nossas madres vam a San
Simon"; "pois que alá vam", "pois que lá querem ir".
Note-se a expressividade especial da primeira oração causal a preceder a subordinante
e a iniciar a cantiga: é permitida a folia, porque as mães vão à romaria;
® parataxe: "e elas entom / queimem candeas por nós
e por si";
"e nós,
meninhas, bailaremos i";
"e andaremos
nós, fremosas em cós";
"e podem veer
bailar moças de mui bem parecer".
.
Polissíndeto: "e elas enton queimem", "e
nós meninhas bailaremis i", para salientar a sucessão de ações
interdependentes.
. Poliptoto: a variação de formas do verbo "bailar"
("bailaremos", "bailando", "bailamos",
"bailar"), evidenciando a ação principal - o divertimento das donzelas.
.
Paralelismo semântico (repetição
das mesmas ideias através de palavras diferentes) entre as duas últimas
estrofes acentua a diferente mundividência das meninas e das mães.
.
Paralelismo estrutural (em todo o texto) reflecte o carácter primitivo e espontâneo do
lirismo trovadores.
3.º) Nível semântico
. Iteração
(paralelismo vocabular): "nossas madres",
"nossos amigos", "nossas madres", "nossos amigos",
para realçar os intervenientes na romaria. Por outro lado, a repetição das
palavras revela a situação de formação da língua, com um vocabulário ainda
pouco desenvolvido.
. Ironia: "queimem candeas por nós e por si", deixando transparecer
um tom de velhacaria, que deixa vincadas as diferentes atitudes das donzelas e
das suas mães – elas vão para atraírem os amigos e não para rezar, o propósito
das mães, as quais, já que fazem questão de ir à romaria (v. 16), assumirão os
deveres das filhas.
. Metáfora: "candeas queimar" ¾¾ cumprir
promessas ¾¾ religiosidade.
. Apóstrofe: "e nós, meninhas,
bailaremos i".
. Metonímia: "queimem candeas" ® o efeito está em vez da causa, pois a expressão remete para "satisfaçam as promessas".
. Gradação na forma como são sugeridos os
objectivos das meninas: bailar (1.ª estr.) ® perante os namorados (2.ª estr.) ® que vão para ver como elas bailam e são
belas.
. Visualismo, sugeridos pelo verbo ver.
· Valor documental
É quase sempre na romaria, junto do
santuário, que a entrevista amorosa se realiza, é lá que as habilidades
coreográficas, os vestidos novos se exibem. Como ainda hoje acontece
frequentemente, a devoção pelo santo é inferior à obsessão amorosa.
É de 53 o número de cantigas de
romaria que nos restam hoje, número relativamente avultado, mas que muito maior
seria se tivesse chegado até nós toda a produção trovadoresca e jogralesca. A
nossa cantiga de peregrinação reveste formas variadas, que vão desde a forma
simples e emotiva da prece pura até ao gracejo do tema, à deformação
parodística. O primeiro tipo está representado na cantiga de Martim de Ginzo: a
moça dispõe-se a ir à capela de Santa Cecília orar pelo amigo que foi para a
guerra. A forma parodística é-nos dada por esta cantiga: devoção alegre e um
pouco fingida, que encomendava às mães a parte séria da romaria e deixava às
meninas o vagar de dançarem no adro, em cós, perante os namorados.
De qualquer forma e qualquer que
seja a variedade da cantiga de romaria, encontramos nela em geral entrelaçados
dois motivos fundamentais: o motivo religioso, próximo ou distante, sincero ou
travesso, e o motivo da ausência do namorado, que tinha ido lutar com os
Mouros, em defesa da terra. Sob este aspecto, o lirismo galego-português é,
como nenhum outro, a perfeita tradução poética duma realidade social.
Por outro lado, a cantiga sugere o
conflito intergeracional. De facto, as figuras possuem diferentes interesses,
pertencem a gerações diferentes, apresentam percursos de vida igualmente
diferentes, por isso assumem comportamentos distintos, no fundo, olhares e
expectativas díspares relativamente ao mundo. Nos nossos dias, a situação não é
diferente.
· Influências provençais:
Þ paralelismo rudimentar e imperfeito
(o 4.º verso de todas as estrofes e o 1.º da segunda e terceira estrofes): a
redução ou anulação total do paralelismo é influência das cantigas de amor,
pois era de mestria a poesia provençal;
Þ o vocábulo "cós", que veio do provençal "cors", que, por sua vez, veio do latim "corpus".
· Valor simbólico do baile: convite ao
amor (exposição das formas do corpo feminino), sedução e namoro.
Na romaria, o ambiente profano de festa
associa-se à música e à dança. As donzelas assumem, sem rodeios, que os amigos
irão à romaria para as verem dançar, constituindo a dança / o baile a sua forma
de afirmação de beleza e sedução.