Este texto abre a obra O Guardador de Rebanhos, constituída por 49 poemas, todos com métrica irregular e verso branco, escrita maioritariamente no dia 8 de março de 1914, o «dia triunfal», de pé contra uma cómoda, segundo a carta sobre a génese dos heterónimos a Adolfo Casais Monteiro.
Convém, porém, esclarecer que, de acordo com uma análise mais cuidada do espólio, nenhum poema está datado desse dia, antes se situam entre 4 de março e 7 de maio de 914. Este facto poderá ter três explicações: 1.ª) "o gosto de Pessoa pelo drama e pela encenação, pela sua própria memória futura, levaram a que ele ficcionasse o nascimento da obra maior de Caeiro num só dia"; 2.ª) "ele, não se recordando exatamente desse período - pouco mais de duas semanas, vinte anos atrás - as sintetizasse num só dia, realmente um dia glorioso, (...) que ele recordava por ser o dia em que tinha «inventado» os heterónimos"; 3.ª) "o dia 8 de março de 1914 tem um significado especial para Fernando Pessoa", daí a sua escolha.
Por outro lado, O Guardador de Rebanhos era apenas uma parte de uma obra maior de Alberto Caeiro, intitulada Ficções do Interlúdio, que englobaria a totalidade da produção dos heterónimos.
Além de O Guardador de Rebanhos, há ainda a registar outras duas obras de Caeiro: Poemas Inconjuntos (17 poemas) e O Pastor Amoroso (8 poemas).
O sujeito poético inicia o poema com a afirmação de que nunca guardou rebanhos, isto é, de que não é um pastor na realidade, mas comporta-se como se o fosse («Mas é como se os guardasse» - v. 2), ou seja, há uma parte de si que se comporta como um pastor - a alma -, uma alma de pastor (comparação do verso 3) que «anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar» (vv. 5-6).
Estes dados permitem-nos, desde já, concluir que estamos na presença de um pastor por metáfora que procura estabelecer com a natureza uma relação de comunhão, de harmonia, de simbiose: «Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações». De pastor, tem o deambulismo, o andar constantemente e sem rumo definido, observando o que o rodeia, a variedade inexaurível da natureza, concentrado numa única atividade: olhar («A seguir e a olhar.» - v. 6). A sua contemplação da natureza, da beleza primordial, faz com que o «eu» sinta a realidade como se a vivesse intensamente, de acordo com um modo de vida similar ao de um pastor, que contempla, além da proximidade e intimidade ["(...) Natureza sem gente" - v. 7]. De facto, o pastor é o símbolo da solidão do pensamento contemplativo: é o homem que está sozinho na natureza e que ocupa os seus dias vagueando com o seu rebanho, sem a perturbar, alimentando-se do que ela dá, «vislumbrando os seus segredos no silêncio». Daí que o «eu» se considere um pastor, visto que incorpora em si as qualidades de um pastor, mas não é limitado pela vida que um pastor leva. Ou seja, ele serve-se da "arte do pastor para atingir o estado contemplativo, como um budista se serviria da meditação".
A consequência imediata de o sujeito poético possuir uma alma assim é ter acesso a «toda a paz» que a natureza sem gente proporciona - ela vai «sentar-se» a seu lado (vv. 7-8). Caeiro apresenta-se, assim, em suma, como um poeta metáfora e como o poeta da natureza e do olhar.
No entanto, no verso 9, o sujeito poético confessa-se triste. Numa primeira leitura, essa tristeza é motivada pelo fim do dia, representado pelo pôr do sol, dado que, quando a noite cai sobre a natureza, ele sentirá maiores dificuldades em contemplar a natureza. E, como já sabemos, Caeiro é o poeta do olhar, o sensacionista para quem a visão é o sentido primordial. Por outro lado, note-se como a tristeza invade o «eu» de forma impercetível, como a borboleta que entra impercetivelmente pela janela.
A nível estilístico, é de salientar, na primeira estrofe, antes de mais a personificação da natureza (vv. 5, 7-8) e as comparações (vv. 3, 9 e 13), recursos que evidenciam a relação íntima e intensa que o «eu» estabelece com ela. Por outro lado, genericamente, a comparação é o recurso estilístico de que Caeiro se socorre para exprimir a concretização do abstrato, para aproximar o imaginário do real, tornando-o simples e acessível. Por seu turno, a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 9) sugere o caráter contraditório da tristeza do sujeito poético, pois, se ele tem à sua volta tudo o que deseja, por que razão se sentirá triste?
No início da segunda estrofe, o sujeito poético identifica a sua tristeza com sossego e considera-a «natural e justa». Porquê? Porque «é o que deve estar na alma / Quando já pensa que existe / E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.» (vv. 16-18). Isto é, o «eu» sente-se triste porque pensa e porque pensa é natural e justo que se sinta triste. É merecido ser triste quando o pensamento invade a sua alma e esta não dá pela natureza, pelas flores que as mãos colhem. Por outro lado, esta postura revela a aceitação do real tal como ele se apresenta por parte do sujeito lírico. Este é um ser pragmático, não tem ilusões, daí que a tristeza constitua uma imposição aceite livremente, uma submissão a algo superior, uma aceitação voluntária do sofrimento e do Destino («Mas a minha tristeza é sossego» - v. 14).
Além disso, o verso 14 acima referido aponta para uma linha central da poesia de Alberto Caeiro: o objetivo da meditação do poeta é o «sossego», a paz. Caeiro troca tudo o resto (uma vida comum, dinheiro, desejo sexual, desejo de posse, passado, presente e futuro), a vontade própria, a personalidade, por uma forma superior de existência, feita só de sensações e em comunhão com a natureza.
Esta ideologia aparenta semelhanças com o processo budista de conhecimento, assente nas quatro verdades: 1.ª) a existência implica a dor; 2.ª) a origem da dor é o desejo; 3.ª) a dor só cessa com o fim do desejo; 4.ª) há um caminho de oito passos para acabar com o desejo: a visão correta, a intenção correta, o discurso correto, a ação correta, a vida correta, o esforço correto, a atitude correta e a concentração correta.
Os pensamentos do sujeito poético aparecem ruidosamente («Com um ruído de chocalhos» - v. 1) destituídos de simplicidade («Para além da curva da estrada» - v. 20). A sua recusa - do pensamento - constitui a via para alcançar a paz e a felicidade, daí que lamente, não que os seus pensamentos sejam contentes, porque sê-lo-iam de qualquer modo («Em vez de serem contentes (...) / Seriam (...) contentes» - vv. 23-24), mas saber que eles o são (contentes). Se não o soubesse, seria feliz; assim é paradoxalmente «contente» e «triste» e a tristeza advém-lhe da consciência de saber (= pensar). É o retorno da síntese impossível de opostos - o conhecer e o ignorar, a consciência da inconsciência - já abordada pelo ortónimo no poema "Ela canta, pobre ceifeira".
O incómodo que o ato de pensar acarreta é reforçado pela metáfora dos versos 26 e 27: «Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais». Pensar é, pois, como andar numa chuva cada vez mais intensa - quanto mais chove, mais nos é difícil avançar normalmente. De modo semelhante, quanto mais pensamos, mais difícil é viver normalmente. Dito de outra forma, é o pensamento que gera a tristeza e a infelicidade.
De seguida, o sujeito poético confessa-se sem ambições nem desejos - despindo-se da vontade própria -, nem sequer de ser poeta, que constitui «a minha maneira de estar sozinho». Estar sozinho é estar sozinho com as suas ideias, num estado contemplativo, de autorreflexão. Ser poeta é uma necessidade para atingir a paz. O único desejo que lhe resta, ainda que residual, é um desejo infantil: «desejo às vezes (...) ser cordeirinho». Ora, o cordeiro é o símbolo do ser pacífico, natural, ingénuo, desprovido de pensamento, e da ligação à natureza. Ou então, antropomorfizando a natureza, deseja ser o rebanho todo, para melhor fruir a felicidade e ultrapassar a tristeza que ocasionalmente o assalta, representada simbolicamente pelo pôr do sol, pela nuvem que «passa a mão por cima da luz» (v. 37), pelo silêncio que «corre (...) pela erva fora» (v. 38). Por outro lado, com o verso 37 Caeiro assume que a natureza tem uma vontade própria, semelhante à do ser humano, logo, se esta possui uma importância ao nível da presença humana, estar sozinho na natureza é como estar sozinho na humanidade - são duas situações comparáveis. "Esta visão impede que o «estar sozinho» seja sinónimo de «estar preocupado», ou «estar inquietado». A segurança com que o «estar sozinho» é assumido dá a Caeiro a certeza que esta solidão não o preocupa, não o vai levar ao desespero e à análise racional. É quase um «estar sozinho» natural".
Encontramos aqui as razões que estiveram na génese de Caeiro: a tentativa de superação, pelo recurso ao bucolismo e à ingenuidade, da infelicidade e tristeza que o dominam (a Pessoa).
E o sujeito poético prossegue a sua autocaracterização enquanto pastor, iniciada nos primeiros versos do poema. O pastor ilusório, o pastor em essência, que escreve versos num papel que está no seu pensamento, sentindo «um cajado nas mãos» (v. 42), um cajado que só sente, não possui - o cajado é o atributo do pastor e, simultaneamente, o símbolo da sua segurança e estabilidade -, é ele próprio a natureza que desvenda, daí que afirme: «vejo um recorte de mim / No cimo de um outeiro». O «recorte de mim» (v. 43) é mais uma manifestação da dispersão que o aflige.
De seguida, o sujeito poético saúda, ironicamente, todos quantos o lerem (v. 49), de forma gentil e humilde, como homem do campo e da natureza, esperando que não lhe peçam mais do que a gentileza firme de uma saudação passageira. Uma interpretação «alternativa» para esta saudação aos leitores pode sugerir a condição de mestre da parte de Caeiro, sediado no coração da natureza, procurado por muitos interessados na sua «doutrina» (vv. 51-52), a quem acena (v. 50). Ele deseja não o conhecimento, mas a chuva quando é precisa, senão o sol.
Ele saúda-os, sugerindo-lhes tudo quanto é simples e objetivo, pacífico e suave, ingénuo e natural - o sol, a chuva, a casa, a janela aberta, a cadeira predileta, a árvore antiga, a acriança despreocupada (tal como no ortónimo, a alusão à temática da infância). O «eu» deseja uma cadeira, para que se sentem a ler os seus versos e se lembrem os seus leitores da simplicidade que advoga. O seu maior desejo, porém, consiste em que, ao lerem-nos , o pensem como algo natural, como uma árvore antiga que conheceram crianças a brincar.
Quanto a si, deseja fazer-se passar por «qualquer coisa natural» (v. 60), alheia ao ato de pensar. Ele quer assumir-se natureza, libertar-se das cadeias e desejos humanos e existir de outras maneiras. Assim, "o homem dilui-se na tristeza e perde a sua identidade para assumir uma existência pacífica com a natureza que pretende tomar como sua. Caeiro quer perder-se para se encontrar".
Neste poema, encontramos os traços essenciais da ideologia de Caeiro:
Por outro lado, O Guardador de Rebanhos era apenas uma parte de uma obra maior de Alberto Caeiro, intitulada Ficções do Interlúdio, que englobaria a totalidade da produção dos heterónimos.
Além de O Guardador de Rebanhos, há ainda a registar outras duas obras de Caeiro: Poemas Inconjuntos (17 poemas) e O Pastor Amoroso (8 poemas).
O sujeito poético inicia o poema com a afirmação de que nunca guardou rebanhos, isto é, de que não é um pastor na realidade, mas comporta-se como se o fosse («Mas é como se os guardasse» - v. 2), ou seja, há uma parte de si que se comporta como um pastor - a alma -, uma alma de pastor (comparação do verso 3) que «anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar» (vv. 5-6).
Estes dados permitem-nos, desde já, concluir que estamos na presença de um pastor por metáfora que procura estabelecer com a natureza uma relação de comunhão, de harmonia, de simbiose: «Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações». De pastor, tem o deambulismo, o andar constantemente e sem rumo definido, observando o que o rodeia, a variedade inexaurível da natureza, concentrado numa única atividade: olhar («A seguir e a olhar.» - v. 6). A sua contemplação da natureza, da beleza primordial, faz com que o «eu» sinta a realidade como se a vivesse intensamente, de acordo com um modo de vida similar ao de um pastor, que contempla, além da proximidade e intimidade ["(...) Natureza sem gente" - v. 7]. De facto, o pastor é o símbolo da solidão do pensamento contemplativo: é o homem que está sozinho na natureza e que ocupa os seus dias vagueando com o seu rebanho, sem a perturbar, alimentando-se do que ela dá, «vislumbrando os seus segredos no silêncio». Daí que o «eu» se considere um pastor, visto que incorpora em si as qualidades de um pastor, mas não é limitado pela vida que um pastor leva. Ou seja, ele serve-se da "arte do pastor para atingir o estado contemplativo, como um budista se serviria da meditação".
A consequência imediata de o sujeito poético possuir uma alma assim é ter acesso a «toda a paz» que a natureza sem gente proporciona - ela vai «sentar-se» a seu lado (vv. 7-8). Caeiro apresenta-se, assim, em suma, como um poeta metáfora e como o poeta da natureza e do olhar.
No entanto, no verso 9, o sujeito poético confessa-se triste. Numa primeira leitura, essa tristeza é motivada pelo fim do dia, representado pelo pôr do sol, dado que, quando a noite cai sobre a natureza, ele sentirá maiores dificuldades em contemplar a natureza. E, como já sabemos, Caeiro é o poeta do olhar, o sensacionista para quem a visão é o sentido primordial. Por outro lado, note-se como a tristeza invade o «eu» de forma impercetível, como a borboleta que entra impercetivelmente pela janela.
A nível estilístico, é de salientar, na primeira estrofe, antes de mais a personificação da natureza (vv. 5, 7-8) e as comparações (vv. 3, 9 e 13), recursos que evidenciam a relação íntima e intensa que o «eu» estabelece com ela. Por outro lado, genericamente, a comparação é o recurso estilístico de que Caeiro se socorre para exprimir a concretização do abstrato, para aproximar o imaginário do real, tornando-o simples e acessível. Por seu turno, a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 9) sugere o caráter contraditório da tristeza do sujeito poético, pois, se ele tem à sua volta tudo o que deseja, por que razão se sentirá triste?
No início da segunda estrofe, o sujeito poético identifica a sua tristeza com sossego e considera-a «natural e justa». Porquê? Porque «é o que deve estar na alma / Quando já pensa que existe / E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.» (vv. 16-18). Isto é, o «eu» sente-se triste porque pensa e porque pensa é natural e justo que se sinta triste. É merecido ser triste quando o pensamento invade a sua alma e esta não dá pela natureza, pelas flores que as mãos colhem. Por outro lado, esta postura revela a aceitação do real tal como ele se apresenta por parte do sujeito lírico. Este é um ser pragmático, não tem ilusões, daí que a tristeza constitua uma imposição aceite livremente, uma submissão a algo superior, uma aceitação voluntária do sofrimento e do Destino («Mas a minha tristeza é sossego» - v. 14).
Além disso, o verso 14 acima referido aponta para uma linha central da poesia de Alberto Caeiro: o objetivo da meditação do poeta é o «sossego», a paz. Caeiro troca tudo o resto (uma vida comum, dinheiro, desejo sexual, desejo de posse, passado, presente e futuro), a vontade própria, a personalidade, por uma forma superior de existência, feita só de sensações e em comunhão com a natureza.
Esta ideologia aparenta semelhanças com o processo budista de conhecimento, assente nas quatro verdades: 1.ª) a existência implica a dor; 2.ª) a origem da dor é o desejo; 3.ª) a dor só cessa com o fim do desejo; 4.ª) há um caminho de oito passos para acabar com o desejo: a visão correta, a intenção correta, o discurso correto, a ação correta, a vida correta, o esforço correto, a atitude correta e a concentração correta.
Os pensamentos do sujeito poético aparecem ruidosamente («Com um ruído de chocalhos» - v. 1) destituídos de simplicidade («Para além da curva da estrada» - v. 20). A sua recusa - do pensamento - constitui a via para alcançar a paz e a felicidade, daí que lamente, não que os seus pensamentos sejam contentes, porque sê-lo-iam de qualquer modo («Em vez de serem contentes (...) / Seriam (...) contentes» - vv. 23-24), mas saber que eles o são (contentes). Se não o soubesse, seria feliz; assim é paradoxalmente «contente» e «triste» e a tristeza advém-lhe da consciência de saber (= pensar). É o retorno da síntese impossível de opostos - o conhecer e o ignorar, a consciência da inconsciência - já abordada pelo ortónimo no poema "Ela canta, pobre ceifeira".
O incómodo que o ato de pensar acarreta é reforçado pela metáfora dos versos 26 e 27: «Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais». Pensar é, pois, como andar numa chuva cada vez mais intensa - quanto mais chove, mais nos é difícil avançar normalmente. De modo semelhante, quanto mais pensamos, mais difícil é viver normalmente. Dito de outra forma, é o pensamento que gera a tristeza e a infelicidade.
De seguida, o sujeito poético confessa-se sem ambições nem desejos - despindo-se da vontade própria -, nem sequer de ser poeta, que constitui «a minha maneira de estar sozinho». Estar sozinho é estar sozinho com as suas ideias, num estado contemplativo, de autorreflexão. Ser poeta é uma necessidade para atingir a paz. O único desejo que lhe resta, ainda que residual, é um desejo infantil: «desejo às vezes (...) ser cordeirinho». Ora, o cordeiro é o símbolo do ser pacífico, natural, ingénuo, desprovido de pensamento, e da ligação à natureza. Ou então, antropomorfizando a natureza, deseja ser o rebanho todo, para melhor fruir a felicidade e ultrapassar a tristeza que ocasionalmente o assalta, representada simbolicamente pelo pôr do sol, pela nuvem que «passa a mão por cima da luz» (v. 37), pelo silêncio que «corre (...) pela erva fora» (v. 38). Por outro lado, com o verso 37 Caeiro assume que a natureza tem uma vontade própria, semelhante à do ser humano, logo, se esta possui uma importância ao nível da presença humana, estar sozinho na natureza é como estar sozinho na humanidade - são duas situações comparáveis. "Esta visão impede que o «estar sozinho» seja sinónimo de «estar preocupado», ou «estar inquietado». A segurança com que o «estar sozinho» é assumido dá a Caeiro a certeza que esta solidão não o preocupa, não o vai levar ao desespero e à análise racional. É quase um «estar sozinho» natural".
Encontramos aqui as razões que estiveram na génese de Caeiro: a tentativa de superação, pelo recurso ao bucolismo e à ingenuidade, da infelicidade e tristeza que o dominam (a Pessoa).
E o sujeito poético prossegue a sua autocaracterização enquanto pastor, iniciada nos primeiros versos do poema. O pastor ilusório, o pastor em essência, que escreve versos num papel que está no seu pensamento, sentindo «um cajado nas mãos» (v. 42), um cajado que só sente, não possui - o cajado é o atributo do pastor e, simultaneamente, o símbolo da sua segurança e estabilidade -, é ele próprio a natureza que desvenda, daí que afirme: «vejo um recorte de mim / No cimo de um outeiro». O «recorte de mim» (v. 43) é mais uma manifestação da dispersão que o aflige.
De seguida, o sujeito poético saúda, ironicamente, todos quantos o lerem (v. 49), de forma gentil e humilde, como homem do campo e da natureza, esperando que não lhe peçam mais do que a gentileza firme de uma saudação passageira. Uma interpretação «alternativa» para esta saudação aos leitores pode sugerir a condição de mestre da parte de Caeiro, sediado no coração da natureza, procurado por muitos interessados na sua «doutrina» (vv. 51-52), a quem acena (v. 50). Ele deseja não o conhecimento, mas a chuva quando é precisa, senão o sol.
Ele saúda-os, sugerindo-lhes tudo quanto é simples e objetivo, pacífico e suave, ingénuo e natural - o sol, a chuva, a casa, a janela aberta, a cadeira predileta, a árvore antiga, a acriança despreocupada (tal como no ortónimo, a alusão à temática da infância). O «eu» deseja uma cadeira, para que se sentem a ler os seus versos e se lembrem os seus leitores da simplicidade que advoga. O seu maior desejo, porém, consiste em que, ao lerem-nos , o pensem como algo natural, como uma árvore antiga que conheceram crianças a brincar.
Quanto a si, deseja fazer-se passar por «qualquer coisa natural» (v. 60), alheia ao ato de pensar. Ele quer assumir-se natureza, libertar-se das cadeias e desejos humanos e existir de outras maneiras. Assim, "o homem dilui-se na tristeza e perde a sua identidade para assumir uma existência pacífica com a natureza que pretende tomar como sua. Caeiro quer perder-se para se encontrar".
Neste poema, encontramos os traços essenciais da ideologia de Caeiro:
- O poeta apresenta-se como o poeta da objetividade, do imediatismo das sensações. Ele pretende eliminar os vestígios da subjetividade, usando uma linguagem simples, direta e natural (vv. 59-65) e deseja que os seus versos levem os leitores a imaginá-lo como algo natural, como uma árvore, por exemplo, à sombra da qual se sentavam, quando crianças, cansados de brincar.
- Caeiro apresenta-se como pastor, como o poeta da Natureza e do olhar, de olhos ingénuos sempre abertos para as coisas (vv. 3-6, 31-35).
- Caeiro apresenta-se como o anti-metafísico, negando a utilidade ou o valor do pensamento (vv. 19-25, 26, 31-32). De facto, o pensamento é entendido como algo negativo, pois, se não pensasse, os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas «alegres e contentes». E recordemos que foi o incómodo, a dor de pensar («Pensar incomoda como andar à chuva») que o ortónimo nunca conseguiu evitar, que sempre o torturou, ainda que ele tivesse encetado inúmeras saídas para o drama do seu eu dividido, que saíram sempre goradas (vide «Impressões do Crepúsculo», «Chuva Oblíqua», «Ela canta, pobre ceifeira», «Gato que brincas na rua», etc.).
- Ora, a tentativa mais radical de Pessoa de fugir à dor de pensar foi a de transferir a sua alma para um poeta bucólico que olha e sente o mundo com a simplicidade com que uma criança olha uma flor. Porém, nem assim o poeta conseguiu libertar-se do pensamento, que se insinua e acaba por enevoar a simples alegria de ver (vv. 21-22).
Para quem defende a poesia espontânea (vide poema __), Caeiro socorre-se de inúmeros recursos poético-estilísticos. Desde logo, visualiza-se em termos metafóricos como um pastor, de cajado na mão, guardando o seu rebanho. Aliás, a metáfora é um dos recursos de que se socorre com abundância: escreve versos num «papel» que é o seu «pensamento»; olhando para o seu «rebanho», vê os seus «pensamentos» e, olhando para estes, vê o seu «rebanho», donde se conclui que o rebanho é os seus pensamentos (as suas ideias) e vice-versa. ____ Deste cruzamento simétrico de rebanho - pensamento, pensamento - rebanho, resulta o quiasmo, que acentua a expressividade da metáfora.
O recurso às comparações reflete uma certa cor campestre, obedecendo a uma preocupação de objetividade «... é como se os guardasse»; «minha alma é como um pastor»; «Mas eu fico triste como um pôr do sol»; «E se sente a noite entrada / Como uma borboleta pela janela»; «Pensar incomoda como andar à chuva»; «E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz / E quer fingir que compreende».
O tempo verbal predominante é o presente, a assinalar as sensações ocasionais do poeta, um presente durativo que o situa no momento que vive sem pensar nem no passado nem no futuro. A presença do gerúndio («olhando», «vendo», «sorrindo») está ao serviço da expressão da simultaneidade e do fluir das sensações, sugeridas pelos verbos sensitivos.
O linguagem é simples, nunca ultrapassando os limites da norma, de acordo com a cultura rudimentar que possui (relembremos que Caeiro ostenta somente a quarta classe), e está de acordo com uma certa pobre lexical que predomina na composição poética. Atente-se, ainda, no uso de determinadas expressões que refletem a ingenuidade de um pastor: «Minha alma é como um pastor / (...) E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar»; «Com um ruído de chocalhos / Os meus pensamentos são contentes»; «E se desejo às vezes / (...) ser cordeirinho / Ou ser o rebanho todo»; «(...) quando uma nuvem passa a mão por cima da luz»; «... corre um silêncio pela erva fora» (pleonasmo); «Escrevo os versos num papel que é o meu pensamento»; «(...) sou (...) a árvore antiga...».
O tempo verbal predominante é o presente, a assinalar as sensações ocasionais do poeta, um presente durativo que o situa no momento que vive sem pensar nem no passado nem no futuro. A presença do gerúndio («olhando», «vendo», «sorrindo») está ao serviço da expressão da simultaneidade e do fluir das sensações, sugeridas pelos verbos sensitivos.
O linguagem é simples, nunca ultrapassando os limites da norma, de acordo com a cultura rudimentar que possui (relembremos que Caeiro ostenta somente a quarta classe), e está de acordo com uma certa pobre lexical que predomina na composição poética. Atente-se, ainda, no uso de determinadas expressões que refletem a ingenuidade de um pastor: «Minha alma é como um pastor / (...) E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar»; «Com um ruído de chocalhos / Os meus pensamentos são contentes»; «E se desejo às vezes / (...) ser cordeirinho / Ou ser o rebanho todo»; «(...) quando uma nuvem passa a mão por cima da luz»; «... corre um silêncio pela erva fora» (pleonasmo); «Escrevo os versos num papel que é o meu pensamento»; «(...) sou (...) a árvore antiga...».
Melhor análise que já li. Todos os professores de português deviam estudar esta página. Um enorme obrigado pela publicação.
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