Este poema é constituído por dois tercetos de versos brancos ou soltos e métrica irregular.
Na primeira estrofe, o sujeito poético estabelece uma analogia entre o som do piano e o produzido pelo curso das águas dos rios e das árvores, para constatar que o instrumento musical, quando tocado por uma determinada senhora, produz um som agradável, porém bastante inferior ao produzido pelos elementos da Natureza (atente-se na sua personificação, traduzida pelo nome «murmúrio», bem como na metáfora clássica do «correr dos rios»). O som do piano é, de facto, agradável, todavia não é natural, simples e verdadeiro, como o da Natureza. Tudo o que é humano não é natural. Tudo o que é humano não é natural. À semelhança do que sucede com o piano, que imita os sons da natureza nas suas melodias, o pensamento humano imita o natural movimento das coisas. Nesta estrofe e neste poema, o «eu» poético defende novamente a objetividade.
Além disso, há uma oposição entre «Natureza» e pensamento e o piano constitui uma metáfora deste contraste. Dado que a Natureza produz sons mais melodiosos, não é necessário um piano para ouvir belos sons, isto é, não é preciso pensar para viver. Além disso, o piano é um intermediário entre o ser humano e a Natureza. O piano representa um bem cultural, uma construção humana, que se opõe aos bens naturais – o correr dos rios e o murmúrio das árvores. Assim sendo, o «eu» descarta a necessidade do piano, preferindo a fruição dos sons da Natureza. O melhor é ter ouvidos para os escutar.
Caeiro vive de impressões, sobretudo visuais, todavia, neste poema, o foque recai sobre as auditivas. Por outro lado, são frequentes na poesia de Caeiro as comparações que têm como segundo elemento de comparação um elemento da Natureza e que servem para concretizar ideias abstratas.
Em suma, embora os objetos e as criações humanas ofereçam prazer e conforto, eles ficam aquém da complexa e rica experiência oferecida pela Natureza: há um contraste entre o artificial, o construído, e o natural e simples.
A segunda estrofe abre com uma interrogação retórica: “Para que é preciso ter um piano?” (v. 4). De facto, o piano é desnecessário, porque há a Natureza, que ultrapassa tudo o que o ser humano pode construir para a compreender. O essencial é usufruir da Natureza através dos sentidos, neste caso da audição, e amá-la. Não é necessário um instrumento musical – um objeto material musical construído – quando se tem o que é natural, uma forma mais autêntica de existência humana: a beleza e a pureza da Natureza, simples e natural. Amar é aceitar incondicionalmente, ao mesmo tempo que nos oferecemos por inteiro, sem compromisso, mesmo que tenhamos medo de falhar ou de ser magoados.
Para concluir, esta composição poética recorda uma passagem do Livro do Desassossego que reza o seguinte: “Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que (…) tenho ainda nas caves da alma (…) as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes. Eu era criança, e hoje não o sou.”. O piano, neste passo, parece constituir uma referência simbólica à mãe de Fernando Pessoa, tendo em conta que O Livro do Desassossego se debruça sobre a sua infância perdida. Ela tocava piano e o poeta recorda essas notas tocadas em sua casa, durante a idade infantil. Dado que recusa a necessidade do piano, denega também a necessidade da memória do piano (da própria mãe a tocá-lo, no que isso teria de reconfortante). Deste modo, os versos “Para que é preciso ter um piano? / É melhor ter ouvidos / E amar a natureza” podem ler-se como um lamento triste em que Pessoa, aparentemente, recusa a memória reconfortante.
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