Português: Alberto Caeiro: o fingimento artístico – o poeta «bucólico»

domingo, 10 de janeiro de 2021

Alberto Caeiro: o fingimento artístico – o poeta «bucólico»


▪ Origem do poeta bucólico

         Logo no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro declara-se pastor por metáfora, o que constitui, no fundo, o despontar daquilo que Pessoa ele mesmo considerou um «poeta bucólico de espécie complicada».

         De facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual explica a génese dos heterónimos, o ortónimo afirma que, certo dia, desejou criar um poeta bucólico para pregar uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa ideia se concretizou apenas em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma cómoda alta e escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase», cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a sensação de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe inventar mais uns discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa ortónimo e dos outros heterónimos.

 
▪ Poeta bucólico

         Caeiro resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi inventado e modelado pelo ortónimo como «poeta bucólico». Ou seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura que vive no campo, com simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto com a Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia bucólica, eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e inocência.

 
▪ Atitude de contemplação/observação da Natureza e deambulismo

         Caeiro é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De facto, ele deambula livremente pela Natureza, pelo campo, observando e apreendendo instintivamente o que o rodeia e captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade do mundo.

         A poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade maravilhosa do real.

 
▪ Relação de integração, comunhão e harmoniosa/simbiose com os elementos da Natureza e afastamento social

         Caeiro procura viver em plena integração e comunhão com a Natureza, aprendendo com ela a aceitar o bom e o mau, a felicidade e a infelicidade, a vida e a morte. A sua alma «conhece o vento e o sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da Natureza sem gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz e tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a Natureza, alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra.

         Deste modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade plena: «Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”.

 
▪ Simplicidade e felicidade primordiais

         Poeta do real objetivo, observa as coisas com um olhar ingénuo e puro: “pensar é não compreender. / (…) E a única inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade, Caeiro, o poeta da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e a sua aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental.

         De facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois, além de se apresentar como metáfora, aparenta contradizer-se: “Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O rebanho é os meus pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto metáfora; quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida pastoril.

 
▪ Existência tranquila no (tempo) presente

         Para Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é atraiçoar), nem futuro (pois este tempo é um campo de miragens). Assim, vive o presente, gozando cada impressão como se fosse única e original.

 
▪ Bucolismo como máscara poética

         Caeiro mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de forma a passar a imagem de um homem simples na forma original e primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa que esconde todo um conhecimento filosófico e cultural.

         Caeiro finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na realidade, não o é), um homem simples, que deambula pela Natureza, apreendendo instintivamente o que o exterior lhe oferece. Deste modo, a sua arte poética/criação artística é algo espontâneo e não artificial (artificialidade reacional da elaboração do texto), daí que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos / como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma construção.

         Este fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do pensamento, fingindo que é um homem instintivo que vive só para fora, para o exterior.

 

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