1.
O Livro do Desassossego é uma sucessão de fragmentos desconectados, em que a
sequência da paginação não é indicativa da ordem de leitura. No entanto, Pessoa
atribui-lhe a designação de «livro».
Mas um «livro»,
no sentido comum, é um macrotexto. Como tal, seria de esperar encontrar aí uma
malha complexa de tópicos entrosados, em progressão rumo a uma conclusão.
Ora, o Livro do Desassossego tem
reconhecidamente um carácter diarístico – mais marcado numa fase de redação
tardia (a partir de 1930) e, portanto, o que temos é representação
fragmentária, desordenada, heterogénea de um mundo interior.
Este é um
«livro» como um diário é um livro, um livro de anotações. Mas o que é
importante notar é a conformidade desta fragmentação do discurso com a própria
representação do eu (ou dos vários eus).
Há algumas
passagens de carácter metatextual em que isso mesmo é explicitado:
. «(…) eu, que não ouso
escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco
que escrevo, sou imperfeito também» (p. 105).
. «Imperfeito» significa «não
acabado»/«não terminado»/«incompleto»: discurso e sujeito representado são uma
e a mesma coisa.
. «Este livro é um gemido» (p.
333).
. «E pergunto (...) de que me
serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções
que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal,
papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais» (p. 353).
Paralelamente, não
é difícil fazer o levantamento de trechos que apresentam uma forte coesão
interna: a uma frase genérica (em jeito de mote), que encabeça um fragmento,
segue-se uma elaboração (paráfrase), onde tomam assento diferentes atos de
composição textual:
. explicação/exemplificação:
– ativação de conector: «O próprio viver é morrer, porque não temos um
dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela» (p.
174).
– retoma por repetição lexical ou recuso a expressões correferenciais: «O
entusiasmo é uma grosseria./A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma
violação dos direitos da nossa insinceridade. (...) Exteriorizar emoções é mais
persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las» (p. 200).
– retoma através de quantificadores universais: «Agir é exilar-se. Toda a
ação é incompleta e imperfeita» (p. 274).
.
exemplificação/particularização: «Conviver é morrer. Para mim, só a minha
autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência» (p.
198).
. reorientação: «A arte
livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. (...) Mas na arte não há
desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio» (p. 239).
. questionação: «A renúncia é
a libertação. Não querer é poder./Que me pode dar a China que a minha alma me
não tenha já dado?» (p. 132).
É exatamente por
aqui que se pode entrever alguma unidade macroestrutural: não tanto pela
recorrência da estrutura interna de cada trecho, como referi, mas pelas
intercorrespondências de crenças e estados (contradições) de alma, como sejam a
abdicação da vida e a vivência pelo sonho, a gratuitidade e o poder gerador da
escrita, a consciência de si até à autoanulação: «Sou uma prateleira de frascos
vazios» (p. 179).
2.
Vale a pena, então, debruçarmo-nos sobre o papel destas máximas, que será o de
marcação ou separação de cada uma desses fragmentos.
O enunciado
genérico redime sob um conceito único características e factos comuns
observados em múltiplos objetos singulares e, ao ser proferido, estende esse conceito
a uma classe de objetos possíveis.
Atendendo à
realização linguística do enunciado genérico, há a assinalar as seguintes
características:
• do ponto de
vista do léxico:
- seleção de
nomes comuns abstratos;
- nomes massivos;
- nomes de
carácter hiperonímico;
- expressões de
referência a espécie;
• do ponto de
vista da sintaxe e da semântica:
- processos de
aspetualização (P é sempre verdadeiro);
- dominância do presente simples que faculta a transição de um evento
para um estado iterativo, habitual ou estativo (a importância dos enunciados
estativos está no facto de estes, ao serem construídos na base de um certo
número de ocorrências de um evento, permitem atribuir qualidades);
- advérbios frequenciais;
- ausência de artigo definido; este, quando ativado, implica
necessariamente referência a espécie;
- processos de modalização (P é necessariamente verdadeiro);
- modalidade deôntica: produção de um enunciado que se apresenta como
incontestável.
- processos de quantificação (X vale por X);
- quantificadores universais;
- pronomes indefinidos;
- frases não finitas;
- 1.ª pessoa plural.
• do ponto de
vista da pragmática:
- o carácter normativo: a frase genérica não apela a uma justificação da
ordem da estatística; o enunciado genérico tem força de norma.
Alguns exemplos:
. "Tudo o que dorme é criança de
novo." (p. 92);
. "Tudo quanto vive, vive
porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre." (p. 408);
. "Todos os problemas são
insolúveis." (p. 123);
. "Nunca amamos alguém.
Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém." (p. 125);
. "A alma humana é um abismo
obscuro e viscoso (...)" (p. 226);
. "A força sem a destreza é uma
simples massa." (p. 229);
. "A arte é um esquivar-se a agir
(…) " (p. 210);
" A fé é o instinto da acção." (p.
260);
. "Nunca se deve fazer hoje o que
se pode deixar de fazer também amanhã." (p. 403);
. "Conviver é morrer." (p
198);
. "Explicar é descrer."
(p.199);
. "Escrever é esquecer."
(p.128).
. "(…) a gramática é um
instrumento, e não uma lei." (p. 104);
. "Sem sintaxe não há
emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos." (p. 210).
3.
Algumas destas passagens acusam uma reflexão profunda sobre a língua - a que
Pessoa/Soares chama de "psicologia verbal" (p. 94). Esta reflexão percorre
vários domínios.
. Fonética:
- " Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo - é
impossível ocultar-lhes o som - é absolutamente o de uma coisa que ganhou
exterioridade absoluta e alma inteiramente." (p. 158);
- "As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis,
sensualidades incorporadas." (p. 229);
"A palavra é completa vista e ouvida." (p. 231).
. Sintaxe:
. "Há uma relação entre a
competência sintática, pela qual se distingue a valia do senão, do mas, e do
porém, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e
que parte de amarelo existe no verde azul do céu." (p. 210);
. " (…) o que há de mais
antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão
sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos...
Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um
pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a
destruir o verbos..." (p. 304).
É importante
notar que o verbo é a categoria gramatical que apreende linguisticamente um
dado estado de coisas como um processo: este dinamismo é essencial à
constituição de um enunciado. Para além disso, o verbo, sendo a palavra que
mais varia, é fulcral no estabelecimento de nexos coesivos com outros elementos
da frase e com outras frases.
. Norma e criação linguística:
- "Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um
sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso,
porém, não sou diferente dos outros. (...).
A gramática, definindo o uso,
faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos
e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter
um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para,
como o comum dos animais homens, o ver às escuras. (...)
Obedeça à gramática quem não
sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões.
Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido
um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e
acima da gramática." E a história narra que ficou sendo conhecido nela
como Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem
que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a
alma é ser-se." (pp. 103-105).
. Semântica/referencialidade:
- "Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição." (p. 83);
- "Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe
chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver." (p. 94).
. Textualidade:
- "A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande
amor nunca o poderia contar." (p. 126);
- "Narrar é criar, pois viver é apenas ter vivido." (p. 163).
Uma narrativa é
um texto de orientação presente - passado, regido por nexos temporais-causais.
A narrativa não vive só representação da ação, mas sobretudo da criação de
referência. Qualquer contador de histórias tenta fazer vingar a ordem sobre a
sucessão aleatória de fenómenos. Isso deve-se à alquimia fundamental de
transformação do casual em história, ou seja, num esquema de significação
inteligível totalizante. A ocorrência singular transforma-se em episódio;
constitui-se uma urdidura complexa onde agentes, objetivos, meios,
circunstâncias e resultados se harmonizam num todo de significação.
3.1. Há também a relevar outras passagens, que cruzam
língua, ideologia, cultura, cognição e arte.
• A produção discursiva enquanto ato interpretativo e criativo que
desvela a identidade do indivíduo:
- " Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter
sido realizada numa língua estrangeira." (p. 134);
- "Estremeço se dizem bem. (...) Tal página, até, de Vieira, na sua
fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento,
num delírio passivo de coisa movida. (...) "Mas odeio, com ódio
verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não
quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a
página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se
bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja
independentemente de quem o cuspisse." (p. 230-231);
- "não sei escrever porque não sei ser." (p. 310).
• Expressão
linguística e ideologia:
- "Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral.
Já a palavra "dever" é para mim desagradável como um intruso. Mas os
termos "dever cívico", "solidariedade",
"humanitarismo", e outros da mesma estirpe, repugnam-me como
porcarias que despejassem sobre mim de janelas." (p. 161).
• A língua como
fonte de cultura:
- "As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e
literatura: é, palavras, o que delas fala e fica." (p. 186).
• O homem caracterizado
pela faculdade de linguagem:
- "O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o
desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer." (p. 185);
- "o que não se pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja
possível conseguir em ato ou palavras." (p. 251).
3.2. Esta reflexão sobre a língua é exercitada na própria
execução textual do Livro do Desassossego. Há vários momentos que são puros
exercícios de estilo ou demonstrações da arte de dizer:
• no plano do
léxico:
- "gemedoramente"
(p. 265);
- "interiorice"
(p. 286);
- "escriturantemente"
(p. 310);
- "incompreendedores"
(p. 326);
- " delírio
intersticiado";
- "Outragem"
(p. 413);
- "dramatistas"
(p. 450).
• no plano da
morfossintaxe:
- "Não
durmo. Entre-sou." (p. 245);
- "ubiquito-me"
(p. 261);
- "imperfeiçoa-se"
(p. 279);
- "retrovei-me"
(p. 282);
- "escacharão
revoltas, turbilhonarão festas" (p. 289);
- "absurdemos
a vida" (305);
- "ergo-me
de pensar" (p. 320);
- " Nem sei
hoje que porto era, porque ainda nunca lá estive." (p. 444).
• no plano do
texto/discurso:
(ensaio de elaboração de um texto informativo /explicativo – uma
definição)
- "A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que
pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma
espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto,
ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou
de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembramos que
dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe
sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir
assim, porque supõe definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não
o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo
virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição
ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma
cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma." (p.128).
Afinal, as
máximas só têm para nos dar aquilo que nós lá pusermos. A máxima "A minha
pátria é a língua portuguesa" só diz alguma coisa a quem souber o que está
à volta dela e souber (re)conhecer aí o Livro do Desassossego.
* Texto-base sobre o tema de
emissão do programa Páginas de Português
Autora: Ana Martins