Logo
no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro declara-se pastor por
metáfora, o que constitui, no fundo, o despontar daquilo que Pessoa ele mesmo
considerou um «poeta bucólico de espécie complicada».
De
facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual
explica a génese dos heterónimos, o ortónimo afirma que, certo dia, desejou
criar um poeta bucólico para pregar uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa
ideia se concretizou apenas em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma
cómoda alta e escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase»,
cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a sensação
de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe inventar mais uns
discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa ortónimo e dos outros
heterónimos.
Caeiro
resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi inventado e modelado pelo
ortónimo como «poeta bucólico». Ou seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura
que vive no campo, com simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto
com a Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo
aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia bucólica,
eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e inocência.
Caeiro
é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De facto, ele deambula livremente
pela Natureza, pelo campo, observando e apreendendo instintivamente o que o
rodeia e captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade
do mundo.
A
poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade maravilhosa do real.
Caeiro
procura viver em plena integração e comunhão com a Natureza, aprendendo com ela
a aceitar o bom e o mau, a felicidade e a infelicidade, a vida e a morte. A sua
alma «conhece o vento e o sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da
Natureza sem gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz
e tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a Natureza,
alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra.
Deste
modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade plena: «Sinto todo o meu
corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”.
Poeta
do real objetivo, observa as coisas com um olhar ingénuo e puro: “pensar é não
compreender. / (…) E a única inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade,
Caeiro, o poeta da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e
a sua aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental.
De
facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois, além de se apresentar
como metáfora, aparenta contradizer-se: “Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O
rebanho é os meus pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto
metáfora; quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida
pastoril.
Para
Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é atraiçoar), nem futuro
(pois este tempo é um campo de miragens). Assim, vive o presente, gozando cada
impressão como se fosse única e original.
Caeiro
mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de forma a passar a imagem de
um homem simples na forma original e primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa
que esconde todo um conhecimento filosófico e cultural.
Caeiro
finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na realidade, não o
é), um homem simples, que deambula pela Natureza, apreendendo instintivamente o
que o exterior lhe oferece. Deste modo, a sua arte poética/criação artística é
algo espontâneo e não artificial (artificialidade reacional da elaboração do
texto), daí que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos
/ como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma construção.
Este
fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do pensamento, fingindo que
é um homem instintivo que vive só para fora, para o exterior.
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